Com mais pagamentos em atraso, após a deterioração na renda e escalada da inflação, as grandes varejistas precisaram aumentar as projeções para perda.
Com mais pagamentos em atraso, após a deterioração na renda e escalada da inflação, as grandes varejistas precisaram aumentar as projeções para perda com calotes. Segundo levantamento do Valor nos balanços das dez maiores redes de capital aberto, foram R$ 7,79 bilhões em provisões para devedores duvidosos de janeiro a junho, uma alta de quase 22% frente aos R$ 6,4 bilhões registrados no fim de 2021. Também é 42,2% acima do apurado de janeiro a junho de 2021. O montante registrado em seis meses equivale ao faturamento de redes como Leroy Merlin e Riachuelo em 2021.
Em relação à receita líquida total das empresas analisadas, o peso das provisões com crédito de liquidação duvidosa passou de 4% na primeira metade de 2021 para 4,92% neste ano – estava em 3,9% em dezembro. Economistas dizem que não há risco para a saúde financeira das empresas, como se viu no varejo no fim dos anos 90, pois a concessão de crédito está melhor controlada e há caixa disponível. O impacto pode ser maior para pequenas e médias cadeias, fora do radar do mercado.
As provisões para perdas funcionam como uma conta redutora do ativo, porque afeta a linha de contas a receber, e ainda tem efeito direto no fluxo de caixa e na última linha do balanço (lucro/prejuízo). Contabilmente, a perda é considerada despesa comercial. Quando a rede considera que o consumidor não vai pagar, provisiona essa perda, e segue critérios próprios para isso, mas tenta receber os recursos. Uma dívida em atraso que supera 180 dias entra no estágio de “default”, e já é considerada perda.
O levantamento mostra que há maior entrada de novas perdas do que pagamentos de dívidas em atraso sendo feitos. Trata-se de uma conta “viva” na linha de ativos das empresas, com constantes entradas e saídas de recursos. De janeiro a junho, as dez empresas adicionaram provisões no valor de R$ 1,59 bilhão ao montante que já existia, e saíram, na forma de “reversão”, cerca de R$ 1,1 bilhão no mesmo período – ou seja, um déficit de R$ 500 milhões.
Segundo um ex-diretor financeiro de uma varejista de eletrônicos, o aumento nas adições de perdas reflete o cenário de renda real menor e dificuldade de renegociação com o cliente. “Muitas vezes, o varejista renegocia a dívida com o cliente, e o valor acertado já é contabilizado 100% como reversão de dívida antiga. Isso dá uma aliviada na provisão, mas é algo questionável, já que a rede ainda vai receber os atrasados no futuro. É possível que até essa renegociação, que ajuda na reversão, esteja difícil”, diz.
A pressão com novas perdas aumenta num momento em que as redes precisariam elevar concessões de crédito para incentivar mais as vendas – no caso dos eletrônicos, para sair do baixo crescimento e, nas cadeias de moda, para consolidar o processo de retomada. Só que, para brecar esse aumento nos atrasados, as companhias vêm revendo suas políticas de concessão de linhas em carnês e cartões próprios neste ano.
“É um dilema que elas enfrentam. As redes têm que oferecer mais linhas, mesmo com esse juro muito alto [no crediário, varia de 7% a 8% ao mês] sabendo que, ao mesmo tempo, estão provisionando bem mais pagamentos atrasados”, diz Claudio Felisoni, presidente do Ibevar, instituto dos executivos do varejo, e professor da FEA-USP. “Só tem uma solução para isso, apostar em dados, em ferramentas de análise de perfil para vender mais ao bom pagador”, diz.
A varejista de moda Marisa tem sido mais rigorosa na liberação de crédito desde o fim de 2021. A rival Renner, líder desse mercado, reduziu limites para compras de clientes de maior risco e aumentou postos de cobranças de dívida a partir de março deste ano. “Houve um cenário de crédito e inadimplência mais desafiador que atingiu toda a indústria e reagimos a isso. Agora já estamos com melhor qualidade [no portfólio]”, disse Fabio Faccio, CEO da Renner, em teleconferência semanas atrás. A companhia reportou R$ 821 milhões em perdas estimadas em crédito até junho, 40% acima de dezembro.
No varejo de alimentos, historicamente com menos atrasos pela necessidade de o cliente usar suas linhas em compras de itens básicos, o Carrefour apurou inadimplência de contas em atraso acima de 90 dias, de 13,2% de janeiro a junho – era 8,1% um ano antes. A rede vem restringindo concessões de crédito desde dezembro. “Estamos trabalhando nisso, e apesar desse índice ainda crescer, tivemos um ritmo de expansão na taxa de inadimplência menor após março”, disse ao Valor, em julho, o diretor financeiro, David Murciano.
Dados do Banco Central mostram que a taxa de inadimplência da carteira de crédito de bens passou de 3,42% em abril de 2021, para 4% em dezembro. Quatro meses depois, em abril, estava em 4,71% (último dado disponível).
Outro dado relevante presente nos balanços refere-se ao perfil dos pagamentos em atraso. Pelo levantamento, cresceu o percentual, no bolo total, referente às dívidas que venceram há menos de 90 dias. São os novos devedores, que vinham pagando em dia até os primeiros meses de 2022, mas deixaram de quitar dívidas de março para cá.
Em dezembro, esse grupo representava, na média das dez cadeias, 53,5% do total de atrasos, e foi a 56,6% em junho. Os devedores antigos, com pendências há mais de 90 dias, formam a fatia restante. Segundo o ex-diretor financeiro ouvido, essa entrada de novos atrasados ocorreu porque as companhias “abriram a torneira de crédito” no ano passado, para estimular a demanda. “Agora, elas voltam a fechar porque sentiram os atrasos, mas é assim mesmo, é ajuste contínuo das políticas de concessão. Estamos falando de grandes redes com melhores critérios e controles, então é uma situação passageira”, diz ele.
Como se tratam de perdas projetadas, cabe a interpretação sobre a expectativa dessa baixa por parte da cadeia, que pode ser mais ou menos conservadora. Nem sempre, portanto, as redes mexem nessa conta ao mesmo tempo, para cima ou para baixo, como ocorre agora. Dessa vez, a avaliação geral é que a piora no cenário econômico tornou obrigatório o aumento da perda projetada.
“Não é uma inadimplência que cresce por causa de descontrole de gastos ou por um consumo acelerado, mas que reflete a resiliência da inflação”, diz Fabio Bentes, economista da CNC, a confederação nacional do comércio. “Até vimos uma deflação de preços recente, mas a inflação ainda está num patamar elevado. Por isso, acreditamos que essa alta nas provisões ainda se mantêm por um tempo, mesmo com o aumento do Auxílio Brasil, porque a deterioração da renda foi muito forte e o recuo da inflação será gradual”.
Analistas, como os da XP, esperam que essa pressão maior vá se reduzindo após o quarto trimestre. Os comandos da Marisa, Riachuelo e Renner acreditam que haverá uma melhora na inadimplência em relação à carteira ao longo do terceiro e quarto trimestres, mas especialmente após setembro. As redes ainda lembram que, como houve queda de provisões um ano atrás, a base de comparação é baixa. Pelos dados de balanços, as varejistas que mais elevaram suas provisões foram do varejo eletroeletrônico físico e digital e as cadeias de vestuário, ambas altamente dependentes da venda parcelada. (Colaboraram Raquel Brandão e Daniela Braun)
Por Adriana Mattos
Fonte: Valor Econômico
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