Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Crise do e-commerce de luxo: será o fim para os grandes nomes do setor?

A Matches despediu quase metade do seu pessoal – 273 pessoas – enquanto navega por um processo administrativo enquanto o especialista em insolvência Teneo procura um comprador. A empresa empregava 533 pessoas nas suas três lojas e sede em Londres, a partir de onde vende para consumidores em 170 países.

Benji Dymant, administrador adjunto, afirmou: “Tal como muitos retalhistas de moda de luxo, [a Matches] registou um declínio acentuado na procura ao longo do ano passado, impulsionado por pressões bem divulgadas sobre as despesas discricionárias, resultantes do ambiente macroeconómico de inflação elevada e elevada taxa de juros."
 
Já tínhamos ouvido, por parte do seu proprietário, o grupo Frasers (que a comprou apenas por 52 milhões de libras - 60,1 milhões de euros - pouco antes do Natal) que estava em pior estado do que o esperado e precisaria de um investimento considerável para recuperar.

E não sabemos se a Frasers está a considerar um acordo administrativo pré-definido. “Os administradores continuarão a avaliar a estrutura apropriada para o negócio à medida que as discussões de venda avançam”, indicam-nos.
 
Então, o que correu mal, não só na Matches, mas no setor mais vasto do comércio eletrónico de moda de luxo, que outrora parecia destinado a conquistar uma quota crescente das vendas de luxo e no qual os retalhistas do Reino Unido têm sido líderes?
 

Tempos difíceis

Basta ver o que aconteceu. O Yoox Net-A-Porter (YNAP), em parte italiano e em parte britânico, era há vários anos uma dor de cabeça para a sua proprietária Richemont quando, em 2022, fechou um acordo complexo para que a Farfetch o comprasse (na verdade seria “uma plataforma neutra sem um acionista maioritário”). Mas, continua a ser uma dor de cabeça, uma vez que este acordo falhou.
 
E dizia-se que a Farfetch estaria perto do colapso antes de encontrar um salvador – a Coupang, que acredita que poderá colocá-la novamente em forma para uma rentabilidade sustentável. O mesmo para a Matches. Mas, desta vez o seu salvador arrependeu-se quando o grupo Frasers a colocou em administração apenas 11 semanas após a sua compra.
 
Um cenário bastante diferente da última década, quando os retalhistas de moda online de luxo fundados no Reino Unido estavam em expansão.



Net-A-Porter


Em 2015, a Yoox e a Net-A-Porter fundiram-se para criar a empresa de retalho de luxo de temporada e a preços reduzidos YNAP. A Richemont gostou tanto das suas perspetivas que assumiu o controlo em 2018.

Em 2017, a gigante de private equity Apax Partners pagou cerca de 800 milhões de libras pela Matches, deixando os seus fundadores, Ruth e Tom Chapman, “em estado de choque”.
 
Depois, em 2018, a Farfetch, fundada pelo português José Neves e com sede em Londres, cotou-se na Bolsa de Valores de Nova Iorque com uma avaliação que se aproximava dos 6 mil milhões de dólares.
 
Parecia que o comércio online de moda de luxo seria um dos maiores motores de crescimento para marcas que anteriormente temiam desvalorizar a sua imagem através da venda online.
 
E só melhorou a partir daí. A pandemia foi uma bênção para o comércio eletrónico, sendo os retalhistas online o único recurso disponível para quem desejava comprar moda de alta qualidade. José Neves, da Farfetch, falou de uma “mudança de paradigma em direção ao luxo online”, sendo a Farfetch um motor dessa mudança.
 
À medida que a pandemia diminuía, muitos estavam confiantes de que o comércio eletrónico manteria a maior parte da sua quota de mercado e estava preparado para anos de forte crescimento do GMV e das receitas, bem como de uma rentabilidade sustentável.
 

Como se engaram...



Alice Price, analista de pronto-a-vestir da GlobalData, resumiu, dizendo à Fashionnetwork.com: “Embora ainda não seja certo se o grupo Frasers irá dissolver completamente a Matches ou usar a administração para reestruturar a empresa e reduzir os seus custos operacionais, esta notícia representa o mais recente golpe para marketplaces de luxo. Além do fim da Matches, a Mytheresa e a Yoox Net-a-Porter continuam a reportar uma queda na procura, e a Farfetch foi adquirida pela Coupang em dezembro por uma fração da sua avaliação anterior de 20 mil milhões de libras.”
 
Para Price, tudo se resume a duas questões: aspirantes a compradores com pouco dinheiro e marcas que preferem o DTC ao comércio grossista.
 
“Os marketplaces de luxo continuam afetados pelo abrandamento geral da demanda de luxo, particularmente na Europa e nos Estados Unidos, à medida que os aspirantes a compradores continuam a reduzir os seus gastos num ambiente de pressões inflacionárias persistentes”, disse. “As marcas de designer também começaram a reduzir a sua dependência dos parceiros grossistas, investindo em vez disso nos seus negócios diretos ao consumidor para obter maior controlo sobre as imagens das suas marcas e manter o seu apelo exclusivo. Isto fez com que os marketplaces sentissem uma diminuição na aquisição dos clientes, com a Matches a recorrer a descontos para atrair vendas, o que, por sua vez, afetou as suas margens e também a perceção dos consumidores.”

E Eric Musgrave, jornalista e comentador da indústria da moda, acredita que os problemas são um sinal de que o luxo poderá não ser tão especial como pensa. “A triste saga da Matches lembra-nos que o chamado mercado do luxo se rege pelas mesmas regras de negócio de qualquer outro setor”, explicou. “Deve haver um rigoroso controlo de custos. E não existe um grupo interminável de pessoas ricas que continuam a comprar coisas apenas por diversão. As aspirações da Matches eram ambiciosas demais e, ao que parece, terão sido mal geridas desde que a Apax a adquiriu. Malin Tom e Ruth Chapman foram muito inteligentes por sairem quando o fizeram.”
 
Mas, que outros problemas enfrentaram estes gigantes online que contribuíram para o seu declínio?
 

Custos/investimento



Os custos de vender um artigo online, entregá-lo e potencialmente processá-lo como devolução não são insignificantes. E, para as operações do luxo em particular, tentar oferecer uma experiência que exceda o que o comprador poderia obter com a ASOS ou a Zalando aumenta os custos. Todos os camiões da marca Net-A-Porter, as caixas de fósforos marmorizadas, as linhas telefónicas prioritárias VIP e outros serviços VIP, as informações extra detalhadas do produto, cada artigo fotografado num manequim e não num avatar, a entrega em 90 minutos e muito mais têm o seu custo.



Farfetch - DR


Price, da Globalata disse: “A decisão do grupo Frasers de fechar a Matches logo após a sua aquisição sugere que subestimou a escala do investimento e o tempo necessário para supervisionar uma recuperação. Embora a Frasers tenha conseguido devolver a rentabilidade à retalhista de luxo Flannels após a sua aquisição em 2017, a especialização online da Matches terá apresentado desafios desconhecidos à Frasers, que não teria experiência ou capacidade para os resolver facilmente, sendo a maior parte do seu portefólio multicanal. Vender luxo online é particularmente desafiador, já que os compradores geralmente preferem experimentar e ver produtos caros pessoalmente antes de os comprar.”
 

Fazer os clientes sentirem-se especiais... todos os clientes



Há muitos comentários online que falam sobre longos períodos de espera ao telefone, entregas caóticas e reembolsos tardios em retalhistas online de luxo. Isto também se aplica aos seus pares mais acessíveis. Mas, a diferença é que os consumidores perdoam menos quando pagam 900 libras do que quando pagam 24,99 libras. Por mais que tentem, é um desafio para os retalhistas online replicarem no digital a experiência das boutiques de luxo, especialmente numa altura em que os consumidores estão novamente a recorrer com entusiasmo às lojas físicas.

Muitos retalhistas online esforçam-se para atingir os clientes maiores e que mais gastam, e isso faz sentido. O CEO da Mytheresa, Michael Kliger, disse recentemente à Fashionnetwork.com que os seus 3,8% principais clientes representam quase 39% dos seus negócios. Mas, os aspirantes a clientes não podem ser negligenciados e o responsável admitiu que alcançá-los está a tornar-se cada vez mais difícil.
 
Aqueles que não têm um fundo fiduciário gostam de sentir que o seu pedido de 500 libras é realmente importante para uma empresa, mesmo que esta também processe pedidos na casa das dezenas de milhares.

E um grande problema para o retalho digital de luxo nos tempos que correm é que esse cliente tem muitas outras opções, em vez de comprar sapatos de marca de alta qualidade que poderiam custar 350 libras há 20 anos, mas agora custam mais do dobro desse preço (embora a inflação devesse significar que custariam “apenas” 375 libras).
 
Então, para onde estão a ir? Para marcas premium como as que são propriedade da SMCP, ou Zadig et Voltaire, Whistles e similares. Para centros outlet em expansão, como os pertencentes à operadora VIA Outlets. Para as vendas de excedentes de stock de designers e grandes armazéns. E online rendem-se ao crescente mercado da segunda mão.

Andy Mulcahy, diretor de estratégia e insights do especialista em dados de comércio eletrónico IMRG, disse-nos que este é o maior problema que afeta as vendas de e-commerce de luxo e persistirá mesmo depois após a crise do custo de vida passar. 



Matches


“As pessoas começaram realmente a usar opções C2C nos últimos 12 meses, principalmente a Vinted. A Collect + diz que [a Vinted] representa atualmente uma parte significativa do seu volume. Se se conseguir marcas premium lá, em segunda mão, mas ainda em boas condições, acho que isso criará uma concorrência real para esse tipo de marcas.”
 
E, claro, o mesmo se aplica a muitos sites de revenda sofisticados, como o Vestiaire Collective, onde um comprador pode comprar um casaco Dior Bar em perfeitas condições (PVP 3.500 libras) por cerca de 1.200 libras, ou um produto de uma marca menor por talvez 20% do seu preço novo.
 

Recuperação física



Não podemos ignorar o facto do retalho físico ter renascido de uma forma que ninguém esperava. A procura por espaços luxuosos em ruas como Bond Street, Avenue Montaigne, Via Monte Napoleone, Quinta Avenida, Dubai Mall e outras é forte. Os retalhistas, desde grandes armazéns de luxo a marcas individuais, estão a redobrar esforços para atrair compradores para as suas lojas, e também estão a ligar as suas lojas físicas às suas operações online para criar experiências omnicanal com as quais os pure players  (ou mesmo quase pure players, como Matches ou Farfetch, graças à sua propriedade da Browns) não podem competir.

Isto significa que o e-commerce enfrenta enormes desafios, mesmo sem os problemas específicos do negócio. Como disse Mulcahy: “Não há dúvida de que o mercado [online] está numa situação difícil. Após a pandemia, [no Reino Unido] tivemos dois anos de crescimento decrescente (-10% em 2022, -3% em 2023) com uma previsão de 0% para este ano, [mas] janeiro começou em -7%. Saúde e beleza estão a ir muito bem, a maioria das outras categorias estão a passar por dificuldades e a moda está entre as piores. O crescimento foi de -6% em 2023 para o vestuário, em comparação com uma previsão de 0%.” É provável que estes números se repitam em muitos dos principais mercados de luxo.
 

Relações com as marcas



Tudo isto cria enormes pressões para os retalhistas online e fazer stock das marcas certas é crucial para que tenham alguma hipótese de sucesso. A indústria teve enormes problemas desde o início para atrair marcas que pensavam que o online não era o ambiente certo para elas. E alguns problemas persistem. Recentemente, a empresa matriz da END.Clothing divulgou resultados anuais nos quais afirmou ter sido “afetada pela retirada de franchises de marcas importantes”.

As relações com as marcas também eram um problema na Matches e quando a Sky News divulgou a história da recuperação judicial, disse que algumas marcas começaram a cortar relações com a empresa devido a problemas de pagamento, chegadas tardias e pedidos de descontos.
 
Quanto à Farfetch, antes da empresa ser vendida, a Richemont disse que as suas marcas não abririam as esperadas concessões online no site, enquanto Neiman Marcus e Kering cortaram relações. Aliás, a empresa proprietária da Gucci, Saint Laurent, Balenciaga disse mais recentemente que o comércio eletrónico como um todo diminuiu em percentagem das vendas totais do grupo e que a exposição direta das marcas da Kering à Farfetch foi limitada. Este foi um mau sinal não só para a Farfetch, mas para o comércio eletrónico de luxo em geral. Isto significava que um dos principais proprietários de marcas de luxo estava essencialmente a dizer que o comércio eletrónico não era uma prioridade para si.

Logística



Não se trata apenas de marcas, já que operações logísticas eficientes também são importantes. Os problemas logísticos nos nomes do luxo também mostraram que o segmento do luxo não está imune aos problemas que atingiram os fornecedores de produtos mais acessíveis como Boohoo, ASOS e Dr Martens.



Net-A-Porter


Uma vez mais, a experiência END. é um exemplo extremo disso. No ano em que foram apresentados os resultados acima mencionados, a empresa reportou problemas relacionados com um novo sistema de atendimento automatizado que causou um pesadelo logístico e essencialmente impediu que tanto a empresa como os clientes tivessem uma experiência tranquila e sem problemas.

O seu novo sistema de stocks, que deveria melhorar a gestão de stocks, não funcionou como planeado. Para minimizar o impacto sobre os clientes, foi necessário reduzir as atividades promocionais e de marketing para diminuir o tráfego no website. Desencorajar ativamente os compradores não é uma receita para o crescimento.

Excesso de confiança



Quando o grupo Frasers adquiriu a Matches, disse que esta tinha “relações incríveis com as suas marcas parceiras” e  ainda: “Estamos confiantes de que, ao alavancar o nosso ecossistema líder do setor, desbloquearemos sinergias e impulsionaremos um crescimento lucrativo.”

No entanto, ao declará-la em recuperação judicial semanas depois, disse que a Matches "não conseguiu cumprir consistentemente os objetivos do seu plano de negócios e continuou a sofrer perdas significativas. Tornou-se claro que seriam necessárias demasiadas mudanças para reestruturá-la e que o financiamento necessário excederia mais do que os montantes que o grupo considera viáveis”.

Claramente, estava excessivamente confiante, acreditando que poderia facilmente resolver problemas que haviam dizimado vários CEOs e um proprietário de capital privado endinheirado em apenas alguns anos.

No caso da Farfetch, a arrogância teve mais a ver com as enormes ambições da equipa de liderança para a empresa, o que a levou a ir além da sua fórmula fundadora e a entrar em áreas nas quais tinha menos experiência.

Após assistir a uma apresentação de José Neves em Londres nos seus primeiros tempos, há mais de 15 anos, lembro-me de ter ficado surpreendida com o conceito básico da Farfetch. Parecia uma ideia inspirada ser o marketplace de luxo que ajudou a colocar o inventário de centenas de pequenas lojas diante de muitos milhões de consumidores mundiais.



DR


Mas, a decisão de se tornar um desses retalhistas mediante a aquisição da Browns, a mudança para a propriedade da marca através da aquisição do New Guards Group por 550 milhões de euros, a compra da Stadium Goods, as ligações tecnológicas com marcas e retalhistas terceiros, o dispendioso lançamento na beleza e o rápido recuo do setor - tudo isto ocorreu quando os investidores perderam a confiança num negócio que estava a evoluir para algo diferente daquilo que tinham comprado.

A Farfetch pode ter sido o retalhista com crescimento mais rápido no Reino Unido em 2017 (num índice de crescimento retalhista da OC&C Strategy Consultants e Financo), após um crescimento de 70%, mas já passou muito tempo desde que a empresa e pares como a Matches e a YNAP podiam gabar-se de tais números. A grande questão permanece se a crise atual é existencial para os gigantes do comércio eletrónico de luxo. A Coupang parece não pensar isso, depois da aquisição da Farfetch, mas a Richemont, proprietária da YNAP, ainda parece indecisa e o grupo Frasers deixou a sua posição muito clara.

TRADUZIDO POR
Estela Ataíde

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