Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Trabalho escravo ou análogo, aliado à violência sexual, coloca grandes magazines e marcas consagradas numa rede de denúncias que não cessam

Legenda: Oficina clandestina flagrada na cidade de São Paulo pelo Ministério do Trabalho.

 

Só existe quem vende droga porque existe quem compra. Esse princípio tão usado no tráfico de entorpecentes é também válido para o tráfico de pessoas, que chegam ao Brasil com a falsa promessa de prosperar trabalhando na indústria do vestuário. Parece exagero, mas não é. Quando se fala em trabalho escravo ou análogo à escravidão, não há ganhadores de nenhum lado. Só perdas irreparáveis que se acumulam a cada denúncia. Os trabalhadores sofrem todo tipo de violação aos direitos humanos, que vai desde casos de estupro à privação de liberdade e segurança não só de adultos, mas também de crianças. Já o varejo e as confecções perdem a credibilidade que levaram anos para conquistar, além de terem de arcar com multas altíssimas e correrem o risco de perder o direito de atuar no setor. E quanto ao país? Além de perder na arrecadação de impostos, o Brasil fica sob suspeita, o que compromete transações internacionais das mercadorias, prejudicando todos os esforços do segmento para exportar produtos e fechar acordos no exterior. Em resumo, esse é um péssimo negócio, cujas vítimas estão muito além daqueles que trabalham de forma clandestina. E quem alimenta esse perverso sistema? A lista é grande. Quem não é aliciador direto financia o processo para reduzir custos de produção, e quem não financia na linha de frente consome produtos atraídos pelo preço baixo sem questionar a procedência das roupas que veste.

Esse crescente efeito dominó expande-se cada vez mais, já que as denúncias de trabalho escravo na indústria da moda não param. Grandes redes e grifes de renome, como Zara, Marisa, Pernambucanas, Gregory, Collins, C&A, as marcas Cori e Emme, da Luigi Bertolli, e até M. Officer – denunciada em novembro passado –, entraram na mira do Ministério do Trabalho depois de serem acusadas de promover o trabalho escravo em oficinas de costura. Se esses já nos espantam, imagine aqueles que ainda não foram descobertos.

Luís Alexandre de Faria, auditor fiscal do Ministério do Trabalho, afirma que as maiores denúncias sobre trabalho escravo estão na indústria do vestuário, na agropecuária e na construção civil por se tratarem de setores extremamente pulverizados com alto índice de terceirização. “Eles utilizam em larga escala a mão de obra de imigrantes, que são por natureza a população mais vulnerável. Nas oficinas, encontramos sempre situações extremas, que colocam em risco a vida e a dignidade do trabalhador. Os casos de maior brutalidade são aqueles que incluem crianças no ambiente de trabalho, expostas aos mais diversos riscos físicos, biológicos e psicossociais, além das gravíssimas ocorrências de violência física contra mulheres grávidas e estupros de costureiras. Esse é o esquema produtivo típico da cadeia do vestuário conhecido como “sistema do suor”, alerta.

 

Legenda: Crianças em meio às máquinas de costura e uso de trabalho infantil são recorrentes.

 

Para coibir a prática criminosa, em 1995, durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, foram criados os Grupos Móveis de Fiscalização do Trabalho Escravo. De lá para cá, Faria garante que o governo apertou cada vez mais o cinto em torno das empresas que contratam oficinas ilegais. “Os infratores são punidos com a aplicação de multas por infringirem a legislação trabalhista e, conforme o caso, acionados judicialmente nas esferas trabalhista e criminal.

Além disso, são incluídos na “lista suja”, isto é, no cadastro de Empregadores Flagrados com Trabalhadores Submetidos a Condições Análogas à de Escravos do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), o que causará restrições de acesso aos créditos bancários. A partir de 2010, o MTE intensificou as ações de combate à prática com identificação e responsabilização de confecções, atacadistas e varejistas de vestuário que se beneficiam, direta ou indiretamente, da produção de oficinas de costura responsáveis por manter trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravos”, afirma.

De acordo com o auditor, o Ministério do Trabalho já flagrou cerca de 50 empresas detentoras de importantes grifes que contratam oficinas terceirizadas ou “quarteirizadas”. Por causa das inúmeras ocorrências, este ano as penalidades ficaram ainda mais severas, conforme descreve: “Recentemente foi aprovada também a Lei Estadual nº 14.946/2013, que estabelece a cassação do registro da empresa no ICMS e o impedimento aos sócios e titulares de exercerem o mesmo ramo de atividade, ainda que em estabelecimento distinto daquele. Os proprietários são impedidos de entrar com pedido de inscrição de uma nova empresa, ficando impossibilitados de atuar na mesma área por um período de dez anos”, ressalta Faria.

 

O QUE DIZEM OS REPRESENTANTES DO SETOR

Boa parte das empresas acusadas de trabalho escravo ou análogo à escravidão alega ao Ministério do Trabalho que desconhecem as práticas utilizadas pelas empresas terceirizadas. “Essa justificativa é uma mentira. As redes de varejo sabem exatamente onde está cada peça de suas marcas. Elas têm obrigação de conhecer de fato quem são seus fornecedores. Como um empresário reduz o número de trabalhadores e quadriplica a produtividade sem perceber? Não existe tecnologia disponível até hoje que faça esse tipo de milagre. As empresas devem cumprir o que determina a lei até porque não se pode alimentar uma concorrência desleal com empresários sérios que pagam seus impostos e respeitam os direitos dos trabalhadores”, aponta Eunice Cabral, presidente do Sindicato das Costureiras.

Cerca de 20% a 30% das denúncias de trabalho escravo partem do sindicato, afirma Eunice. Embora os escândalos tenham tomado proporções maiores nos últimos anos, o assunto não é recente. “Nosso setor sempre foi suscetível a abusos. O trabalho análogo à escravidão surgiu na década de 1990, quando se iniciou a abertura de mercado para empresas estrangeiras, aumentando as importações e favorecendo a informalidade”, lembra Eunice. Mesmo com todo o empenho do Ministério do Trabalho e de outras entidades de classe como o sindicato, não é fácil identificar os aliciadores e onde eles estão localizados. “Não temos ideia de quantas oficinas ilegais existem, pois elas funcionam dentro de casas alugadas, que permanecem com portas e janelas fechadas. Os proprietários muitas vezes não permitem que os trabalhadores circulem livremente e ameaçam entregá-los à polícia por não portarem documento oficial. Isso certamente inibe o número de queixas.

Outro fator que dificulta o trabalho de identificação é a fuga da capital para o interior de São Paulo. Com as notícias recentes a respeito dos flagrantes, eles começaram a mudar de endereço para driblar a fiscalização”, declara Eunice.

Proteger as fronteiras brasileiras não seria uma forma de evitar tais ocorrências? Pouca gente sabe, mas, desde de novembro 2002, quando o Brasil assinou o acordo entre as nações que integram o Mercado Comum do Sul (Mercosul), Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile têm suas fronteiras livres, ou seja, permitem o livre trânsito de cidadãos dessas nacionalidades nos seis países. “Embora as fronteiras estejam abertas, é claro que entram pessoas em nosso país sem mostrar a documentação necessária. O governo poderia ser mais firme na exigência dos documentos, mas não é o que acontece”, lamenta a sindicalista.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias do Setor Têxtil, Vestuário, Couro e Calçados (Conaccovest), em conjunto com o Sindicato das Costureiras, promove ações interessantes para alterar essa realidade. No primeiro trimestre de 2013, a organização realizou um encontro com a Zara – empresa do grupo espanhol Inditex, que chegou a receber denúncias de trabalho escravo em 2012. Depois de assinar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério do Trabalho, a Zara, em conjunto com a Conaccovest, comprometeu-se a acompanhar de perto toda sua linha de produção, garantindo assim o respeito às leis do nosso país. De fevereiro a março deste ano, uma comitiva formada por representantes do grupo espanhol e da Conaccovest visitou várias empresas no interior paulista, que foram contratadas pela Inditex. “Nosso objetivo foi conhecer de perto a real relação dessas empresas com a Zara, incluindo entrevistas com os trabalhadores. Acredito que somente por meio de um trabalho tripartite como esse, no qual trabalhadores, indústria e poder público dialogam juntos, é que conseguiremos encontrar soluções e fazer o setor crescer”, finaliza Eunice Cabral, que também presidia o Conaccovest.

A Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) engrossa o coro para abolir o trabalho escravo. “Estamos juntos com o Ministério do Trabalho para coibir esse tipo de crime. Acreditamos que é muito importante também conscientizar os próprios imigrantes bolivianos que chegam aqui sem conhecer as leis brasileiras. Por essa razão, em outubro passado, fizemos uma parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), com o objetivo de capacitar e, sobretudo, formalizar os bolivianos no mercado de trabalho.

Trata-se do Projeto de Capacitação para Estrangeiros Empreendedores, que inclui palestras sobre gerenciamento e marketing, treinamento de qualidade para os líderes de produção, além de abranger disciplinas mais técnicas, como modelagem, corte e finanças. O projeto está no início, mas estamos otimistas com os resultados”, informa Sylvio Napoli, gerente de tecnologia e inovação da Abit. Para ele, esse assunto merece tratamento especial. “É preciso muito cuidado ao abordar esse tema. O Brasil não tem só trabalho escravo. Há muita gente séria que atua no segmento. Somos a segunda maior indústria do país, com cerca de 1,7 milhão de pessoas trabalhando com carteira assinada. Por essa razão, é imprudente colocar todos no mesmo barco, uma vez que essa atitude pode prejudicar o trabalho de várias pessoas e organizações idôneas, que se esforçam para fortalecer o mercado nacional e gerar empregos”, adverte.

Legenda: Apresentação do Projeto de Capacitação para Estrangeiros Empreendedores, promovido na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo. Entre os participantes, estão: Jaime Valdívia, cônsul da Bolívia em São Paulo; Atílio Machado Pepe, do Ministério do Trabalho; Luiz Antonio Medeiros, do Ministério do Trabalho em São Paulo; Bruno Caetano, diretor-superintendente do Sebrae/SP; Simone Braga, da Secretaria do Trabalho da prefeitura; e Renato Bignami, da SRTE/SP (Superintendência Regional do Trabalho e do Emprego).

No olho do furacão, quem lida todos os dias com as principais redes de varejo é a Associação Brasileira do Varejo Têxtil, que lançou em setembro de 2010 a Certificação de Fornecedores ABVTEX. José Luiz da Silva Cunha, diretor-executivo da associação, diz que posicionamento a entidade tomou diante das notícias recorrentes de trabalho escravo no meio varejista: “Para nós e todos os associados, o uso de trabalho análogo ao escravo deve ser combatido de forma ostensiva. Foi justamente esse pensamento que nos motivou a evitar tal prática. Para isso, foi criada a Certificação de Fornecedores ABVTEX. Com o apoio de quatro organismos certificadores independentes e de renome (ABNT, BVQI, Intertek e SGS), são realizadas auditorias na cadeia de fornecedores das redes varejistas signatárias da certificação. Como o ato de “fiscalização” compete unicamente ao poder público, cabe a esses auditores a função de monitorar a cadeia em relação às melhores práticas e apontar conformidades e não conformidades. Na verdade, quando há algum registro de uso de trabalho análogo ao escravo no fornecedor, ele fica impedido de obter a certificação”, detalha o diretor da ABVTEX.

A Hippychick Moda Infantil foi uma das marcas que chegou a possuir o selo da ABVTEX de responsabilidade social, mas o perdeu depois que o Ministério do Trabalho flagrou em fevereiro de 2013 parte de sua produção sendo feita numa oficina que explorava bolivianos em condições análogas à da escravidão. “No caso de flagrante de qualquer empresa já certificada, ela perde imediatamente o selo da certificação. Foi o que aconteceu com a Hippychick, excluída da certificação (e o único caso do gênero dentro desse processo). Não aceitamos que empresas se utilizem de procedimentos ilícitos para obter qualquer vantagem competitiva”, garante o diretor-executivo.

Hoje, a ABVTEX representa 17 grandes redes varejistas nacionais e internacionais de vestuário, contabilizando mais de 4.771 lojas em todo o território nacional. Em outubro passado, a associação fez um balanço do programa de certificação. “Do total de 5.647 empresas, 4.260 obtiveram a certificação e 1.108 encontram-se em plano de ação pendente, ou seja, ainda não receberam a certificação em função de ações corretivas. Esperamos que nosso trabalho possa contribuir para o sucesso do poder público em erradicar essa prática. No entanto, vale lembrar que, mesmo que as auditorias façam um espécie de raio X dos fornecedores, podem acontecer variações dependendo do momento analisado. Por isso, fazemos também auditorias sem aviso prévio. O objetivo da ABVTEX é aprimorar as ferramentas de controle da cadeia, complementando as ações que já são realizadas de forma sistemática pelos varejistas signatários da certificação”, enfatiza Cunha.

MÃO DE OBRA CONSORCIADA: ALTERNATIVA PARA PRODUZIR COM O AUXÍLIO DAS LEIS

É possível acabar com as oficinas clandestinas e oferecer aos empresários condições de competir com os produtos importados? Sim. Uma das saídas é optar por centrais de mão de obra consorciada. O novo modelo de gestão foi apresentado em São Paulo no início de dezembro no seminário “Reduzindo Custos”, promovido pela Associação Brasileira do Vestuário (Abravest). Em parceria com a Associação Tecendo e Costurando o Futuro (Tecof), a entidade levou Takashi Yamauchi, consultor do Centro de Estudos e Difusão do Terceiro Setor, que mostrou que dá para competir usando as leis a favor dos confeccionistas. “O consórcio de mão de obra é uma associação formada por uma confecção baseada na lei federal nº 9.790/99 – Oscip. Por meio dessa formatação, o empresário reduz custos, diminui atritos e o melhor: ganha isenção tributária. Além disso, é possível receber recursos financeiros do governo federal por meio dos programas de emprego e renda. O problema é que vários executivos desconhecem as facilidades do terceiro setor. Eles pouco ou nada sabem sobre o comércio justo e as diversas leis que facilitam a vida de quem quer produzir e gerar renda para a população. A disseminação desse conhecimento e sua aplicação poderiam eliminar de vez o trabalho escravo e o infantil”, assegura Takashi. Segundo ele, as associações já são bastante utilizadas em outros setores, como o automobilístico. “Há muito tempo a Volkswagen e a GM dividiram sua produção em diversos núcleos de consórcio de mão de obra e, com isso, ganharam mais espaço no mercado. Na área de vestuário, um exemplo bastante positivo é a Hering. A marca conseguiu diluir a fabricação das suas peças em mais de 70 associações espalhadas pelo Vale do Itajaí (SC). Reduziu custos, gerou trabalho e renda na região e ainda conquistou novos consumidores”, complementa.

Durante o evento, Takashi ainda falou sobre a formação da central de mão de obra, imunidade tributária, central de compra associativa, selo social e ambiental, entre outros tópicos. Para entender melhor como funciona essa forma administrativa, o consultor recomenda procurar a Tecof, que desenvolve programas de assessoria para as empresas de confecção e vestuário para sua adequação às normas de responsabilidade social e ambiental, baseadas na legislação vigente. “Todos esperam o projeto de lei proposto durante o governo do Fernando Henrique Cardoso, que flexibiliza a terceirização, mas até agora ele não saiu do papel. Temos de buscar outras alternativas para enfrentar os produtos importados sem precisar virar caso de polícia, lesando a vida de tantas pessoas. A Abravest, junto com a Tecof, apresentou essa solução, mas poucos demonstram real interesse. O fato é que sempre existem saídas, mas, para encontrá-las, é necessário correr atrás das informações e isso requer disposição e empenho”, frisa Roberto Chadad, presidente da Abravest.

VOZ ÀS VÍTIMAS

Sempre mencionados nas notícias investigativas, mas pouco ouvidos, os imigrantes explorados em oficinas de costura têm muito a dizer. Divulgaremos aqui somente as iniciais dos entrevistados para protegê-los de qualquer tipo de ameaça. “Cheguei ao Brasil em 1994. Logo no início, entrei numa oficina de costura localizada no Cambuci. Mesmo sem ter experiência nessa área, sabia que esse era o trabalho mais fácil para quem chega da Bolívia. Trabalhava das 7h às 23h e ganhava apenas R$ 0,30 por peça costurada. Morava no mesmo local em que trabalhava e só depois que cheguei ao Brasil fui informado que teria de trabalhar para pagar as passagens de vinda, pois fui abordado em meu próprio país para vir para cá em troca de uma vida melhor. Esse é um procedimento padrão dos donos das oficinas. Eles vão até lá para captar pessoas. Como eles geralmente são bolivianos também, é mais fácil nos convencer de que é uma boa oportunidade. Cheguei a ficar oito meses sem receber nada por aquilo que trabalhava e só consegui receber o que me era de direito porque denunciei a oficina ao Consulado da Bolívia, que me ajudou a sair de lá”, conta H. R. R.

A mulher sofre ainda mais nesse esquema “sujo” de produção, como revela R. B. R. “Saí da Bolívia em 2010 porque estava com depressão e soube que aqui as chances poderiam ser melhores. Foi meu próprio primo quem me convidou para trabalhar na oficina de costura que ele montou no Brasil. Foi um dos períodos mais difíceis da minha vida. Eles serviam comida podre para nós e o local não apresentava segurança alguma. Chegávamos a produzir mil calças em dez dias por R$ 0,80 a peça costurada. Para isso, trabalhávamos em cima da máquina de costura por até 16 horas consecutivas. Quem tinha crianças era obrigado a deixá-las presas num quarto. Mas o pior momento foi descobrir que meu próprio primo estuprou minha sobrinha de 15 anos e deixava os demais homens da oficina fazer o mesmo. A menina me pediu socorro, mas não sabia o que fazer para ajudá-la porque eu era vítima ali também”, lamenta.

No final de novembro de 2012, outro caso de violência sexual veio à tona na mídia. G. C. V., de 21 anos, foi vítima de estupro na oficina de costura onde trabalhava sob as mesmas condições de R. B. R. Assustada com o ocorrido, decidiu voltar para a Bolívia depois de ser ameaçada de morte. A jovem foi embora sem receber os salários atrasados nem qualquer tipo de indenização.

O boliviano J. C. avalia o esquema sob a ótica de quem é lesado. Há mais de 30 anos no Brasil, ele chegou aqui para trabalhar com música, mas acabou entrando em oficinas de costura. Ao todo, já passou por oito. Sofreu os mesmos maus-tratos que seus compatriotas. “O boliviano explora o próprio patrício quando chega aqui, mas as grifes sabem sim a forma precária em que trabalhamos e vivemos. Eles fazem “vistas grossas” porque é conveniente para eles obter uma mão de obra tão barata. Para que isso mude, só com a formalização do trabalho e a igualdade de direitos, como ao voto, por exemplo”, destaca J. C.

ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO

Exterminar o trabalho escravo e a violação de direitos humanos não são tarefas simples. Entretanto, a atuação do Ministério do Trabalho, as visitas constantes aos fornecedores, somadas à capacitação e à formalização dos trabalhadores estrangeiros, já são ações importantes para uma mudança de cenário. Outro passo louvável no combate à exploração foi dado no início de outubro passado, quando o prefeito Fernando Haddad assinou o decreto que regulamenta e institui a Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Escravo (Comtrae/SP), cujo objetivo é unir setores da sociedade – empresários, governo e trabalhadores – para prevenir e combater esse tipo de violação aos direitos humanos.Com a assinatura do decreto, São Paulo torna-se a primeira cidade do país a ter uma comissão para erradicar o trabalho escravo, que ficará sob a responsabilidade da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. No encontro, também foi firmada a parceria da prefeitura com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e instituído o Comitê Municipal pelo Trabalho Decente. Juntos, eles terão a missão garantir tratamento igual aos trabalhadores, combater o trabalho forçado e infantil e fortalecer o diálogo com a sociedade civil.

“Vamos nos dedicar a criar políticas públicas para o enfrentamento do trabalho escravo. O governo municipal, em conjunto com as Secretarias de Desenvolvimento Social e Justiça, unirá esforços para erradicar o tráfico de pessoas, o trabalho escravo e infantil. Temos de promover também a conscientização e inclusão social dos imigrantes. Não é raro os bolivianos, por exemplo, se sentirem escravos. É preciso oferecer uma assistência que está além dos direitos trabalhistas. Só assim vamos conseguir reinseri-los na sociedade e no mercado formal”, disse Marina Novaes, assessora especial para a Promoção do Trabalho Decente da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Participaram também do evento representantes da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), que destacaram a importância de garantir que os produtos brasileiros, vendidos nacional ou internacionalmente, sejam produzidos de forma digna.

Já o prefeito chamou atenção para a investigação. “Este não é mais um fenômeno de massa, ele exige uma busca ativa dos empresários que utilizam o trabalho dessa maneira, além de punição exemplar”, afirmou. A comissão é paritária com representantes do poder municipal e da sociedade civil. O acordo de cooperação técnica entre a prefeitura e a OIT, representada pelo diretor-geral do Escritório Internacional de Trabalho da OIT, Guy Ryder, fomentará uma agenda de políticas públicas e diálogo social em torno do tema do trabalho decente.

 

RELATO DE QUEM CONSEGUIU SUPERAR

“Nasci em La Paz (Bolívia) e vim para o Brasil com apenas 7 anos de idade. Minha mãe e eu chegamos aqui em 1990 para ajudar meu pai a trabalhar na oficina que ele montou no Bom Retiro, em São Paulo (SP). Meus pais vieram para cá porque queriam abandonar a vida difícil que tinham e obter mais segurança. Na verdade, ter perspectivas melhores é a motivação de todo estrangeiro quando sai de seu país. Até porque sabemos que no Brasil existe mobilidade social, mesmo que seja a partir de muito trabalho. Lá na Bolívia isso é impossível. A oficina que meu pai montou era ‘de fundo de quintal’, porém, já naquela época, ele foi obrigado a fazer inscrição no município para conseguir emitir nota fiscal. Havia trabalhadores, mas eles não eram registrados porque o dinheiro pago às oficinas pelas confecções era tão irrisório que jamais conseguiríamos atingir o piso salarial de cada um deles. O dia a dia na oficina era sacrificado. Durante os oito anos em que estive lá com minha família, trabalhávamos como qualquer outro funcionário, ou seja, das 8h às 21h. Apesar da extenuante carga de trabalho, todo final de ano juntávamos os salários e viajávamos para a Bolívia. Quase todos faziam a mesma coisa a fim de descansar e levar sustento para suas famílias. Entretanto, ficávamos endividados com as contas, como aluguel, luz e água. Assim, tínhamos de trabalhar muito para passar cerca de três meses com pouquíssimo serviço. Agora, depois de adulta, percebo que ainda hoje a dinâmica do trabalho nas oficinas mantém esse ciclo de sobrevivência caótico, pois não há tempo para se qualificar ou ir atrás de outras oportunidades, já que cada dia não trabalhado é um dia de prejuízo financeiro. Percebo também que nossa oficina faliu porque meus pais não ‘exploravam’ os trabalhadores como nos demais lugares. Com o que as lojas e confecções pagam só é possível ter margem de lucro se explorar muito as pessoas que ali estão. Caso contrário, o destino final é mesmo a falência. Quanto aos casos de violência sexual, infelizmente eles se tornaram recorrentes. Não há o que justifique, mas algumas condições favorecem a situação. É muitíssimo caro alugar espaço onde se possa morar e trabalhar também. Sendo assim, tudo é improvisado em quartos coletivos, separados por divisórias de tecido. Desta forma, criam-se minissociedades de homens e mulheres com vários tipos de personalidade e índole. Na maioria das vezes, são jovens ávidos por experiências sexuais que, por não terem outros círculos de amizade, se relacionam sempre com os próprios colegas de trabalho. Quando a mulher negava se relacionar, ela podia sofrer abuso sexual. Somos sempre as maiores vítimas. Já soube de vários estupros nas oficinas. Na época em que trabalhava com minha família, as meninas violentadas procuravam minha mãe, pois a maioria delas tem vergonha de denunciar e acaba fugindo. É triste, mas é o que acontecia. A questão do trabalho escravo é muito grave, e uma das principais razões que pioram esse quadro é que cerca de 90% dos trabalhadores não se consideram escravos, porque chegaram ao Brasil por vontade própria. Quando vou discutir esse assunto, prefiro escolher o termo ‘trabalho indigno’. Os bolivianos só aceitam essas condições por completa falta de opção. Fala-se muito sobre direitos trabalhistas e trabalho decente para todos, entretanto, que políticas públicas de inserção de imigrantes existem no Brasil?

Quando alguém ou algum órgão institucional oferece ajuda a esse trabalhador, geralmente ele sai do ciclo de oficinas informais e não volta mais. Contudo, quantos dos quase 300 mil têm essa oportunidade? A necessidade de um teto faz qualquer pessoa tolerar muitas coisas. Para transformar essa realidade, é fundamental democratizar informações e flexibilizar algumas leis. Enfim, é preciso que o Estado assuma como sua responsabilidade a integração dos trabalhadores imigrantes, além de exigir que as marcas remunerem melhor as oficinas de costura. Graças a Deus, tracei um futuro diferente da maioria dos meus patrícios. Depois que a oficina faliu, concluí o ensino técnico de enfermagem, paguei meu próprio cursinho e fiz odontologia. Hoje, atuo no serviço público, mas nos fins de semana me dedico ao projeto social Si, Yo Puedo. Essa é minha contribuição para melhorar a vida de todos nós.” (Veronica Quispe Yujra, dentista)

 

DEFINIÇÃO DE TRABALHO ESCRAVO OU ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO

A Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1930, define sob o caráter de lei internacional o trabalho forçado como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”. A mesma Convenção nº 29 proíbe o trabalho forçado em geral incluindo a escravidão, mas não se limitando a ela. A escravidão é uma forma de trabalho forçado. Constitui-se pelo controle de uma pessoa sobre outra, ou de um grupo de pessoas sobre outro grupo social. Trabalho escravo configura-se pelo trabalho degradante aliado ao cerceamento da liberdade. Esse segundo fator (cerceamento da liberdade) nem sempre é literal, uma vez que não mais se utilizam correntes para prender o homem à terra, mas sim ameaças físicas, terror psicológico ou mesmo as grandes distâncias que separam a propriedade da cidade mais próxima. De acordo com o relatório de 2001 da OIT, é trabalho forçado aquele que deixa o trabalhador atrelado a uma dívida, retém seus documentos e normalmente o coloca em local isolado.

http://www.costuraperfeita.com.br/edicao/24/materia/especial.html

Por Roselaine Araujo

 

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Respostas a este tópico

Só existe quem vende droga porque existe quem compra. Esse princípio tão usado no tráfico de entorpecentes é também válido para o tráfico de pessoas, que chegam ao Brasil com a falsa promessa de prosperar trabalhando na indústria do vestuário.

HISTORIA, moderna. ESTORIA antiga. O fator escravidão, não tem antecedencia, é a propria historia do mundo. Sempre houve épicas narrativas de escravidão no mundo. Podemos e devemos coibir a pratica, mas sem antes passar por profundos ajustes nas LEIS TRABALHISTAS e TRIBUTARIAS. No dia a dia das empresas, tudo é ajustado em função de ter custos a serem reduzidos, é a palavra de ordem e prioritaria, se quiserem manter-se competitivos e vivos no mercado global e perverso.

Devemos ter condições de reparar o processo, para reduzir a pratica, mas perseguindo as empresas é mera caça as bruxas. Devemos já que todos sabem onde mora o problema, ir até ele e oferecer condições de regularizar estes "ESCRAVOS", traze-los do anonimato ao trabalho formal, legal. O sindicato quer holofotes e se pega uma grande marca então é a gloria, mas não pensa em quantas familias se ajudadas a se converterem um funcionais estaria salvando. Só espero que possamos dar soluções sem martirizar pessoas e processos, bem como uma melhor competencia, em coibir de chegarem ao Brasil, importações que tambem são de trabalhos escravos, de paises tb. já conhecidos desta pratica, e, concorrem deslealmente com nossas empresas.

Trabalho escravo configura-se pelo trabalho degradante aliado ao cerceamento da liberdade.

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