Os rios nepaleses estão a tornar-se depósitos de vestuário descartado, criados por importações de baixo custo da China e da Índia, que asfixiam a produção local e agravam a poluição têxtil.

[©Eco-Age]

À medida que o rio Dhobi Khola atravessa Katmandu, a capital do Nepal, o seu curso de água está cada vez mais carregado com pedaços de roupa, símbolos vivos da crescente crise de fast fashion que o país enfrenta, indica a consultora Eco-Age.

Localizado entre a China e a Índia, o Nepal é inundado com vestuário e calçado, nem todos importados legalmente e que são usados poucas vezes antes de serem descartados. De acordo com o Banco Mundial, 89% da totalidade de têxteis e vestuário vendidos no país são importados destes vizinhos, com a China a representar 48% e a Índia 41%.

«Simplesmente não podemos competir com a China, onde o vestuário de baixo custo e produzido em massa inunda o mercado. A realidade é que o Nepal continua fortemente dependente das importações – não só de vestuário, mas também da maioria dos outros bens», aponta Posh Raj Pandey, presidente emérito do South Asia Watch on Trade, Economics and Environment.

Em 2024, um relatório governamental descreveu a fronteira aberta com a Índia, com 1.700 quilómetros de extensão, como um «ponto de acesso a atividades de contrabando organizadas», com armazéns a servirem de entrepostos para artigos ilegais que acabam em lojas locais, o que resulta em perdas anuais de 45 milhões de dólares (cerca de 39,4 milhões de euros) em receitas fiscais para o estado.

Os desafios legais e ambientais

Embora o Nepal produza apenas 0,027% dos gases com efeito de estufa a nível mundial, é o quarto país mais vulnerável aos impactos da crise climática. E apesar da proibição da importação de roupa usada, os resíduos têxteis têm vindo a acumular-se em zonas urbanas e rurais.

Alpaja Rajbhandari, fundadora da marca nepalesa de slow fashion Ekadesma, alerta que «a moda tem sido literalmente dominada no Nepal por coisas que foram importadas. São baratas, estão disponíveis a granel e são fáceis de encontrar, pelo que as pessoas optam naturalmente por elas. Mas o que falta muitas vezes é a consciência de como as roupas são feitas e a que custo. O Nepal é tão pequeno e o mercado é totalmente dominado pela China e pela Índia. Da política à moda, somos realmente afetados por eles».

A 27 quilómetros de Katmandu, no aterro sanitário de Banchare Danda, onde camiões despejam lixo diariamente, encontram-se 2,3 mil milhões de toneladas de resíduos sólidos, dos quais 92 milhões de toneladas são resíduos têxteis. «Por vezes, as pessoas usam estas t-shirts apenas durante uma semana, antes de as deitarem fora. Muitos sentem-se demasiado preguiçosos para as levar a costureiras para serem cosidas ou reparadas, pelo que é mais fácil deitá-las fora», afirma Sanu Maiya Maharjan, do Gabinete do Município de Katmandu.

Apesar de a legislação ambiental do Nepal impedir a entrada de resíduos perigosos no país, a lei não menciona especificamente o vestuário, o que significa que têxteis com químicos potencialmente nocivos continuam a entrar no país, informa a Eco-Age. Ainda que cauteloso em relação aos direitos aduaneiros, o governo nepalês assinala que pretende restringir as importações através de legislação anti-dumping e da criação do tipo de limites químicos obrigatórios para as importações de têxteis e vestuário existentes na UE.

A associação Cleanup Nepal organiza limpezas de rios, recolhendo inclusive roupa em bom estado. «Descobrimos que até vestuário de boa qualidade tinham sido arrastadas. Em comparação com o passado, vemos agora o máximo de resíduos têxteis. Fora das zonas urbanas, os têxteis-lar são deitados fora e acabam nos rios. Quando há inundações, ficam enterrados na areia e temos de os retirar», refere Rabindra Lamichhane, diretor executivo da organização.

A tradição e o estigma

Por outro lado, a cultura de reutilização está presente na sociedade nepalesa, como explica Alpaja Rajbhandari. «Em casa, reciclamos e reutilizamos, não deitamos comida fora tão facilmente como nos países ocidentais. A minha mãe ainda tem algumas das minhas roupas de infância para tentar passá-las para a próxima geração. A sustentabilidade está nos nossos meios de subsistência no Nepal», aponta.

Contudo, o estigma ligado ao vestuário em segunda mão, especialmente o de falecidos, ainda prevalece. «Se for aos Ghats [os degraus que descem até ao rio onde se completam os processos finais de cremação e os rituais] verá que, como prática ritualista, os membros da família atiram o vestuário dos entes queridos falecidos diretamente para os rios. Não só as suas roupas, mas também outros artigos têxteis como lençóis, cobertores e toalhas. É necessária a sensibilização do público – estas roupas poderiam ter sido dadas aos pobres e necessitados, cujo número é significativo em Katmandu», relata Sanu Maiya Maharjan.

Há, no entanto, movimentos entre as gerações mais jovens para minimizar este estigma. A Affordable Thrift Store, em Katmandu, vende roupa usada e, no caso de não ser vendida, doa a projetos de upcycling. «Observámos uma mudança na perceção do público. As pessoas estão a começar a ver que podem ganhar dinheiro com a venda de vestuário usado e que também podem comprar artigos da moda a preços acessíveis. Mas ainda existe algum estigma, pelo que os nossos principais clientes tendem a ser os jovens», conta Shaswat Jha, diretor de operações da loja.

Ainda assim, a concorrência estrangeira afeta até as práticas tradicionais. Os têxteis em pedaços, conhecidos como Kalo Rooi, usados para encher almofadas e colchões, estão a ser substituídos por versões importadas da China, mais baratas, mas que comprometem a produção local.

«Na fast fashion há conveniência e facilidade, mas nessa conveniência e facilidade há perda de tradições, ligações culturais e ligações humanas – tudo isto tem um impacto muito negativo na economia circular local. Há muita verdade escondida por detrás dessa palavra específica, conveniência», conclui Alpaja Rajbhandari.

https://portugaltextil.com/fast-fashion-sufoca-o-nepal/

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