Marcelo Caltabiano/Meon

O garotinho de pijama, touca e segurando uma vela, que abre a boca para bocejar, ilustra o quinto jingle mais conhecido do Brasil. Detalhe: a mítica propaganda foi criada na distante década de 1950 para uma marca de cobertores. Os produtos eram feitos em São José dos Campos e marcaram a cidade por causa de uma imensa fábrica inaugurada por portugueses em 1925, a Tecelagem Parahyba.

Ao lado de cerâmicas e laticínios, a fabricação de cobertores foi uma das primeiras atividades industriais de grande porte de São José, chegando ao ápice da produção entre os anos 1950 e 1970, quando dominava quase 90% do mercado nacional com a produção de cobertores e exportava para até 98 países.

O número de trabalhadores alcançou o patamar de 4 mil pessoas, sendo que 2.500 delas atuavam na cidade e o restante, em Pernambuco.

“Já é hora de dormir. Não espere a mamãe mandar. Bom sorriso pra você e um alegre despertar”, cantava o menininho na propaganda dos cobertores Parahyba, que dominaram o mercado nacional por anos a fio até o declínio da empresa, que pediu falência em 1993.

Cooperativa 
Mas a história não acaba aí. Com dívidas com o Estado, a empresa acabou sob o controle de funcionários, que criaram uma associação e depois uma cooperativa, a Coopertêxtil, em 1998, para tocar o negócio.

A área inicial de cerca de 230 mil metros quadrados foi desmembrada e a maior parte dela passou para o controle do Estado, sendo atualmente utilizada por instituições públicas. O imóvel é preservado pelo patrimônio histórico em São José e exige restauração. Ainda não há previsão de quando o complexo será revitalizado.

A estrutura da antiga fábrica, que contempla a fazenda Santana do Rio Abaixo, é usada por 20 repartições públicas estaduais e municipais, que começaram a ocupar o complexo ainda em 1995 e que ajudam a preservar o patrimônio local.

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Atualmente, os 60 funcionários produzem cerca de 10 mil peças/mês

Marcelo Caltabiano/Meon

Donos 
Hoje, os cerca de 60 funcionários são “donos” do próprio negócio e produzem em torno de 10 mil peças por mês, número bem distante da produção de 450 mil peças mensais na época do auge da empresa.

Eles trabalham em três galpões nos fundos do Parque da Cidade, que somam 23 mil metros quadrados de área. Máquinas antigas dos anos 1970 se espalham pela produção, que funciona das 6h às 15h.

“Estamos sobrevivendo à custa da nossa experiência de vendas e dos clientes. É um suspiro”, resume o ex-funcionário e hoje representante comercial da marca, Ricardo Kabbach, 59 anos. “Sou um cliente da cooperativa, distribuindo os produtos feitos aqui”, explica.

Segundo ele, a fábrica enfrenta a concorrência dos produtos chineses, que passaram a dominar o mercado a partir dos anos 1990, quando o então presidente Fernando Collor de Mello abriu o mercado nacional a companhias têxteis estrangeiras, quase matando a indústria nacional.

“As únicas fabricantes nacionais de cobertores que restaram foram nós e a fábrica de Guaratinguetá”, afirma Paulo Roberto Almeida, 52 anos, presidente da Coopertêxtil e também ex-funcionário da Tecelagem Parahyba.

Importação 
Segundo Kabbach, as marcas nacionais preferem importar os produtos do estrangeiro e apenas colocar suas etiquetas. Em São José, com cerca de 10 tipos de produtos fabricados, os cobertores e mantas continuam sendo os carros-chefes. 
Mas o futuro é indefinido para os cooperados. Há um passivo trabalhista que ameaça a associação de funcionários e o mercado tende a ficar cada vez mais competitivo, exigindo investimentos em tecnologia.

“Infelizmente, os proprietários não preparam a fábrica para o futuro, para competir no mercado cada vez mais fechado. Agora pagamos o preço”, diz Almeida.

Ele se refere à família do ex-ministro e senador Severo Gomes (1924-1992), que assumiu a Tecelagem Parahyba após os imigrantes portugueses abandonarem a empresa. Embora tenha conseguido levar a marca ao topo, eles não prepararam a companhia para o futuro.

Com isso, a tecelagem sobrevive mais da história do que das perspectivas de mercado. As incertezas se acumulam ao mesmo tempo em que os trabalhadores continuam acreditando no negócio.

“A concorrência da China é um absurdo”, afirma Kabbach. “É muito difícil concorrer nesse mercado. O nosso maior bem é a nossa marca, ainda muito conhecida”.

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No auge, a unidade de São José dos Campos chegou a ter 2.500 funcionários

Coopertêxtil/Divulgação

Avião 
Almeida se lembra de uma história curiosa quando a empresa ainda estava no auge. Ele ainda é capaz de imaginar o coronel Ozires Silva, um dos fundadores e presidente da Embraer, entrando na tecelagem para comprar mantas que iriam adornar os aviões fabricados pela empresa.

“Ele dizia que as mantas eram colocadas nos aviões antes de os modelos serem entregues aos clientes. Isso nos enchia de orgulho”, conta o presidente da Coopertêxtil.

Hoje, os cooperados fabricam peças para o público infantil, os tradicionais cobertores de flanela da marca e peças variadas. Eles operam em meio a máquinas antigas enroscadas com os fios coloridos da matéria-prima, numa espécie de imagem histórica resgatada direto dos melhores momentos da Tecelagem Parahyba.

Documentário 
Tanta história não poderia ficar perdida. E não ficou. O Coletivo Criamundo (coletivocriamundo.com.br), que é uma associação de profissionais de comunicação, produziu o projeto “Por Entre Fios”, que engloba exposição de fotos e documentário sobre a Tecelagem Parahyba.

Idealizado pelas fotógrafas Bianca Oliveira e Natalie Rocha e pelo cinegrafista David Ferreira, com apoio de Débora Moreira e Lucaz Mathias, o projeto confeccionou uma exposição de fotos, organizada dentro do próprio galpão da tecelagem, em novembro do ano passado.

O documentário foi um média-metragem de 45 minutos de duração, que custou cerca de R$ 100 mil para ser produzido. As gravações começaram em março de 2013. O vídeo traz relato de ex-funcionários e pessoas que acompanharam o desenvolvimento da fábrica.

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Entre 1950 e 1970, a Tecelagem Parahyba dominava quase 90% do mercado nacional 

Coopertêxtil/Divulgação

Testemunhas 
“O drama é narrado por depoimentos de personagens que fizeram parte desta história”, explicam as fotógrafas, no site da cooperativa. “Ex-operários, líderes sindicais, jornalistas e empresários contam como uma empresa, modelo de excelência nacional, quase chega à falência, sendo salva justamente por aqueles que mais sofreram, seus funcionários”.

A partir da experiência deles, o documentário mostra como um plano de engenharia foi útil para formar a primeira cooperativa de trabalhadores no Brasil no ramo de têxteis.

Natalie explica que a curiosidade dela e da amiga fotógrafa foi despertada quando elas perceberam que a fábrica não era apenas um prédio histórico encerrado no Parque da Cidade. Ainda havia produção ali, e nas mesmas máquinas dos tempos áureos da companhia.

O interesse delas as levou a um processo de pesquisa histórica de dois anos no arquivo público e com historiadores. 
Bianca conta que foi justamente observar a produção sendo feita com os mesmos equipamentos de antigamente que chamou a atenção para a necessidade de aprofundar a pesquisa histórica.

Futuro 
As pesquisadoras pensam ainda em uma segunda etapa do projeto, que contempla a produção de um fotolivro e exposição de imagens em outros Estados, especialmente o de Pernambuco, sede de uma unidade da Tecelagem Parahyba.

Outra ideia é expor o material no exterior, como em Portugal, em razão das ligações da companhia com os imigrantes portugueses que a fundaram.

Benefícios 
As fotógrafas ressaltam curiosidades que encontraram durante as pesquisas. Segundo elas, a Tecelagem foi uma das primeiras empresas do Vale do Paraíba a oferecer benefícios aos funcionários, que se estendiam aos seus dependentes.

Eles podiam morar na Vila dos Operários, por exemplo, constituída de casas construídas pela Tecelagem para os funcionários. Os filhos deles estudavam numa escola mantida pela companhia ou ganhavam bolsa para cursar o colégio Olavo Bilac, um dos mais antigos de São José.

E as curiosidades não param por aí: os funcionários com apoio da empresa organizavam festas religiosas, times de futebol e até escolas de samba.

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