Século XVII, pele negra, senzalas e chibatadas: é o que vêm à mente quando somos confrontados com a palavra “escravidão”. No Brasil, apesar da famosa abolição assinada com pena de ouro em 1888, ainda não foi abolido o trabalho exploratório. O tráfico de pessoas era e continua sendo uma prática que não só utiliza da engenhosidade dos dominadores, mas também dos próprios dominados. No século XVI, era impulsionado por conflitos tribais, hoje, pelo lucro rápido e fácil. “A história não quer se repetir – o amanhã não quer ser outro nome do hoje –, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia”, escreve Eduardo Galeano, em 2010, no prefácio para a nova edição do livro “As Veias Abertas da América Latina”, escrito nos anos 1970. Na mesma obra, Galeano conta a história de opressão da América Latina, entre ditaduras, nosso continente relegado ao imperialismo. Hoje, após muito desenvolvimento, estamos à mercê de nós mesmos. As personagens são diferentes, mas a história continua a mesma.
O ato de “prender” alegoricamente o empregado confunde quem ainda pensa no escravo de quatro séculos atrás. Para o Ministério do Trabalho, “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, é a definição do trabalho escravo contemporâneo. O cercamento psicológico ou a lavagem cerebral da qual o empregador se utiliza para amedrontar os trabalhadores preocupa as autoridades. Os patrões e coiotes, confiando na falta de informação dos bolivianos, criam narrativas que impedem a denúncia por parte deles. O direito de ir e vir, intrínseco ao brasileiro, estende-se apenas em teoria para os estrangeiros.
Envoltos em uma política nacional turbulenta, os bolivianos embarcam na perigosa trajetória até o Brasil em busca de melhor qualidade de vida. No entanto, após dívidas, ameaças e miséria, encaram jornadas diárias de mais de dez horas, condições de moradia e de trabalho precárias (muitas vezes moram onde trabalham, com um colchão ao lado da máquina de costura) e repetem, por anos a fio, a mesma costura reta. A vida dos imigrantes que trabalham em confecções se resume à sobrevivência.
Por trás das questões humanitárias, existe a economia: a indústria têxtil brasileira, quinta maior do mundo, pede ao governo por subsídios para poder competir com o mercado asiático, barato, subsidiado e abusivo. E utilizam desse argumento para justificar o uso de mão de obra escrava. O dumping social é o resultado, nome da prática que empresas adotam visando aumentar lucros pela exploração da mão de obra. Mas, nesse caso, para falar de dumping social não precisamos abordar as multinacionais, conhecidas por levar suas fábricas à locais onde leis trabalhistas não sejam prioridade. Hoje, muitos especialistas em moda slow afirmam que a probabilidade de uma calça jeans ter sido fabricada em regime análogo à escravidão é muito maior na lojinha do bairro do que na Zara, por exemplo. Não existe desculpa para as toneladas de lixo e para a incessante exploração que as grandes fast fashion promovem, mas talvez seja hora de olhar para nós mesmos, de uma perspectiva local. O dumping social vem do descaso com a vida humana, preços baixos não são um presente para o consumidor, e sim fruto do abuso do trabalhador.
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Fora das passarelas e das marcas de luxo, lojas locais terceirizam produções para evitar leis trabalhistas. As confecções contratadas por eles, muitas vezes, têm donos bolivianos ou coreanos. Que, por sua vez, repassam parte da produção para outras facções que promovem jornadas ainda mais exaustivas por preços ainda mais baixos do que a primeira. A complicada cadeia de produção clandestina dificulta o resgate dos trabalhadores. Ano passado, apenas 4% das mais de mil pessoas resgatadas em condições degradantes de trabalho no Brasil trabalhavam no setor de confecções.
A cultura econômica brasileira é de importação: exportamos matéria-prima utilizada para produzir as mercadorias de valor agregado que importamos. Dentro desse ciclo, favorecemos a escravidão asiática no mundo e latina no Brasil e milhares de empregos legais deixam de ser criados. Para exportar matéria-prima barata, competindo com os mercados subsidiados, produtores exploram seus empregados. Quando o produto volta, metamorfoseado em item de luxo (muitas vezes somente por não ser brasileiro), confecções locais procuram lucrar com pirataria, por exemplo, explorando seus empregados. O ciclo é ainda mais complexo e repetitivo. Mas, mesmo com as reduções tributárias atendidas, a sede por lucro não tem fim. A indústria têxtil chinesa, por exemplo, conhecida internacionalmente pela exploração de seus operários, recebe subsídios de seu governo.
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