Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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Lacunas do trabalho justo: o que falta para a moda erradicar o trabalho escravo contemporâneo?

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No ano do 10º aniversário do acidente do Rana Plaza e a criação do Fashion Revolution, as práticas de mercado ainda estão aquém do necessário. 

Há 10 anos, o edifício Rana Plaza ruía em Bangladesh, matando mais de mil pessoas, em sua grande maioria, mulheres trabalhadoras da indústria da moda. O caso evidenciou as condições degradantes que as trabalhadoras estajam sujeitas e levantou uma série de mobilizações. Entre elas, a criação do movimento global Fashion Revolution e a assinatura do Acordo de Bangladesh sobre Segurança contra Incêndios e da Aliança para a Segurança dos Trabalhadores de Bangladesh por parte de grandes varejistas europeus. Apesar dos esforços, pouca coisa mudou: a estrutura global segue inerte, dando margem a violências de todos os tipos contra as mulheres. 

 

O motivo: assegurar a lógica mercadológica da prevalência do lucro. Por exemplo, a Transparency International aponta que um novo acordo internacional foi feito em 2021. Desta vez, o esforço é para reforçar que empresas estabeleçam um programa abrangente de saúde e segurança em confecções de Bangladesh e outros países, como o Paquistão. Mas pesquisadores do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Austrália, demonstram por quê estes acordos podem se tornar falhos: alguns meses depois do acidente do Rana Plaza, 222 empresas haviam assinado o Acordo de Bangladesh sobre Segurança contra Incêndios. 

Em 2018, o grupo entrevistou varejistas australianos que afirmaram que só compravam de fabricantes em Bangladesh que cumpriam o acordo, porém, os fabricantes afirmaram que sua conformidade era uma farsa. As mudanças previstas na lei, como o limite das horas extras e a disponibilidade de uma enfermeira ou babá na instação eram apenas executadas em dias de auditoria. O motivo para tal era manter os custos baixos. Já outro fabricante ressaltou que o preço e qualidade ainda desempenham um papel importante para as vendas. 

Segundo o Clean Clothes Campaign, apenas 0,6% do preço de uma blusa no varejo vai para a costureira. O dono da fábrica  retém 4%, o rótulo da marca, 12%, e o varejista leva 59%. Esse é, claro, um cálculo médio, mas a estrutura de produção não muda globalmente, inclusive, no Brasil. Na margem da sociedade, as trabalhadoras do setor da confecção enfrentam os mais diversos abusos que configuram o trabalho escravo contemporâneo: salários baixos, longas horas de serviço, ambientes de trabalho em condições insalubres, assédio moral e sexual, violência patrimonial, entre outros. 

Números e realidade brasileira

Em 2022, Auditores-Fiscais do Trabalho resgataram 2.575 trabalhadores de condições análogas às de escravo. O trabalho escravo urbano teve 210 vítimas em atividades econômicas, com destaque para a confecção de roupas, 39. O trabalho doméstico também se sobressaiu: o aumento vem sendo registrado desde 2021, onde 31 vítimas foram resgatadas. Em 2022, foram 30 vítimas. O MPF (Ministério Público Federal) ressalta que a principal causa da escravidão contemporânea é a vulnerabilidade social, associada ao aumento do desemprego, falta de instrução e baixa qualidade de vida. 

Segundo a Coordenadora Nacional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas), Lys Sobral Cardoso, o dado oficial brasileiro mostra que o número de mulheres resgatadas não chega a 10% e que o valor não condiz com a realidade. “Isso diz sobre a necessidade de se prestar atenção ao atendimento às mulheres vítimas de trabalho escravo contemporâneo”, explica, “também não reflete a inserção cada vez maior delas no mundo do trabalho”.

Lys afirma que o perfil destas mulheres não diverge muito, seja no campo ou no meio urbano: é o mesmo perfil das pessoas historicamente discriminadas no Brasil, negras ou pardas em sua imensa maioria. “Existe uma ligação muito grande entre não-garantia de direitos no meio rural e nas comunidades tradicionais, com a persistência de formas de escravidão no meio rural e urbano”, salienta. A exemplo: comunidades indígenas e quilombolas que não têm seus territórios reconhecidos e são expulsos por meio de conflitos agrários. 

Em julho de 2022, aconteceu a maior operação de combate ao trabalho escravo contemporâneo no país, resgatando 337 pessoas, em 15 estados. A Operação Resgate 2 contou com 105 ações de fiscalização, envolvendo 50 equipes, mais de 100 auditores fiscais da Inspeção do Trabalho, 44 procuradores do Ministério Público do Trabalho, dez procuradores do Ministério Público Federal, 150 agentes da Polícia Federal e 80 da Polícia Rodoviária Federal e 12 defensores da Defensoria Pública da União. Foi, até então, a maior estrutura envolvida para resgatar vítimas da escravidão contemporânea, agindo tanto na área rural quanto urbana. 

Para Graziella Rocha, coordenadora de projetos da Asbrad (Associação Brasília de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude), a Operação Resgate 2 foi um sucesso devido ao tempo de planejamento e sinergia entre as instituições. Porém ela também salienta que o correto seria queo empenho de recursos financeiros e humanos, fosse feito de forma perene e não uma vez por ano, como foi o possível de ser realizado, no contexto de desmantelamento de políticas públicas

Atuando em Guarulhos, a Asbrad vê a dificuldade das operações de fiscalização de chegar às oficinas de costura clandestinas. A cidade está na rota de novos espaços da região metropolitana de São Paulo no qual a confecção migrou, devido a fiscalização mais intensa em regiões conhecidas, como Bom Retiro e Brás, e por ter o custo de aluguel mais barato. Graziella relata que, agora, uma das estratégias das empresas intermediárias é de passar a incentivar casais migrantes a montarem estruturas próprias para costurar “em casa” – quitinetes alugadas em bairros periféricos. “O modelo cria uma falsa sensação de liberdade, de ‘empreendedorismo’, mas, na verdade, aumenta a lucratividade dos intermediários,  dificulta a fiscalização e, portanto, a responsabilização solidária das empresas que na ponta lucram com a comercialização dessas roupas, afirma”.

Esse sistema os obriga a trabalhar em jornadas exaustivas, sem qualquer tipo de proteção laboral e arcando com custos como aluguel e luz. Segundo o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, entre os 10 municípios com mais autos de infração lavrados no setor de confecção de vestuário (exceto roupas íntimas), seis pertencem à região metropolitana de São Paulo. 

Nesse contexto, existe uma ligação íntima entre o trabalho escravo contemporâneo e a violência doméstica – sendo ela psicológica, física ou patrimonial. 

 

Palavras-chaves: vulnerabilidade, patriarcado e violência

Quem são as trabalhadoras que produzem suas roupas? Esta é uma chamada importante feita pelo Fashion Revolution, com o intuito de dar visibilidade às mulheres que estão “no chão de fabrica”. Elas são assediadas e trabalham em condições insalubres em diversos lugares do Sul Global. Uma característica em comum, nestas regiões, é o desenvolvimento tardio e a forte presença do patriarcado. 

Segundo o último Índice de Transparência na Moda Brasil, das 139 pessoas resgatadas em 2019, em São Paulo, 43 eram mulheres que trabalhavam em oficinas de costura. O documento afirma que “na capital do estado paulista, o setor têxtil é um dos que mais recebe denúncias sobre trabalho escravo contemporâneo”. Já o relatório Construyendo Un Mundo Plural expõe um pouco mais esse cenário:, em 2019, apenas 5.936 mulheres venezuelanas acessaram o mercado de trabalho formal brasileiro, frente há 14.801 homens.

Com a pandemia, o quadro piorou, tendo em vista que as mulheres foram as mais impactadas pela crise sanitária. “A crise econômica que assola o Brasil teve efeitos muito significativos na vida dessas mulheres, principalmente no agravamento da falta de trabalho e oportunidades e no aumento de situações de assédio”, destaca o documento. Emanuela Pinheiro, fundadora da organização Mulheres do Sul Global, mostra uma realidade que vai, inclusive, mais além. Trabalhando com migrantes na época do pico da pandemia da Covid-19, ela notou que, em situações em que a mulher estava empregada e o homem não, a violência se agravava. 

Para ela, a violência patrimonial e o machismo são muito latentes na realidade destas mulheres – que vêm de países latinos como Venezuela e Bolívia, e africanos, como Gâmbia e Congo. “Se você colocar 21 pessoas, 20 mulheres e um homem, sentados na máquina, é impressionante como se inverte a relação de poder e elas ficam completamente orquestradas por aquela figura só porque ela é masculina.”, conta. 

A Mulheres do Sul Global é uma empresa de impacto social dedicada ao empoderamento econômico de mulheres refugiadas de imigrantes e brasileiras em situação de vulnerabilidade através da costura. Atuando desde 2017 na cidade do Rio de Janeir, Emanuela aponta que já recebeu grupos de mulheres vítimas de tráfico de pessoas, aliciadas para fazer prostituição, ou que experenciaram trabalhos anteriores no qual cumpriam longas cargas horários, sem terem clareza de quanto ganhariam. 

Muitas sabiam que estavam inseridas em uma situação exploratória, mas era o único jeito de sobreviverem. “Eu entendi que os empregadores se aproveitavam daquele desespero, daquela vulnerabilidade absoluta. ‘Se eu não trabalho hoje, eu não tenho dinheiro para comer amanhã’ e eles ofereciam qualquer coisa”, explica. O Brasil, apesar de ter uma das leis mais sofisticadas de acolhimento de migrantes, precisa de estruturas mais robustas para garantir direitos a eles. 

Uma vez inserido legalmente no país, o migrante tem acesso a programas sociais como o Bolsa Família, mas não há fomento de oportunidades de trabalho para esta população. “Os setores privado e público onde estão nestes lugares?”, questiona Emanuela, “quando fiz trabalho de advocacy, perguntei quais são as oportunidades a uma empresa. Eles disseram: ‘a gente tem um programa para PcD (Pessoa com deficiência), um programa para menores aprendizes…’, isso porque existe incentivo fiscal”. 

Lys complementa este pensamento, destacando a necessidade de prevenir que as vítimas de trabalho escravo contemporâneo se tornem vítimas. “As políticas públicas devem garantir os direitos fundamentais à moradia, saneamento, educação, creches”, enumera, “para garantir a fixação das pessoas em seus locais de origem. Um perfil predominante (de resgatados) são pessoas que migram em busca de sobrevivência, de garantia de meios de vida e trabalho para si e sua família”. Outro ponto defendido pela coordenadora é o aumento do número de auditores fiscais do trabalho: “hoje temos um déficit de quase 60% no quadro”. 

O papel fundamental da moda

Como anunciado pelo Índice de Transparência na Moda 2022, é alarmante o cenário de falta de transparência das empresas brasileiras. Foram analisadas 60 grandes marcas e varejistas do mercado brasileiro, das quais 48% não pontuaram na seção Tópicos em Destaque – na qual são levantados informações sobre temáticas urgentes, tais como combate ao trabalho escravo contemporâneo e pagamento de salário justo para viver. 

Como o relatório What a Way to Make a Living frisa: “exploração e violação dos direitos trabalhistas não são uma aberração do sistema, mas estão integradas ao paradigma econômico neoliberal”. As relações laborais devem respeitar direitos fundamentais como liberdade, independência e a sindicalização. Caso contrário, as circunstâncias de violação dos direitos humanos, tráfico de pessoas e trabalho escravo contemporâneo continuarão. 

Para seguir mobilizando a indústria da moda no Brasil, te convidamos para colocar no calendário e participar da Semana Fashion Revolution, que acontece de 22 a 29 de abril de 2023. ​​​​​​​​​Saiba mais acessando: https://brasil.fashionrevolution.org/

Para denunciar casos de trabalho escravo contemporâneo, Disque 100 – Disque Direitos Humanos – ou faça a ocorrência via site do MPT (Ministério Público do Trabalho). A denúncia pode ser feita de forma anônima.

Juliana Aguilera

Jornalista especializada em meio ambiente e justiça socioambiental, que valoriza a comunicação como ferramenta para criação de um futuro mais justo. Tem passagem no Instituto Modefica, Mongabay Brasil, Instituto Internacional Arayara, entre outros. 

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