Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

 

 

Arquiteta da alta-costura

Por Angela Klinke | Para o Valor, de São Paulo

Lula / Lula

- Are you Isabella Rosselini?

- Unfortunately, no.

Clô Orozco já perdeu as contas das vezes em que foi confundida com a atriz italiana em Nova York ou Paris. Ela se parece muito mesmo. Aos 61 anos, a estilista é uma mulher belíssima, mas, acredita, não tanto quanto a sósia romana.

"Não tenho aqueles olhos verdes nem fui casada com o David Lynch." Diz isso e sorri, como se tivesse feito alguma arte, encolhendo os ombros num confortável moletom de sua linha Huis Clos Vírgula, de peças "sportwear". O grampinho, ou ramona como preferem alguns, que segura sua franja lhe confere um ar ainda mais juvenil. Por isso, a fotógrafa Silvia Costanti chamou a atenção sobre a semelhança com a ex-musa da Lancôme.

Escaneada de cima a baixo por suas companheiras de mesa, que incluía ainda a assessora de imprensa Mayana Borzani, Clô se diverte ao revelar de onde são seus acessórios. Sim, porque suas roupas, sem surpresa, são sempre de sua autoria. "Este sapato é Prada, lindo, mas muito duro. Mas se quiser tem um igualzinho na Arezzo."

Tão economicamente elegante, praticamente sem maquiagem, Clô interrompe o qué-qué-qué tipicamente feminino para dar a medida de sua autoimagem. "Estou na idade da invisibilidade. No Brasil, mulheres da minha idade não fazem o menor sucesso. A Costanza [Pascolato] me dizia isso há anos. 'Filhinha, aproveita, porque depois de uma certa fase não acontece mais nada.' Na época não acreditei."

"Falta o olhar apurado para a arquitetura, as artes plásticas, para a moda. As pessoas carecem de uma formação para apurar o olhar"

A declaração não foi feita para chocar, mas doeu na audiência. Clô tratou logo de distensionar a mesa contrariada. Depois do fim do terceiro casamento, com o empresário Laurence Klein, e de tanto tempo solteira - "nem me lembro quanto" -, contou que um amigo resolveu ajudá-la a encontrar um homem interessante. O problema, advertiu ele, é que ela estava sempre nos lugares errados, nas horas erradas. O roteiro ideal para encontrar um par seria ir aos supermercados e empórios Santa Luzia, Santa Maria e Varanda, às sete da noite e em dias alternados. "Eu disse a ele que isso não era uma estratégia, mas uma militância. E que, no fim, eu ia me distrair com os azeites."

Clô escolheu o restaurante Epice, nos Jardins, em São Paulo, para a entrevista. O lugar é aconchegante, um corredor que conta apenas com a entrada de luz de uma única abertura sobre a porta de entrada. Toda claridade deve ser bem aproveitada nas fotos, por isso ela nem tira os óculos escuros da Prada. A melhor mesa para a missão, pois, era colada no bar e ao lado do aparador de pratos e talheres. Uma fuzarca só.

A estilista e empresária já esteve várias vezes ali. Cozinhar é seu maior prazer, por isso se fixa em lugares que, como ela, primam pela qualidade e constância na criação. Sua grife Huis Clos completa 35 anos sem cair na "obviedade". O Epice tem pouco mais de um ano e vai pelo mesmo caminho. "Os pratos são sempre lindos e executados da mesma forma. As inovações dos chefs me encantam. E eu nem sei o nome do daqui [Alberto Landgraf]."

Pãezinhos providenciais feitos na casa chegam à mesa quentinhos. Cada morta de fome agarra um e parte pela metade para que todo o quarteto possa provar da fornada diversificada. "Uma vez fiz um curso de gastronomia com uns amigos em Mougins, na França, com o chef Roger Vergé. Quando o prato ficava pronto, a gente colocava para esfriar no parapeito de pedra em frente da casa. Foi um sonho. Aprendi ali a base dos molhos da cozinha francesa. Fico frustrada por nunca mais ter feito algo assim."

Silvia Costanti/Valor / Silvia Costanti/ValorClô no Epice: "As inovações dos chefs me encantam", diz ela, que já fez curso de gastronomia na França

Clô se ressente da falta de tempo para estudar, ler (combina atualmente a "A Lebre com Olhos de Âmbar" com revistas de gastronomia), ir ao cinema- e ela é cinéfila mesmo, daquelas que se divertem em festival do polonês Andrzej Wadja. Nos fins de semana, religiosamente reúne em casa os amigos ou os "primos-irmãos" - só tem dois irmão bem mais velhos do primeiro casamento do pai - para rega-bofes feitos por ela ou por sua cozinheira, Denise, que já ficou famosa entre os comensais sortudos da cidade.

Sua rotina de trabalho é de, no mínimo, dez horas por dia. Mesmo com uma grife tão madura e contando com estilistas como Sara Kawasaki para ajudar no processo de criação, ela não pode se ausentar da empresa. Recentemente trocou seu diretor-financeiro e está "reconfigurando" a estrutura da fábrica de 3,3 mil 2, que conta hoje com 98 funcionários. O corte de pessoal e o fechamento recente de duas lojas no shopping Iguatemi, em São Paulo (uma da Huis Clos e outra da Maria Garcia, sua marca mais "trendy"), foi uma sinalização para o mercado de que os negócios não andavam bem.

"Tive de racionalizar meu método de produção. Quanto ao Iguatemi, há anos peço uma loja maior onde possa abrigar melhor as roupas de festa. Preciso de pelo menos 100 m2, mas dispunha só de 40 m2. Além disso, quero ter a Huis Clos ao lado da Maria Garcia. Está muito difícil, mas o Carlinhos [Jereissati, CEO do Iguatemi Shoppings] e a Erika [Jereissati Zullo, vice-presidente de varejo] sabem da nossa necessidade."

Enquanto a "mudança" não se efetiva, Clô fica com três unidades Huis Clos em São Paulo (shopping Cidade Jardim, rua Mario Ferraz e rua Oscar Freire) e desenha um novo plano de expansão com o fortalecimento do atacado e abertura de pontos em outras capitais. Ela avalia estar bem representada no Recife, onde tem uma "store in store" na loja Dona Santa. No Rio, depois de fechar sua loja no Fashion Mall, porque as clientes "não queriam ir até São Conrado", tem trabalhado com a multimarcas Dona Coisa. "Agora estamos negociando para abrir uma loja própria no shopping Leblon." Depois disso, pensa em Porto Alegre.

Minha roupa tem uma sensualidade, uma fenda, uma insinuação. Com esses elementos fui formatando o que é Huis Clos hoje

A Maria Garcia, conta ela, foi criada em 2002 por uma "questão de business". Como a Huis Clos foi passando por um aprimoramento da matéria-prima, dos acabamentos, da modelagem, acabou por ficar cara para alcançar volume. "Eu precisava criar uma marca onde pudesse usar uma matéria-prima com um custo menor e obedecer mais as tendências. Assim, a filha da mulher chique e antenada também teria uma roupa elaborada para ela." Mas, como tudo em que Clô põe a mão, a marca criou uma identidade própria - o nome, por sinal, veio da certidão de nascimento: Maria Clotilde Orozco Garcia. Hoje tem uma loja, está em 50 multimarcas e seu crescimento se dará por meio de franquias. E se aparecer um investidor no meio do caminho? "Seria bom para crescer mais rápido. Mas com o Luciano Aurélio [diretor-financeiro] me sinto segura para seguir sozinha."

Hora de escolher os pratos. Clô, que conhece a casa, sugere a barriga de porco, o risoto de lagostim, o robalo, as vieiras. Tudo, né? "O robalo vem com um purê de limão siciliano que sou doida para descobrir como é feito." O garçom avisa que o polvo, outro atrativo do cardápio, está em falta. Como Clô preferiu abrir mão do vinho porque na sequência tinha muito trabalho na fábrica, nos damos ao luxo de pedir também entradas. Ela estava "com desejo" da pupunha e do risoto de lagostim. "O risoto tem umas coisinhas deliciosas no meio que não sei o que é. Preciso perguntar."

As ousadias à mesa ela tenta compensar com duas aulas semanais de Pilates, pedaladas na ergométrica e caminhadas pelo bairro de Higienópolis, onde mora. Já foi atacada na rua e levaram seu celular numa dessas queimas suaves de calorias. Mas não é o receio de um novo furto que a desanima. "Tenho preguiça de acordar cedo. Sempre tive. A professora de Pilates toca a campainha às 8 horas. Aí me obrigo a levantar e escovar os dentes." Clô vai ter de se disciplinar, contudo, a pular da cama "com as galinhas".

Sua fábrica fica na Barra Funda, onde muitas empresas foram vítimas de assalto. Por isso, a atual recomendação da segurança é que a equipe encerre o expediente às 20 horas. "Vou ter de compensar e chegar mais cedo. Não quero arriscar. Há quatro anos levaram praticamente tudo da fábrica. Foi o maior prejuízo da minha vida." O prédio alugado, uma antiga fábrica de confecção, foi reformulado há dez anos por Felippe Crescenti e tem um charme anos 50 no hall de entrada. Parece um salão de baile.

Silvia Costanti/Valor / Silvia Costanti/ValorDiante do risoto de lagostim: no fim, a revelação do que eram as "coisinhas deliciosas no meio"

Fazer moda hoje, admite, enquanto abocanha sua pupunha que acabou de chegar, é bem mais complicado. A competição se tornou brutal e "um 'business' do meu tamanho dá muito trabalho". As pessoas se tornaram mais difíceis e "os egos tomaram uma importância imensa". "Eu não sei se foi a educação que mudou. Você aprendia em casa o que era respeito. Hoje se confunde convicção com falta de educação. Falta esse olhar apurado para a arquitetura, as artes plásticas, para a moda. As pessoas carecem de uma formação para apurar o olhar. O bom gosto está em extinção."

Para ela, sua maior dificuldade é lidar com o "ser humano". "O empresário tem de ter muita paciência. É um equilibrista na conciliação, na sociabilidade. Na próxima encarnação quero nascer eu e meu pincel, eu e meu computador e não ter de lidar com muita gente." Não é que a declaração remete à peça de Jean-Paul Sartre, da qual Clô tirou o nome de sua grife, Huis Clos? É da personagem Garcim a célebre frase "o inferno são os outros."

O traço universal de suas roupas foi cultivado entre Bragança Paulista, onde foi morar numa fazenda aos 9 anos, e às idas ao ateliê Mariquita da tia Lydia Orozco, na rua Augusta, em São Paulo. "Naquela época não se repetia roupa e eu tinha vestido novo sempre. Já desenhava modelos e fui aprendendo modelagem." O pai, Pascasio Garcia, comunista e ateu, sempre incentivou a formação política e a independência da filha. Aos 13 anos, Clô já dirigia destemida um Fusca pelas estradas de terra da região para chegar à escola que era, adivinhe, católica. "Era a única menina que não tinha feito primeira comunhão. Fiz para não ser diferente, mas meu pai nunca me obrigou."

Mas aí, quando completou 18 anos e decidiu estudar na capital, o discurso paterno começou a mudar. "No fundo, ele queria que eu ficasse em Bragança, debaixo da asa dele e casasse com meu namoradinho da época. Não rolou." O pai disse que não iria sustentá-la, que ela teria de se manter em São Paulo. Isso era uma forma de inviabilizar sua opção pelo curso de arquitetura, que tinha aulas de manhã e à tarde. Daí ela fez cursinho no Equipe e optou, em plena ditadura, pela Faculdade de Sociologia e Política, na rua General Jardim. Durante o dia, trabalhava na área de recursos humanos do extinto banco Comind.

Como sempre foi tímida, sucumbiu ao apelo do primo Roberto Orozco - "que o Zé Celso Martinez disse ter sido o melhor ator que já dirigiu" - para fazer teatro na ACM. Atuou em uma única peça na vida e dividiu o palco com outra estreante, Sônia Braga. "Era uma comédia de que nem me lembro o nome. Mas, como todo tímido, eu me dei bem num papel cômico. O diretor queria que eu seguisse carreira, mas percebi que aquilo não era para mim. Sônia já era deslumbrante e anos mais tarde chegou a ir ao meu showroom, antes de se mudar para os Estados Unidos."

Era de esperar que, a partir daí, estrelasse desenvolta na militância política. Só que tinha muito medo. Mas bastou que o pai a proibisse de ir ao enterro de Vladimir Herzog em 1975 para que encontrasse coragem para se afirmar como simpatizante de esquerda. "Quase fui pisoteada pela cavalaria. Eu e uns amigos nos refugiamos do gás lacrimogêneo numa padaria que estava fechando. Nunca tive tanta dor de barriga." Até então, a maior ousadia tinha sido matar aula para... assistir aula. Explica-se: ali do lado de sua faculdade ficava a USP da rua Maria Antônia, cujo professor "lindo" era Fernando Henrique Cardoso. "Eu era sua tiete. Ele só dava aula no terceiro e quarto anos. Quando cheguei nesse estágio e podia me transferir, ele tinha sido exilado." Com o passar dos anos, ela ficou próxima de Ruth Cardoso, mas nunca amiga do ex-presidente.

Os enlevos sociológicos acabaram em romance, sim. Mas em outra vizinhança. Anos depois de terminar a faculdade, reencontrou um antigo professor, Carlos Alberto Dória, que veio a ser seu segundo marido. "Durou dez anos e ele é meu grande amigo até hoje."

O primeiro casamento e seu desabrochar para a moda se deram praticamente ao mesmo tempo. Na época, lia Durkheim em francês e desenhava roupas para as amigas, que insistiam ser essa sua verdadeira vocação. Antes de engrenar na carreira acadêmica, saiu do banco e montou uma multimarcas com uma amiga na rua Pamplona, a Splash. "Eu desenhava umas peças tipo 'robe du soir' e revendia roupas da Glória Coelho, da T. Macchione e jeans da Zoomp. Aí me casei com o Renato Kherlakian."

Quando descobriu que gostava mesmo era de criar e não trabalhar na loja, decidiu sair da sociedade e montar a própria grife. "O Renato me apresentou um atacadista de tecido. Eu terceirizava tudo com um senhor modelista que trabalhava numa fábrica de roupa de couro. Como não tinha dinheiro para máquina de corte, eu passava a noite na casa dele com a tesoura na mão."

Os pratos são alinhados na mesa. Comemos sofregamente. Só não há um silencio absoluto porque o restaurante é muito barulhento. Tanto que se ouve a conversa da mesa do lado. A fotógrafa até pescou uma. Mas fica mais para a frente.

Clô dividiu anos o mesmo endereço com Glória Coelho, onde tinham cada uma seu showroom, na região da marginal do Pinheiros, na rua Hungria. Sua roupa, na época, caminhava para uma proposta bem mais conceitual. "Eu já viajava e tinha me apaixonado pelo japonismo. Mas aí percebi que não tinha a ver com a brasileira e antes que fizesse uma roupa cabeçuda encontrei meu caminho."

As garfadas não param, mas ela se lembra de que desde pequena tinha mania de observar tudo. "Minha mãe [Carmela] dizia que eu saía da casa de alguém descrevendo todo o 'décor'." Somam-se a isso os dois lados espanhóis da família, Garcia e Orozco, que tornavam o cotidiano muito intenso. "Eu brinco que eu vivia um Almodóvar todos os dias. Cresci numa estética carregada, densa. Acho que foi por isso que tive vontade de ir para o mais simples no meu trabalho. Só que na época nem existia o conceito do minimalismo." Seu estilo se formatou instintivamente. "Eu não queria uma 'moulage' que deformasse o corpo. Minha roupa tem uma sensualidade, uma fenda, um insinuação. Com esses elementos eu fui formatando o que é Huis Clos hoje."

Suas peças gostosas e confortáveis têm uma sensualidade velada. "As mulheres hoje são magras e querem que tudo seja justo. É 'boring'. Detesto obviedade e vulgaridade", diz isso e seus olhos pousam instintivamente na moça da mesa ao lado num modelito "piriguete". Pois, veja só a coincidência. Como as mesas são coladas, a fotógrafa tinha ouvido que a tal vizinha estava ali agenciando garotas para o cavalheiro que comia salada. Almodóvar?

Numa comparação entre o público da década de 70, quando começou, e o atual, o que chama a atenção de Clô é "a falta de coragem". "As pessoas eram muito mais abertas. Hoje, mesmo com muito mais oferta e a democratização da roupa, é tudo estereotipado. Fazer moda é um exercício de frustração." Na fábrica, que tivemos a chance de visitar, Clô passeou pelas araras revelando as novas coleções tanto da Huis Clos quanto da Maria Garcia. Em algumas peças se detinha para explicar como "sua margem de criação tinha diminuído". "Não dá nem para fazer uma manga diferente que as clientes já implicam."

Entre o fim do bom gosto e as roupas justas, Clô busca ampliar o conhecimento de suas marcas para além do público consumidor de luxo nacional. Adorou a experiência no "fast fashion". Fez duas coleções para a Riachuelo e assinou uma linha de calçados para a Shoestock. Quer repetir a dose. A única frustração para a estilista que até já virou livro (editora Cosac Naify) é não ter tido a oportunidade de criar uma coleção de joias. "Eu suspiro de vontade."

Depois da recusa pela sobremesa, o garçom, num Epice bem mais vazio, tem a chance de nos contar o que são as tais "bolinhas" no risoto de lagostim. "Gelatina de maçã verde". Uau! "Mas como ele faz para ela virar bolinha?", quer saber Clô. "Parece que usa uma seringa, mas tem um segredo." Quem sabe o chef depois não manda a receita?

Na calçada, constantemente inspirada pela arquitetura, Clô olha para os prédios. "O crescimento caótico de São Paulo é instigante, esta modernidade nervosa. O tamanho me empolga, a sensação de eterno movimento." Dito isso, aponta para um edifício com sacadas arredondadas que ganham destaque no horizonte com uns raios de sol. "Olha que volume interessante." Vai embora em seu Passat preto, quem sabe com mais uma peça se desenhando na cabeça. Nada óbvia



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