“Ainda hoje, a migração é vista com o olhar masculino, não se fala da mulher.
Divórcio, a morte dos familiares, abandono, vontade de conhecer lugares diferentes e até mesmo a sensação de não pertencimento àquela comunidade podem ser motivos para migrar. A psicóloga lembra de uma paciente que, mesmo com formação acadêmica e uma profissão segura, imigrou para o Brasil para trabalhar na costura depois do noivo desaparecer. “O noivo, com o qual ela teve um filho, não quis casar com ela, não quis assumir o filho e sumiu”, relembra Berenice. “No Brasil ela passou por situações que só se podia explicar pela situação de humilhação a qual ela já tinha vivido.” As experiências prévias de violência e vergonha possibilitaram ela aguentar a exploração e humilhação na oficina.
Muitas mulheres também vêem na imigração uma rota de saída de um relacionamento abusivo e violência doméstica. “Tem uma grande parte que migra pela questão financeira, mas está aumentando o número de mulheres que fogem da violência”, explica Carla Aguilar, assistente social do Cami, Centro de Apoio e Pastoral do Migrante, cuja missão é acolher e mobilizar os imigrantes na luta por direitos, cidadania e empoderamento social e político. Trabalhando na organização desde 2015, ela afirma já ter presenciado diversos casos de mulheres que largaram tudo e vieram para o Brasil em busca de uma vida melhor, sem violência.
Somado a esse emaranhado de fatores sociais, existe também na Bolívia toda uma rede de “recrutamento” estruturada para trazer mais imigrantes para o Brasil. Roque Patussi, diretor do Cami, atua contra o trabalho escravo e tráfico de pessoas desde os anos 90 e explica que esses recrutadores vão na origem, normalmente em cidades do interior, e conseguem convencer pessoas, principalmente jovens e seus pais, sobre as chances de sucesso no Brasil.
Patricia Torrez, advogada e integrante do Frente das Mulheres Migrantes, coletivo de mulheres imigrantes e brasileiras que reivindica maior equidade de gênero no contexto migratório, e coordenadora do coletivo Sí, Yo Puedo, movimento independente de acolhimento e orientação vocacional e profissional para imigrantes, conta que já ouviu muitos relatos de pessoas dizendo que foram ludibriadas. “Quando oferecem [o trabalho no Brasil] em pequenos cartões, até mesmo nos grandes centros da Bolívia como La Paz, eles dizem que a pessoa vai ganhar em dólar, irá morar no lugar onde trabalha e não precisará gastar com moradia ou comida”, conta a advogada. Normalmente, esse recrutamento é feito por uma pessoa próxima, por exemplo, um tio ou primo; essa relação de confiança não deixa muito espaço para suspeitas.
Entretanto, apesar das especificidades de cada grupo, é errado entender a imigração como reflexo de um problema social exclusivamente da Bolívia. A imigração acontece com cada vez mais intensidade no mundo todo, além de ser um direito de qualquer pessoa. Berenice compara, por exemplo, a migração de bolivianas para a indústria da costura com a migração de brasileiras com grau superior para os Estados Unidos: “Não é de jeito nenhum somente o fato que são umas coitadas e vêm a procura de trabalho. Não é só trabalho. Tem que trabalhar pra se sustentar sim, […] mas o que as move vai muito além. É bem complexo. É a mesma coisa de brasileiras fazendo faxina nos Estados Unidos ou na Europa”, pondera.
O TRABALHO NAS OFICINAS
Para essa almejada melhora de vida e ascensão social, o trabalho inevitavelmente faz parte da rota a ser trilhada por qualquer imigrante, porém a vulnerabilidade social frequentemente coloca essas pessoas em situação de exploração. Quando chegou ao Brasil, Gladis trabalhava numa confecção em horário prolongado. Ela morava e trabalhava no mesmo lugar e não havia muito tempo de folga . Sob o domínio do patrão, as saídas eram também controladas. As condições sob as quais trabalhou configuram trabalho análogo à escravidão conforme o Artigo 149 do Código Penal Brasileiro. No Brasil, trabalho escravo pode ser configurado em quatro tipos de situações: trabalho forçado ou jornadas exaustivas, más condições de trabalho, restrição de locomoção do empregado e dependência financeira e/ou emocional com o patrão. A lei brasileira é referência mundial por contemplar não só os aspectos físicos, mas também os psicológicos sofridos pelos funcionários.
É importante ressaltar, porém, que a maioria das pessoas que trabalham em confecções sob tais condições não se enxergam nessa posição de vítima de abuso . Para elas, mesmo exaustivo, repetitivo e insalubre, é trabalho que precisa ser feito, além de ser o único trabalho no qual elas são aceitas. Aos poucos, a conscientização de que algo está errado alcança mais trabalhadores e trabalhadoras, mas mesmo quando eles não aceitam a situação ou conhecem seus direitos, sair desse contexto não é simples.
Há a questão do idioma, já que a maioria das pessoas imigrantes não fala português, do local de moradia e da regularização dos documentos. Apesar do tratado de livro trânsito entre Brasil e Bolívia, a regularização continua sendo uma grande dificuldade das pessoas imigrantes que trabalham na costura, principalmente porque não é fácil juntar o dinheiro necessário para arcar com emissão do RNE (Registro Nacional de Estrangeiros) – custa cerca de R$ 500 só para dar entrada no processo, que tem toda uma burocracia envolvida.
“... Mais democracia, mais liberdade, mais educação. As migrações não param com muros nem leis, mas resolvendo situações terríveis nos lugares de origem.”
Isabel Allende
“Quinhentos reais é o valor destinado à Polícia Federal, soma-se a isso outros documentos necessários para o processo. Alguns são gratuitos, outros não e alguns documentos são necessários solicitar na Bolívia […] Isso minimamente custa quase mil reais”, ressalta Patrícia sobre as complicações da regularização. “Agora imagine o custo disso para uma família de quatro pessoas?”. Por esse motivo, muitos ficam sem documentos, o que se torna um problema na vida do imigrante no país e deixa às mulheres ainda mais suscetíveis à violência e exploração.
Devido ao Mercosul, se a boliviana permanecer um tempo irregular no Brasil, ela pode se regularizar mediante ao pagamento de multa, não implicando deportação. “O correto, assim como está na lei que protege o migrante, é que a polícia apenas ordene que a pessoa imigrante se regularize”, explica Luis Benavides, advogado especialista em direito internacional e colaborador do Cami. “Na prática funciona de outra forma, as expulsões acabam sendo administrativas, e não judiciais, muitas vezes feitas por decisões particulares”. A nova Lei da Imigração deve melhorar, pelo menos em partes, a relação do Estado brasileiro com o imigrante
Ademais, mesmo que a mulher imigrante consiga arcar com os custos da regularização, as complicações não param por aqui. Antes do RNE com validade de dois anos ser emitido, os imigrantes precisam se virar com um protocolo. “O protocolo dá uma situação jurídica de permissão de permanência no país”, explica Patrícia. “Porém, o documento, às vezes, demora um ano para ser emitido e o imigrante fica todo esse tempo com um protocolo. Quando o RNE é finalmente emitido, a pessoa só poderá usá-lo por mais um ano. […]”. O custo alto somado ao pouco tempo de validade do documento faz com que muitas pessoas bolivianas fiquem sem a documentação. Para quem ainda está na dúvida e tem expectativa de voltar para a Bolívia, a regularização nem entra nos planos.
O desconhecimento da legislação e a distância entre teoria e prática da lei faz com que o imigrante irregular fique com um medo constante de ser pego e não procure seus direitos trabalhistas. Fora isso, procurar a justiça requer tempo, coisa que o imigrante não tem. Um dia sem trabalho é um dia sem recebimento e até mesmo sem alimentação.
A junção da expansão econômica brasileira, responsável por aumentar demanda e consequentemente produção de roupas, com o tratado de livre trânsito e residência intensificou o número de imigrantes bolivianos em São Paulo, o que tornou a mão de obra mais abundante e mais suscetível à exploração. Conforme explica Patussi, o aumento do número de imigrantes pulverizou oficinas de costura por todos os lados da cidade, criando uma competição de quem produz mais barato determinado produto. “Na Praça Kantuta há tipo de um leilão ao contrário para achar quem vai cobrar menos pelos serviços de costura”, afirma ele.
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Tem uma grande parte que migra pela questão financeira, mas está aumentando o número de mulheres que fogem da violência.
O trabalho também é monótono e repetitivo, em ambientes totalmente irregulares e sem pausas para descanso, uma função que poucos de nós estaríamos dispostos a fazer. Como muitas vezes o recebimento é por peça, quanto mais se costura, mais se ganha. A condição está longe do ideal, mas é vista como temporária pela maior parte das pessoas nessa situação. “O objetivo é ter a própria oficina de costura. Então esse tempo de trabalho servirá para juntar dinheiro, comprar uma ou duas máquinas, alugar um espaço e montar uma oficina dando continuidade ao ciclo de exploração”, explica Patussi. “ Tem todo um sistema já montado dentro dessa cadeia produtiva”.
A OFICINA ALÉM DA COSTURA
Para as mulheres, as piores questões das oficinas de costura, porém, não se limitam às condições de trabalho. Quando as oficinas servem também como moradia, como acontece na maioria dos casos, há toda uma sobreposição de relações, inclusive com o patrão, que interfere diretamente na vida e nos hábitos dos funcionários. A intimidade é frequentemente invadida e não há espaço para privacidade. “O mais comum é colocar o quarto dos homens e o quarto das mulheres e elas têm que conviver com pessoas com as quais nunca conviveram. Isso pra elas é violento”, explica Berenice. “Elas têm que vestir, desvestir, compartilhar um ou dois banheiros entre 10, 12 pessoas”.
Crianças também moram nas oficinas, mas como cama e comida estão relacionadas ao trabalho, as mães precisam dividir ambas com os filhos. A vida das mulheres grávidas e dos bebês é igualmente complicada e difícil. Gladis fez a mesma jornada puxada durante toda sua gestação de risco. As mesmas horas exaustivas, sem qualquer tipo de descanso extra. “Eu recebi o tratamento por igual, como se não estivesse grávida. Eu só parei um mês, porque se não trabalhava, não tinha nem o que comer”, relata ela. Sem carteira assinada, a Licença Maternidade é algo fora de cogitação nas oficinas de costura.
Soma-se a esses fatores a sobreposição de funções. Os papéis de costureira, mãe e dona de casa se acumulam de maneira exaustiva. Ela faz todo o trabalho de mãe, é esposa, é costureira, faz a alimentação dos funcionários. Dentro das casas-oficinas, a mulher exerce no mínimo quatro funções enquanto o homem exerce apenas uma. Por todos os ângulos de análise, a mulher nesse processo é a mais penalizada.
Violências sobrepostas: migrante e mulher
Estupro, assédio moral e sexual, agressões físicas, cerceamento da liberdade e falta de apoio do Estado também fazem parte da vida da mulher imigrante na costura . Casos de estupro das mulheres e até mesmo de seus filhos e filhas não são raros, assim como a violência física muitas vezes relacionada ao alcoolismo, que vem se tornando um problema cada vez mais crescente, e não devidamente tratado, na comunidade imigrante. “O álcool está muito associado à violência no caso dos bolivianos”, ressalta Berenice. “Eles já bebem no seu país, mas o alcoolismo crônico no qual alguns entram está relacionado também a todo esse processo de imigração”.
O estresse causado pelas longas, exaustivas e confinadas horas de trabalho, sempre sob a pressão de um chefe, levam o boliviano a abusar da bebida nos fins de semana. “Os sonhos dele, pra onde foram? As esperanças dele, pra onde foram? A família dele, onde está? Ele não tem tempo pra família, ele não tem tempo para os filhos, ele não tem tempo para a esposa. Aí chegam em casa bêbados, qualquer coisa […] vira agressão física, não é mais nem verbal, é física”, explica Roque. As várias formas de violência normalmente partem do marido, mas podem vir também do irmão ou algum outro parente homem e até mesmo do chefe e colega de trabalho.
Sair dessa rede de opressões é uma missão ainda mais desafiadora para as mulheres. Primeiro, por conta da responsabilidade pela família. “Você migrou com seu companheiro, com seus filhos, você vai responder por aquela família. Você vai trabalhar por essa família, talvez pela família que ficou na Bolívia”, salienta Patrícia. Segundo, porque existem diversas barreiras sociais. Se já não é fácil para uma mulher brasileira sair de um ciclo de opressão e violência, a boliviana enfrenta ainda mais desafios, começando pela questão da língua. Depois há o medo inerente do Estado, que não é visto como alguém em quem essa mulher possa confiar. “A violência policial está na vida das pessoas”, lembra Patrícia. “Através da delegacia, ela estará chamando o inimigo. É como se ela estivesse chamando a atenção para toda aquela oficina ser deportada. A questão é muito delicada porque quando agentes policiais chegam na oficina de costura é super violento, não é nada protetor, não é nada empoderador”.
Quando essa mulher decide enfrentar a barreira da língua, o medo da violência policial e das possíveis consequências de uma denúncia, há ainda outros obstáculos que dificultam seu acesso aos serviços de proteção. É nesse momento que projetos, ONGs e grupos como Missão Paz e Cami são tão importantes para as imigrantes, pois são eles que recebem essas mulheres e as ajudam no processo de denúncia, encaminhamento para abrigos e nas relações com as autoridades.
Para Carla, acompanhar casos de violência é uma constante. “Em um mês eu atendi quatro vítimas de violência que precisaram mudar para abrigos. As mulheres estão começando a falar mais, esse é o lado bom. […] As pessoas mandam fotos para mim, fotos da violência”, conta ela. “Teve uma grávida de 8 meses e meio, o rosto dela ficou deformado. E ela não consegue sair dessa situação porque tem 2 filhos com o agressor, mais esse que ela está esperando e a mãe tem câncer e mora com ela”.
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Os imigrantes estão aqui e pagam impostos, ajudam no desenvolvimento do país. Não estão aqui, como muitas pessoas dizem, em caráter parasitário.
Apesar do direito de livre trânsito dos países do Mercosul é preciso um olhar mais atento do Estado para garantir às mulheres imigrantes condição de viver uma vida digna e ter real acesso aos serviços básicos, que vão desde atendimento da rede pública de saúde até educação para os filhos. “Se com documentação isso ainda é complicado, sem documentação e sem informação fica ainda pior, essa mulher não consegue sair de um ciclo de violência”, enfatiza Patricia. “São essas complexidades que não chegam nos imigrantes. Igualmente os imigrantes estão aqui e pagam impostos, ajudam no desenvolvimento do país. Não estão aqui, como muitas pessoas dizem, em caráter parasitário”.
A MULHER SEMPRE UM PASSO ATRÁS
Ao colocarmos uma lupa sobre as questões responsáveis por afetar a vida das mulheres imigrantes na costura, percebemos outros embates que as impedem de avançar socialmente e um deles é o controle do marido. Berenice explica que a cultura andina não sofre tantas influências ocidentais como outras culturas. A sociedade é mais conservadora e a voz masculina nas tomadas de decisões ainda é muito forte. Chegando no Brasil, isso não muda . Além da violência física, verbal e moral, os homens também não deixam as mulheres evoluírem profissionalmente ou até mesmo terem uma vida social.
Há dois anos separada do marido, Gladis se sente livre pela primeira vez. “Ele não mudou, então nos separamos. Me sinto livre, mas não foi fácil. Tive depressão depois do divórcio”, conta ela. O marido levou consigo o CNPJ da pequena oficina de costura que Gladis montou para pegar serviços de confecção de peças para pequenas coleções, mostruário e peças piloto. No Cami, ela presenciou muitas situações onde o marido controla completamente a vida da mulher, inclusive o dinheiro. “A maioria não deixa suas mulheres fazerem cursos de capacitação, e essas mulheres não entendem que elas têm direito de escolher”, explica ela. “A maioria dos homens não dá essa liberdade à mulher. Muitos não deixam a mulher sequer sair de casa”.
Grupos como o Cami e o Sí, Yo Puedo não só oferecem cursos profissionalizantes, de língua portuguesa, pré-vestibulares, etc como também promovem rodas de conversas para mulheres imigrantes. A frequência das mulheres nessas ações, porém, é delimitada, novamente, pelo marido – se ele não deixa, a mulher não vai. As rodas acontecem nos fins de semana, quando as bolivianas têm tempo livre da oficina. Mas logo entra a cobrança dos maridos para que elas fiquem em casa cuidando das crianças ou limpando o local de trabalho. Cientes do que elas vão aprender, eles procuram razões para que elas fiquem restritas ao ambiente doméstico.
A mulher é a última também a ter os documentos regularizados. Na pirâmide de importância, o homem é o primeiro – para conseguir trabalho dentro das leis brasileiras e poder regularizar a oficina de costura. Depois vêm os filhos, porque, para mudar de escola por exemplo, eles precisam do histórico escolar, e no Brasil só se tem histórico escolar quando existe um documento brasileiro. Em uma separação, como aconteceu com Gladis, o CNPJ pode ir embora junto com o marido. Por outro lado, quando a mulher é regularizada primeiro e oficina de costura está em seu nome, não são raros os casos em que o marido faz dívidas com o documento da esposa, desaparece e deixa para ela resolver todos os problemas.
A dependência financeira é outro empecilho para a mulher boliviana. Muitas vezes, é o marido quem toma conta das economias da família, então ela não carrega consigo nenhum dinheiro – muito menos tem algum montante guardado para uso próprio ou para os filhos. Essa situação pode se complicar nos casos em que o marido decide, simplesmente, trocar de esposa. “O marido vai à Bolívia, ele já tem documento, e encontra uma menina mais nova lá, traz ela pra cá e manda a esposa sair de casa e levar os filhos”, conta Roque que já presenciou casos assim mais de uma vez.
O conhecimento é a saída
Quando se veem nessas condições de trabalho, sem vida, sofrendo abusos, algumas dessas mulheres voltam para a Bolívia, mas a maioria não. Quem volta, acaba não ficando por lá muito tempo. “Elas não reconhecem mais o ambiente, os filhos não se adaptam. Mas muitas não voltam porque voltar é tido como sinônimo de fracasso, de uma missão que não deu certo. Voltar para a comunidade é reconhecer esse fracasso perante todos”, explica Berenice. E foi exatamente isso que segurou Gladis no Brasil: “Eu pensei em voltar, muitas vezes, mas não podia. Seria como assumir uma derrota”. Faz mais sentido para as mulheres enfrentarem as dificuldades, se organizarem aqui e buscarem uma vida melhor do que voltar para um local que, apesar de ser o seu país de origem, elas não reconhecem mais. “Todo imigrante, quando migra, se transforma”, explica Berenice.
“Quando olhamos para trás e recordamos o que nos trouxe aqui, com qual das histórias por nós contadas e ouvidas nos sentimos mais conectados?”
Zygmunt Bauman
Mesmo vivendo totalmente descoladas da sociedade brasileira, o choque cultural é, para essas mulheres, um empurrão para o entendimento de que a vida de abuso e sofrimento sob o comando de um homem não é um destino inevitável. Começa pela TV, presente em todas as oficinas. Na mídia brasileira as mulheres bolivianas encontram uma outra realidade, um processo de aculturação modernizado que se por um lado é violento para seus costumes, por outro causa desejo de mudança.
“Obviamente, elas suportavam uma série de coisas que as mulheres da televisão não suportavam. […] E ela via também que o Estado brasileiro era mais atuante se comparado ao Estado boliviano em relação aos direitos das mulheres”, afirma Berenice. É um dos possíveis começos para uma vontade de romper qualquer tipo de relação com o agressor e encontrar outro caminho que não seja suportar a violência nem voltar para a Bolívia.
“A maioria dos homens não dá essa liberdade à mulher. Muitos não deixam a mulher sequer sair de casa
As rodas de conversa entre mulheres também servem como uma outra porta para conhecer um mundo diferente. Gênero e migração são dois dos temas mais abordados nessas rodas, que servem também como um lugar seguro onde as mulheres podem dividir seus problemas e procurar soluções. Através das dinâmicas, elas vão aprendendo sobre seus direitos e sobre o acesso a políticas públicas. O empoderamento social e feminimo ali torna-se inevitável.
O acesso à informação sobre legislação e direitos é um esforço constante das organizações. Por meio das rodas de conversa, cartilhas e jornais informativos distribuídos na Praça Kantuta e nos bairros com alta concentração de imigrantes, os grupos e ONGs tentam empoderar a comunidade. Há também toda um esforço de articulação com o Estado em busca de melhores políticas públicas para as mulheres imigrantes.
A cartilha “Mulheres Imigrantes e Refugiadas e a Luta por Políticas Públicas n... é um exemplo do empenho das organizações das mulheres imigrantes para combater as violências e dificuldades da comunidade. Realizada pela Prefeitura de São Paulo e pelo Centro de Referência e Acolhida do Imigrante (Crai), o material é resultado da articulação, por meio de audiências públicas e seminários, da sociedade civil frente ao Estado. Outro exemplo dos esforços de informar mulheres migrantes sobre seus direitos é o material informativo de combate à violência, em português e espanhol, elaborado pelo Cami, em parceria com o Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP).
Gladis acredita que o contato com o Cami foi um caminho fundamental para abrir novas portas profissionais. Hoje ela costura em casa, por conta própria, e quando tem um pedido grande em mãos chama uma ou duas amigas para auxiliá-la. Graças à parceria entre a Aliança Empreendedora e o Sí, Yo Puedo, Gladis está fazendo um curso de empreendedorismo e tem como objetivo abrir o próprio negócio. Abrir o próprio negócio e a própria marca é como muitas mulheres encontram o caminho da satisfação dentro da costura.
O que essa experiência de ouvir as mulheres e pessoas que trabalham lado a lado com elas faz saltar aos olhos é que as complexidades e desigualdades da nossa sociedade e sistema econômico exercem um peso enorme para as mulheres imigrantes. Porém, cada vez mais mulheres deixam de aceitar sua situação de forma passiva. Elas se organizam, lutam e demandam melhoras .
Sem dúvidas ainda há um longo caminho a ser percorrido e a situação das mulheres imigrantes na costura em São Paulo não está nem próxima de ser resolvida. É preciso um comprometimento maior da sociedade civil e do poder público, além de responsabilização das empresas que utilizam esse tipo de mão de obra. Porém assumir que essas mulheres são vítimas inertes – das marcas de moda, do consumo desenfreado, do Estado – é apagar o que elas já enfrentaram e construíram até aqui. Nós não precisamos lutar por elas. Nós precisamos lutar com elas.
Essa reportagem resultou em um aglomerado com informações para quem quer saber mais e está interessado em começar a entender como somar na luta das mulheres imigrantes na costura. Veja nossa cartilha especial clicando aqui.
Reportagem por Juliana Aguilera e Marina Colerato. Agradecimento especial à Camila Rossi.