De Barbie e João Guilherme às passarelas: como a moda está rompendo padrões de gênero?

[Romildo de Paula Leite]

Estilistas da Dendezeiro e LED debatem como a moda pode ajudar a combater o preconceito.

De Barbie e João Guilherme às passarelas: como a moda está rompendo padrões de gênero? — Foto: Fabiano Battaglin/Reprodução/Instagram/REUTERS/Mike Blake

Na sequência do SPFW N55, outros eventos e semanas internacionais agitaram o mundo da moda – e não estamos falando apenas das tendências da temporada e dos looks de streetstyle das celebridades.

Além das passarelas, dois acontecimentos têm levantado um importante debate sobre a masculinidade tóxica e como a moda pode incentivar a neutralidade de gênero: o primeiro deles é, claro, a turnê mundial de Barbie e a infinidade de looks cor-de-rosa e em tons pastel das celebridades.

O segundo é uma polêmica envolvendo Nego Di e João Guilherme, na qual o humorista comentou sobre o cropped usado pelo ator.

Mas por que a forma “desconstruída” como algumas pessoas se vestem tem o poder de incomodar outras ou ser alvo de discriminação? E como a moda pode ser um instrumento de libertação, mais do que simples tendências?

Para responder a essas perguntas, o gshow conversou com três estilistas que combatem esses estereótipos incentivando uma moda agênero: Célio Dias, da LED, e Hisan Silva e Pedro Batalha, da Dendezeiro.

Elenco de Barbie

O filme estreou neste fim de semana após uma badalada turnê mundial, que começou no fim de junho. Além da sequência de looks de Margot Robbie inspirados na Barbie, outros colegas de elenco e celebridades brilharam nas premières: Ryan Gosling, Simu Liu, Billie Eilish, Ncuti Gatwa e Mette Towley.

Ncuti Gatwa, Ryan Gosling e Simu Liu na première de Barbie, em Londres — Foto: REUTERS/Mike Blake

Seja em roupas metalizadas, rosa, de tons pastel ou fluorescentes, estes nomes fugiram do óbvio: Gosling e Liu, por exemplo, exibiram vários looks que deixariam Ken orgulhoso. Já Billie deu um toque de barbiecore na escolha das cores, mas se manteve fiel ao seu estilo tão característico.

Para a dupla da Dendezeiro, esta “simples” escolha de roupa pode ajudar, sim, a combater ideias conservadoras, mas é preciso ir além para que as discussões perdurem:

Billie Eilish no tapete rosa da premiere de Barbie em Los Angeles, California — Foto: REUTERS/Mike Blake

“Essas falas ou imagens podem repercutir de forma singular dentro de alguns núcleos familiares ou na mentalidade das pessoas. O que precisa ocorrer é um discurso que tenha longevidade: é uma pauta que vem sendo trazida há muitos anos e precisa continuar acesa para que possamos criar novas gerações com mentalidades diferentes.”

Célio Dias ecoa a opinião dos estilistas e defende que, quando temas de grande interesse público geram esse tipo de repercussão, mais “pontos de discussão” são abertos:

“Acredito que a quebra de estereótipos seja algo que aconteça aos poucos e, quando temos a grande mídia falando e as pessoas vivendo essas mudanças, conseguimos alcançar ideais de forma mais clara.”

Desfile da Dolce & Gabbana

Em julho deste ano, o Sul da Itália virou palco de uma agitada semana de eventos da Dolce & Gabbana, que teve Anitta como estrela principal. A região da Puglia hospedou a alta moda da grife, que desfilou suas coleções de joias luxuosas, looks femininos e masculinos.

Neste último, modelos cruzaram as ruas da comuna de Ostuni em roupas de renda vazada, calças de tule ou cetim, armaduras em forma de arabescos, longos caftans e quimonos com bordado de cristal. Em resumo, o pavor dos adeptos da “vestimenta tradicional”!

Desfile masculino da Dolce & Gabbana teve roupas de renda, tule e cetim — Foto: Reprodução/Instagram

Hisan e Pedro veem tudo isso com muito otimismo: eles afirmam que a moda está trabalhando cada vez mais para quebrar as “determinações entre masculino e feminino” e que essa liberdade na maneira de se vestir “se tornou irrevogável para as pessoas”.

Ao mesmo tempo, Célio diz que ainda há um “conservadorismo muito presente na sociedade”, mas que o trabalho de marcas jovens tem ajudado a dar mais visibilidade ao tema.

Não se fala mais em mudar a si para caber nas roupas. O movimento é encontrar roupas que abracem a diversidade de corpos, a pluralidade do indivíduo e suas vontades."

— analisa a dupla da Dendezeiro

Acredito que temos encontrado mais liberdade para vestir o que sentimos vontade. E percebo uma evolução entre diversas pessoas que usam da moda para se sentirem bem, e não somente pelas tendências.”

— pontua Célio Dias

Semanas de moda

Mas antes de exaltar a fashion week das grifes internacionais, Célio pede um olhar mais atencioso aos estilistas independentes que “provocam essas discussões desde sempre por questionarem um sistema”.

A exemplo disso, tivemos o SPFW N55 em maio deste ano, que exibiu coleções bem ousadas, também reacendendo a pauta de gênero desde seu primeiro dia de desfiles, com João Pimenta. O estilista abriu a temporada no Theatro Municipal com uma sequência de modelos em vestidos de renda semitransparente, além de saias plissadas, corset e casacos repletos de bordados metalizados.

Isaac Silva, LED e Meninos Rei são algumas das marcas que abusaram da maquiagem pesada e com muito brilho em seus castings. À frente da The Paradise, Thomaz Azulay e Patrick Doering também não hesitaram em apresentar uma moda praia ousada, com calças justas, croppeds e um José Loreto de sunga ultracavada!

Desfiles da Dendezeiro, The Paradise e LED no SPFW apresentaram coleções que debatem masculinidade tóxica e questões de gênero — Foto: Fabiano Battaglin/gshow

Vale lembrar, ainda, que a LED e Boldstrap fizeram desfiles que geraram bastante repercussão nas últimas temporadas. Célio criou camisetas com letreiros que “gritavam” expressões como “tesão”, “piranha” e “bicha vigorosa”, exibida por Gil do Vigor. Ele conta que sua marca já nasceu sem o conceito de ter gêneros definidos e que seu objetivo sempre foi criar roupas que façam as pessoas se sentirem bem:

“Isso faz parte da forma como resolvi desenhar o que queria ver no mundo. Usar frases ou modelagens que saiam dessa ideia ‘padrão’ é, justamente, um dos nossos pilares. Fazer roupas é algo comum, mas, quando trazemos essa ideia, queremos que a pessoa entenda que aquilo que ela está vestindo tem história e propriedade intelectual.”

Já a Boldstrap transformou modelos em alienígenas estilosos para apresentar suas roupas de látex, tangas minúsculas, batas de tule e body metalizados em uma rara diversidade de corpos.

Por que homens de cropped incomodam tanta gente?

Mas a moda agênero não deveria ser coisa de outro mundo — pelo menos é assim que vê Igor Rickli. Em ensaio de moda para o gshow, o ator posou ao lado da mulher, Aline Wirley, em um vestido com fenda: ele revelou que a mudança no estilo foi como “um ato de libertação” e que não se vê mais seguindo padrões tóxicos para se encaixar no que a sociedade espera.

“Gosto de moda, mas o homem parece que tem esse compromisso de não poder ousar, de seguir as normas. Não preciso mais fazer de conta e seguir um protocolo”, afirmou, durante a entrevista.

Fred Nicácio também deu um show no quesito moda genderless em outro ensaio fotográfico. O ex-BBB disse não seguir tendências e que sempre valorizou roupas que tivessem a ver seus valores e personalidade.

Fred Nicácio e Gabriel Santana falam sobre a relação com a moda — Foto: Fabiano Battaglin/gshow

Em sua estreia no SPFW, Gabriel Santana desfilou de cropped para a Isaac Silva e contou que usa a moda como instrumento de “autoconhecimento e desconstrução” e que tudo isso é muito maior do que um pedaço de tecido: “Tem a ver também com a forma como você se faz presente na sociedade, e a roupa é um aspecto muito importante disso."

Algo muito parecido é defendido pelos estilistas da Dendezeiro e da LED. Assim como outras formas de fazer arte, para eles, a moda também é um ato político:

Moda é, acima de tudo, atitude, comportamento e política. Ela é o espelho que reflete o nosso estado atual da sociedade”

— afirmam Hisan e Pedro

Acredito que a moda é um mecanismo político de afirmação."

— define Célio

Mas nem todos pensam assim. E é nessa lacuna social que um homem de cropped vira alvo de discriminação, como aconteceu com João Guilherme em junho deste ano. Tudo começou quando Nego Di publicou um vídeo no Instagram comentando o look usado pelo ator durante a semana de moda masculina em Paris.

João não demorou a responder: em um post com recortes de notícias sobre crimes de homofobia, ele disse que a atitude do humorista é “discriminação fantasiada de piada”, mas que prefere usar seu alcance “para propagar o bem e o amor em um mundo já tão cheio de ódio, alimentado por atitudes preconceituosas”.

João Guilherme foi alvo de críticas por seus looks com top cropped — Foto: Reprodução/Instagram

Os designers da Dendezeiro afirmam que esta foi, infelizmente, apenas uma entre milhares de situações semelhantes que acontecem diariamente, mas sente alívio pela repercussão que gerou entre pessoas com bastante alcance.

“O preconceito está disseminado há muito tempo e é incrível que a moda tenha um grande papel em reverter as coisas, tanto as pessoas tendo a liberdade de escolha, como as labels apresentando coleções que abordem esse olhar.”

A vanguarda

Mas, bem antes deles, já estava entre nós uma galera que rejeitou os padrões da moda. Grace Jones, Prince, David Bowie, Freddie Mercury e Elton John são apenas alguns nomes em uma longa lista de artistas que marcaram, além da história da música e do cinema, a evolução da moda no que se refere às questões de gênero.

Cada um com seu estilo e individualidade, estes artistas passaram a ter a sexualidade questionada por causa das roupas, ora “feminino demais”, ora “masculino demais”.

Grace Jones, David Bowie, Elton John e Prince — Foto: Sonia Moskowitz/Debi Doss/Hulton Archive/Ross Marino/Getty Images/REUTERS/Jason Cairnduff

Os sucessores

E, nos últimos anos, outra turma vem atraindo os holofotes para além das suas áreas de atuação: os irmãos Jaden e Willow Smith, Harry Styles, Lil Nas X, o grupo Maneskin e, claro, a própria Billie Eilish.

Jaden Smith, Lil Nas X e Harry Styles — Foto: Reprodução/Instagram

As roupas oversized da cantora já foram alvos de críticas e especulações, mas o fato é que ela nunca se dobrou para uma das indústrias que tende a sexualizar o corpo para faturar alto. Pelo contrário, foram marcas como Gucci, Chanel e Burberry que redesenharam suas peças para se encaixarem em sua estética. Ela também já usou a própria moda para ironizar os “padrões de beleza”, como quando participou do Met Gala de 2022.

O mesmo aconteceu com Harry, mas por motivos diferentes. Assim como Jaden, Lil Nas, João Guilherme e Igor Rickli, o cantor se joga em produções com brilho, vestidos e macacões decotados e regatas croppeds.

Por Francielly Kodama, gshow — São Paulo

https://gshow.globo.com/moda-e-beleza/noticia/de-barbie-e-joao-guil...

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