Beatriz Pacheco
O recado foi dado: “Out with the old, in with the new”, e a moda brasileira, enfim, respira novos ares. No mercado, não há mais espaço para o tom blasé pelo qual o mundo fashion foi conhecido. Depois de dois anos em pandemia, o momento é de revolução de ideias e de plataformas, por isso, engajar é preciso. Mas essa mudança de cenário não significa necessariamente que grifes antigas estão fadadas à morte. No plano internacional, Gucci e Balenciaga captaram e souberam responder muito bem à mensagem, ao ponto de se tornarem os nomes mais aclamados no universo da alta costura hoje, especialmente entre consumidores da geração Z (nascidos entre 1995-2010).
Nas últimas temporadas, essas marcas provaram que suas identidades evoluem, nutridas pelos movimentos políticos e sociais. No último domingo, a Balenciaga apresentou ao front-row da Paris Fashion Week (e ao mundo, pelas redes sociais) seu desfile-protesto que tratou da escalada militar no leste europeu com as investidas da Rússia contra a Ucrânia — Demna Gvasalia, seu diretor criativo, é um ex-refugiado da guerra étnica na Geórgia. No Brasil, a ascensão da nova era fashion também nasceu nos movimentos políticos da indústria, que lutam por espaço para os talentos que enfrentam mais barreiras para chegar às passarelas das semanas nacionais de alta costura. O coletivo Pretos na Moda e a startup Vetor Afro-Indígena na Moda (Vamo) lideraram as iniciativas e, em 2021, junto à São Paulo Fashion Week, lançaram o projeto Sankofa, que promove marcas novas e mais diversas no circuito oficial da moda.
Não à toa, foram os desfiles mais incensados da última temporada brasileira. Entre os destaques, as marcas baianas Meninos Rei e Ateliê Mão de Mãe, que buscam enaltecer a estética negra e regional. Os novos nomes no Olimpo da moda nacional têm em comum sobrenomes fora do padrão até então predominante na elite desse setor, de maioria branca, pertencentes à alta classe econômica, com acesso aos melhores institutos de design e a recursos financeiros. Os novos ventos no mercado trazem consigo também corpos, rostos, cores, modelagens e posicionamentos antes rejeitados nesse universo e que são agora bem-vindos. “A novidade está em quem está vestindo essas peças nas passarelas e fora delas, e também em quem está por trás da criação”, afirmou Janaína Souza, stylist e figurinista da Style Neuf, que atende clientes como a filósofa Djamila Ribeiro.
Do estúdio em Salvador, os estilistas Vinicius Santana e Patrick Fortuna, à frente do Ateliê Mão de Mãe, trabalham um crochê com regionalidade, em alusão à cultura da sua Bahia, do trabalho artesanal até as cores, com uma cartela em que predominam o azul, o branco, o bordô e tons terrosos. Ficaram conhecidos por aplicarem a técnica de forma inusitada, até como composição em peças de alfaiataria. Seu compromisso ecológico aparece nas matérias-primas em acessórios e nas roupas, nas quais tanto Santana e Fortuna quanto seus conterrâneos da Meninos Rei trabalham com algodão brasileiro cultivado de maneira sustentável. Os irmãos soteropolitanos Céu e Junior Rocha, as mentes por trás da Meninos Rei, subiram a temperatura da primeira edição presencial da Sankofa com um desfile aberto por homenagens ao candomblé e trilha sonora acompanhada dos gritos de “fora, Bolsonaro”. A marca trouxe peças construídas em tecidos africanos tradicionais com cores vibrantes, arduamente trabalhadas no patchwork e reconstrução de estampas, além das referências ao streetwear com modelagens oversized. Não à toa, foi reverenciada pela crítica especializada. “São marcas que se diferenciam pela qualidade e pelo frescor que apresentam a moda brasileira, por isso estão ganhando cada vez mais espaço e relevância no mercado”, disse Janaína.
FORA DA BOLHA Nomes há anos no mercado já vinham abrindo esses caminhos, caso de Isaac Silva, com sua marca homônima, e Luiz Claudio Souza, da Apartamento 03. Hoje sucesso de público e de crítica, ambas foram concebidas pela busca estética das raízes indígenas e negras de seus criadores, que se expressam de formas muito distintas entre si. Vindo do hoje longínquo sertão baiano, Isaac Silva consagrou uma moda ancestral de peças fluidas, coloridas e sem distinção de gênero. Foram quatro anos desde sua estreia no projeto Casa dos Criadores, em 2015, até o primeiro desfile na SPFW. Mas a carreira do estilista decolou mesmo nos últimos dois anos, desde que passou a vestir Gilberto Gil, a cantora Liniker, Ivete Sangalo, Djamila Ribeiro, Taís Araújo, além da sua eterna musa Elza Soares, que morreu no início deste ano. Em 2021, seu nome chegou à Europa pela colaboração artística firmada com a Havaianas, que já ganhou uma segunda edição, tamanho o sucesso.
Já o mineiro Luiz Claudio Souza, que fundou a Apartamento 03 em 2006, aposta em uma moda de alfaiataria moderna. Mesmo hoje entre os maiores nomes no universo fashion do Brasil, a entrada da Apartamento 03 na semana de moda só aconteceu um ano depois da compra da marca, em 2014, pelo grupo Nohda, dona das grifes Patrícia Bonaldi e Pat.Bo. Em 2018, Luiz Cláudio, negro, nascido e criado em uma família de costureiros, realizou o que há tempos desejava: um desfile apenas com modelos pretas na SPFW. Sua moda preza pelo acabamento do toque, pelo movimento de tecidos e variação de texturas e tramas. No último desfile, o diretor criativo brincou com a palha sobre uma cartela de tons de palha natural, vermelho cerâmica, marinho, o clássico off-white e pitadas de um verde neon e rosa.
MARCA: Isaac Silva. ESTILISTA: Isaac Silva (à direita). ESTREIA NO CIRCUITO: Em 2015, na Casa dos Criadores. O QUE TRAZ PARA A MODA? Cores e fluidez em peças sem gênero. Referências às raízes do estilista.
Foto: Saulo Dias
As recém-retomadas passarelas hoje transbordam a nova era. No Brasil, o casting que antes reforçava os padrões da indústria, desde 2019 é formado também por corpos gordos, magros, trans, não-binários, mais velhos e com deficiência. A conquista vem da pressão dos coletivos, que acordaram com a organização que ao menos 50% dos castings fossem formados por modelos racializados. Famosos e figuras públicas ajudam a enaltecer essa moda politizada, ao associarem sua imagem à defesa de causas e histórias que representam. “Mais do que isso, ter influenciadores que são referência para outros públicos é uma forma de estourar a bolha da marca”, afirmou Janaína. Pioneiros e novos talentos endossam a transformação do mercado fashion, com olhares mais diversos para a construção de uma moda mais plural e brasileira.
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