Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Simone Pokropp e Junior Guarnieri, da Casa Juisi, e a artista Karlla Girotto conversam sobre projetos que democratizam o acesso e os processos da moda.

Karlla Girotto tinha uma marca de roupas e fazia desfiles memoráveis na Casa de Criadores e na SPFW. Mais se pareciam com happenings e performances artísticas pela força imagética, carga emocional e simbologia. Até que um dia ela cansou. Cansou da moda, do mercado e de todo o lifestyle que é vendido junto com esse pacote. Foi trabalhar com arte e se juntou ao G>E (Grupo Maior que Eu), um workshop sobre processo criativo com duração de dois meses, mas que já existe há quatro anos, atualmente com reuniões semanais na Casa do Povo. Foi de lá, aliás, que nasceu seu Ateliê Vivo, uma espécie de biblioteca de modelagens (suas e de outras marcas brasileiras) e oficina de costura aberta a quem quiser fazer as próprias roupas como bem entender – além de servir de registro precioso sobre a produção de moda nacional.

Em outra iniciativa, o acervo de roupas vintage de Simone Pokropp e Junior Guarnieri começou num quarto do apartamento que dividiam nos anos 1990. Quando o número de amigos que pediam peças emprestadas ficou demais, decidiram abrir um brechó. Nasceu assim o Juisi by Licquor, numa pequena galeria nos Jardins. Só que a coleção não parou de crescer. Hoje ela ocupa um casarão no centro de São Paulo e um recém-aberto anexo, no prédio ao lado, para abrigar uma nova leva de itens históricos de marcas nacionais e internacionais. O brechó já não existe mais. Agora, a Casa Juisi trabalha apenas com a locação de peças, geralmente para figurinos de teatro e cinema. Mais do que isso, o espaço se tornou um dos principais centros de pesquisa e memória de moda para estudantes e quem mais se interessar.

A convite de ELLE, Karlla, Simone e Junior refletem sobre a memória, o acesso, a representatividade, a quebra de barreiras e as possibilidades de construção coletiva de uma nova realidade – e de uma moda mais leve e significativa.

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Karlla Girotto (Gianfranco Briceño/ELLE)

O trabalho de todos vocês fala sobre memória e sobre como o acesso a elas pode mudar o presente. Como isso começou?

Simone Prokopp Resgatar memórias sempre foi algo muito importante para nós, até porque vivemos num país que não cultiva isso. Acontece muito de encontrarmos peças históricas de marcas como Ellus e Zoomp que nem as próprias grifes têm em acervo. Isso é muito triste. Não existe quase ninguém documentando a moda brasileira. Para gente, é um prazer fazer isso, pois ajuda a firmar nossa identidade sem precisar olhar para fora o tempo todo. É uma meta constante. Iniciativas como a da Karlla, como a nossa e até mesmo de quem monta um brechó são muito importantes, muito válidas. Precisamos de mais projetos e incentivos nesse sentido.

Karlla Girotto O não-cultivo da memória só reitera o padrão da moda apenas como consumo, como produto, e não como cultura e expressão de uma época e de um povo. Quando a indústria faz isso, ela está dizendo que moda é só aquilo mesmo, só mercadoria. E, tudo bem, pode ser só isso. Só não vale fazer de conta que é algo mais, que existe um significado maior. O que mais me incomoda é quando a narrativa se descola da prática. Quando você faz uma coisa que parece superlegal, mas, na verdade, é só jogada de marketing.

A questão do acesso tem muito a ver com isso. Fala-se muito em diversidade, representatividade, da infuência das ruas.

Karlla Eu acho maravilhoso que essas barreiras estejam sendo destruídas porque foi em cima disso que a moda se firmou. É a área vip, a primeira fila do desfile, o quem pode e quem não pode. Só que o sistema é tão sacana que entendeu isso. Agora, a barreira não é mais aparente, já está no nível molecular, está na fibra, no tecido. Se você pegar uma camiseta da Zara e uma camiseta de luxo, elas se parecem idênticas, mas são diferentes na matéria. É igual à questão do corpo. Eu posso ir à academia todo dia, mas vou ter dinheiro para comprar todas essas pílulas que as musas fitness tomam? E assim vai se produzindo a desigualdade para além do que é visível.

Junior Guarnieri Ao mesmo tempo, as pessoas estão usando mais o que elas gostam, o que elas querem. Não tem mais a calça da vez, a cor da estação, a bolsa do momento, o jeito certo de usar. Hoje cada um usa o que quer e como quiser.

Karlla É que existe mais autonomia. Você vê o movimento negro, trans, LGBTQ. Eles estão dando autonomia às pessoas, inclusive no que diz respeito à imagem. Você não precisa mais de alguém dizendo o que você deve ou não usar, produzindo um padrão que não é seu, que não fala com sua galera.

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Junior Guarnieri e Simone Pokropp (Gianfranco Briceño/ELLE)

Hoje as pessoas querem ter voz ativa no processo criativo. Não é mais só a vontade do estilista. Como o trabalho de vocês colabora com a descentralização da criação?

Karlla O Ateliê Vivo tem muito a ver com isso. É uma quebra total de sistema. Você pode não ser costureiro, mas, quando chega lá, vai aprender o básico e, aos poucos, vai fazer sua própria roupa. Você pode escolher uma modelagem da nossa biblioteca, levar seu tecido e sair com uma peça pronta. Quando isso acontece, a primeira coisa que a pessoa percebe é que é irreal comprar uma camiseta de 15 reais. Para fazer a dela, gastou 20 reais em tecido, mais cinco horas do dia. Você começa a perceber que há algo de muito errado no mundo e essa autorreflexão o desloca dos modelos que nos são oferecidos como os únicos possíveis. Não existe vida fora do sistema, mas existem alternativas dentro dele. Fazer sua própria comida, pensar mais no que e como você consome, para onde e para quem vai o dinheiro gasto.

Simone E já existe roupa demais no mundo! O que a gente mais gosta no nosso trabalho é criar uma circulação para esses produtos. Já aconteceu de acharmos uma peça quase no lixo, em algum lugar extremo da cidade, e ela ir parar em capa de revista. Essa trajetória faz você pensar muito. Num instante, era algo descartável e, de repente, ganha outro valor. É muito bom poder ressignificar as roupas, fazer com que elas ganhem vida de novo.

Junior É tudo demais. Estava conversando com uma estilista que tinha que fazer 16 desenhos por dia. É um volume absurdo. O número de coleções também e a quantidade do que é produzido e desperdiçado idem. Não faz mais o menor sentido. É uma questão que precisa ser revista com urgência.

Karlla Essa lógica de produção também reduz a vida útil da roupa. Tenho peças que minha mãe usava, que eu usava quando tinha 13 anos. Mas os itens que comprei há dois meses não existem mais, elas se desfazem. É algo feito para se destruído, descartável.

Simone Temos um projeto futuro de começar a fazer nossas próprias coleções, mas com cuidado para não contribuir para tudo isso. Queremos pegar os tecidos que temos aqui, o que garimpamos, modelos antigos que não podem ser reparados e reaproveitar em novas roupas. É tudo sobre encontrar saídas e alternativas para fazer a moda ter mais sentido.

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Casa Juisi (Gianfranco Briceño/ELLE)

E que outras saídas vocês veem?

Karlla É só ver o mundo de outra maneira. A moda e a publicidade nos fazem acreditar que só existe um tipo de mundo, um jeito de vida. É mentira. Muita gente entende que dinheiro só vem de trabalhar nove, dez, 12 horas por dia e no fm do mês ter seu salário. Eles não entendem que existem outras trocas também financeiras, mas que passam pelo afetivo. São outras construções que tentamos fazer no dia a dia. Fico maravilhada quando vejo uma galera que é punk, punk real, pegar uma calça jeans e fazer um colete, pegar um sapato que não serve e cortar a ponta. Sabe? É essa moda que me interessa. Aquela que a pessoa viu de um jeito lá na quebrada, adaptou e influenciou outra, que vai usar de outra maneira. É contágio. É vivo.

Por Luigi Torre

https://elle.abril.com.br/moda/iniciativas-que-estao-mudando-o-ritm...

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  A moda e a publicidade nos fazem acreditar que só existe um tipo de mundo, um jeito de vida. É mentira. Muita gente entende que dinheiro só vem de trabalhar nove, dez, 12 horas por dia e no fm do mês ter seu salário.

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