Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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Por Que A Moda ‘Sustentável’ Não É Realmente Possível Se Nós Não Repensarmos O Sistema

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Quem acompanha o Modefica já deve ter notado sobre algumas coisas as quais dificilmente falamos por aqui quando o tema é moda “sustentável”. Em uma das primeiras Cartas da Editora que escrevi, posicionei o Modefica, que conta com a colaboração de várias outras mulheres e pontos de vista, sobre o fato de nós não acreditarmos na moda sustentável. Esse termo por aqui não passa porque, dentro do nosso sistema econômico atual, sustentabilidade ainda é praticamente inviável [1]. É necessário lembrarmos disso sempre.

Por isso, nós nunca falamos sobre coisas como: “tecidos que prometem revolucionar a indústria da moda”, “H&M lança Semana Mundial da Reciclagem”, “nova tecnologia verde vai transformar a moda” e outras manchetes parecidas. Nós não queremos dar a impressão de que as coisas vão bem e passar a mensagem, mesmo que de maneira inconsciente, que as empresas, sozinhas e com essas atitudes, estão resolvendo os problemas socio ambientais causados pelo capitalismo. Não está nada bem e não há nenhuma iniciativa capaz de, isoladamente, transformar o sistema da moda e torná-lo sustentável sem ações que foquem na raiz da doença e não em seus sintomas.

Não entenda errado. Nós acreditamos e apoiamos diversas marcas e iniciativas por fazerem diferente, mostramos muitas delas por aqui e pelos mais variados motivos. Tentamos, inclusive, nos engajar para que novas marcas e iniciativas surjam com uma mentalidade diferente e pensem em novas maneiras de fazer negócios. E sabemos não ser algo simples, pelo contrário, é muito complicado e desafiador. Muitas vezes, é preciso até se colocar lado a lado de uma mega empresa ou conglomerado para ter força (muitas vezes financeira) de começar a agir.

Também sabemos existir algumas iniciativas ótimas dentro da indústria de moda, algumas das quais eu pessoalmente tive a chance de conhecer. Uma delas é a empresa espanhola Jeanologia, pioneira no beneficiamento de jeans à laser e ozônio na cadeia de produção, responsável por possibilitar a diminuição drástica, quase eliminar, a quantidade de água, químicos e energia necessários para transformar o jeans cru no jeans que vemos nas lojas. Isso poupa não só recursos ambientais, como também a saúde de vários trabalhadores que lidavam com técnicas arcaicas de beneficiamento todos os dias.

Mas mesmo que iniciativas como essa busquem agir nas causas do problema, nessa caso propondo tecnologia como solução, a sustentabilidade não depende só de uma empresa ou de uma ação. No caso da Jeanologia depende, por exemplo, de governos liberarem importações das máquinas a custos menores e aprovarem leis que proíbam as empresas de beneficiamento a usarem excesso de recursos no tratamento do jeans. Depende também de donos de lavanderias industrias acreditarem e abraçarem a ideia, e se abrirem pro novo, coisa que sabemos nunca ser tão fácil mesmo quando as mudanças gerem benefícios financeiros.

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Imagens via satélite do Mar de Aral, no Uzbequistão. Suas águas praticamente secaram depois de irrigar plantações de algodão entre 2000 e 2013.

Por mais que os produtos da Jeanologia sejam incríveis, e hoje tenham se popularizado com outras empresas produzindo equipamentos similares, eles são incapazes de transformar o jeans em um produto sustentável. Antes do beneficiamento, o algodão foi plantado, regado, colhido, transportado, transformado em fio, depois em tecido, depois costurado e só depois beneficiado. Antes de serem tratados com lazer e ozônio, as calças jeans exigiram muito do planeta e das pessoas. Quando olhamos para a demanda de um bilhão de calças jeans produzidas só em Bangladesh por ano, percebemos que o beneficiamento ecofriendly é incapaz, sozinho, de mudar qualquer coisa em uma cadeia de produção de mais de 100 etapas.

Não importa quantas iniciativas bacanas nós avaliarmos – tecidos incríveis, fibras ‘revolucionárias’, tecnologias mil -, nós sempre vamos esbarrar em três problemas: demanda, produção globalizada e legislação. A demanda por produtos de moda – caros ou baratos – é astronômica. Faz parte do funcionamento do sistema atual: quanto mais comprarmos, melhor será a economia. Entretanto, produzir bilhões de peças por ano nunca será sustentável – economicamente, ambientalmente e humanamente falando – a longo prazo. Por outro lado, as legislações frouxas fazem com que as empresas tenham cada vez mais liberdade e poder sobre os subcontratados, sobre os recursos do meio ambiente e sobre os trabalhadores em vários países. Em última análise, se não repensarmos demanda e produção e criarmos legislações melhores, é difícil acreditar numa mudança real.

Recentemente, uma das maiores redes de fast-fashion do mundo, a H&M, lançou uma nova campanha que promete arrecadar 1 milhão de toneladas em peças de pós-consumo durante sua “World Recycle Week”. Parece ótimo: “vamos reciclar tudo”. Mas em uma entrevista ao EcoCult, o gerente de desenvolvimento sustável da empresa, Henrik Lampa, foi bem claro:

“Agora é super escasso, menos de 0.1% dos tecidos são reciclados em novos tecidos. E esse é o ponto. Nós queremos fertilizar, por meio de nossa iniciativa, que todos as roupas sejam reusadas, claro.”

Quando a jornalista questiona: “Não parece uma simplificação dizer: ‘Traga sua roupa, elas serão recicladas em roupas novas’, quando a maioria será downcycled [2] ou enviada para o exterior para ser reutilizada?”, Lampa responde que realmente, a iniciativa está longe de ser perfeita, mas com isso a empresa quer incentivar a tecnologia de reciclagem.

Por mais que o desenvolvimento de tecnologias de reciclagem de têxteis de pós-consumo seja algo urgente e capaz de transformar a logística reversa das roupas, além de sabermos a exigência de altos investimentos em pesquisas os quais só grandes empresas podem fazer, esse marketing que busca dizer que “tudo bem, nós estamos cuidando do problema, não se preocupe” deve ser lido com atenção, pois passa a impressão de que não somos nós, como cidadãos, que podemos fazer alguma coisa, mas sim as marcas de maneira soberana. Contanto que nós continuemos comprando delas, está tudo certo – e voltamos nós ao papel exclusivo de ‘consumidores’.

Para os mais céticos [ou diríamos, matemáticos], mesmo que houvesse uma tecnologia de reciclagem eficiente disponível e a H&M fosse capaz de reciclar um milhão de toneladas de tecidos, isso mal se compararia a quantidade de roupas que eles estão coloca.... É realmente uma conta difícil de fechar. Já os mais entusiasmados acreditam ser uma atitude promissora e capaz de, finalmente, causar uma ruptura importante no sistema de moda atual. A verdade é que nem sempre é tão fácil desenhar os limites entre o “bem e o mal”.

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Nos EUA, apenas 15% dos tecidos e roupas são reaproveitados. O resto acaba em aterros sanitários ou enviados para países mais pobres.

O que parece ser o maior problema, principalmente para os mais céticos, é o fato dos defensores do sistema atual, as grandes corporações e marcas de moda incluídas, dizerem que esse é o único jeito de fazer negócios. Eles tentam nos convencer de que não há alternativas além de tratar os sintomas, os trabalhadores dependem do hiper consumo do ocidente, dependem das empresas e dos empresários. No discurso, eles até parecem esquecer que o ocidente nem é mais o .... Há essa altura, já sabemos haver outras maneiras de fazer negócio e que toda a riqueza acumulada na mão de poucos só é interessante para esses poucos.

Veja bem como isso não é sobre a H&M, ou sobre não comprar da marca X ou Y, muito menos sobre comprar de segunda mão ou absolutamente não comprar. Essas iniciativas individuais, mesmo que elas gerem algum impacto e devam ser tomadas, precisam ser analisadas por diversos ângulos e terem seus limites reconhecidos. Essas reflexões todas são sobre reconhecer os obstáculos, dificuldades e problemas da indústria da moda (ou praticamente qualquer indústria) de forma integrada, com toda sua complexidade, para só assim encontrarmos soluções à altura.

Por exemplo, dentro do capitalismo operante, qualquer escassez significativa de demanda impacta drasticamente na vida dos trabalhadores braçais. Perdas de emprego e do mínimo de estabilidade financeira são consequências automáticas e inegáveis. Sendo assim, isso acaba sendo sobre repensar o sistema desde sua base e não apenas na ponta final, ou seja, na loja ou no pós-consumo. Em uma maneira tangível de como alcançar essas condições ideais, a jornalista e escritora, Tansy Hoskins, explica:

“Existe a necessidade de satisfazer exigências comuns em escala global. Satisfazer essas exigências significa que uma abundância de comida, moradia, educação, acesso à saúde, ar e água limpos, educação e transporte não privado prevaleça sobre a produção de roupas. Num país como Haiti isso significaria fechar fábricas de moda e voltar a crescer alimentos.” [3]

Não estamos falando aqui de socialismo, Marx, comunismo ou sobre qualquer outra alternativa as quais já conhecemos. Esse pensamento está alinhado a um novo sistema, ainda sem nome e sem precedentes, que deve ser construído desde já para suprir as demandas contemporâneas, com o envolvimento dos cidadãos como cidadão e não como compradores apenas. Um novo sistema menos baseado em consumo e privilégios de classe, e... em todos os países.


Para onde as roupas doadas realmente vão? O documentário Unrevel mostra uma parte da história.

Entretanto, esse olhar crítico e atento às ‘inovações’ deve ser direcionado não só às marcas. Iniciativas também precisam ser questionadas e convidadas a repensarem seu papel como agente transformador sempre, assim como nós como consumidores e cidadãos. Como nós, como consumidores, podemos fazer mais do que apenas “comprar melhor” ou “não comprar”? Como nós, como iniciativas, podemos agir ao invés de só pregar? Como nós, como cidadãos, podemos nos envolver e pressionar por melhores legislações? Como nós, como iniciativa privada, podemos começar a investir na transformação do sistema?

Não, não são perguntas fáceis de responder, mas são perguntas que precisam ser feitas ao invés de ignoradas ou substituídas por ‘marketing verde’ ou boicote. Não há mudanças sem entendermos o problema. Não há mudanças se não agirmos por mudanças. Não há mudanças se esperarmos que a mudança seja iniciada por quem perderá seus privilégios quando a mudança acontecer.

Notas de rodapé:

[1] What Every Environmentalist Needs to Know About Capitalism (2011) – Fred Magdoff e John Bellamy Foster
[2] Downcycling é o processo de recuperação de um material para reuso em um produto com menor valor, ou seja, a integridade do material é de certa forma comprometida com o processo de recuperação.
[3] Sitched Up (2014), Revolutionising Fashion, pág 197 – Tansy Hoskins

Imagem Capa: M.I.A para a nova campanha da H&M // Reprodução

Por Marina Colerato


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PARABENS POR ESTA MATERIA, ESCLARECEDORA, DE FORMA DIDATICA, A AUTORA COLOCA O DEDO NA FERIDA, E QUANDO ELA DIZ QUE NENHUMA MARCA SOZINHA VAI FAZER ESTA MUDANÇA, PORQUE NAO PODEMOS FALAR DESTAS MUDANÇAS SEM FALAR DE GOVERNOS E NAO SOMENTE LEGISLAÇÃO AMBIENTAL, MAS PRINCIPALMENTE EMBARGOS AO FAST FASHION, PORQUE OS DONOS DESTES FAST FASHION TEM UMA VERDADEIRA SINDROME DO TIO PATINHAS QUE VIVE CADA UM DELES QUE QUEREM SER O HOMEM MAIS RICO DO  MUNDO, ISTO É UMA COISA DOENTIA, É A DOENÇA DO CAPITALISMO DESENFREADO, POR OUTRO LADO TEM OUTRA DOENÇA GRAVE QUE É A DOS POLITICOS QUE ANTES DE PENSAR EM GOVERNAR, ELES PENSAM EM COMO PERMANECER NO PODER,  JA IMAGINOU SE CADA PAIS LIMITASSE O NUMERO DE LOJAS QUE UMA DETERMINADA MARCA DE FAST FASHION PODERIA ABRIR NO PAIS?, MAS ANTES DA MARCA CHEGAR, JÁ CHEGOU A PROPINA, JA TEM O GOVERNADOR FAZENDO CAMPANHA PARA MOSTRAR QUE VAI ABRIR TANTAS LOJAS DA ZARA NAQUELE ESTADO, OU H&M, OU SEJA LÁ QUE PORCARIA FOR, ELE NAO VE QUE AQUELE LIXO QUE ESTÁ SE INSTALANDO ALI, PODE ESTAR QUEBRANDO TODA OU PARTE DA INDUSTRIA TEXTIL DE SEU PAIS, DE SEU ESTADO OU DE SEU MUNICIPIO, ELE SEQUER TEM A CORAGEM DE DIZER ASSIM: VOCE SE INSTALA AQUI MAS VOCE VAI TER QUE COMPRAR X POR CENTO DE DENTRO DESTE ESTADO, ELE NAO DIZ ISTO PORQUE ELE JA FOI COMPRADO, ONDE TEM DINHEIRO DEMAIS TEM CORRUPÇAO DEMAIS, TEM PODER DEMAIS E CONSEQUENTEMENTE  MISERIA DEMAIS, NAO TEM COMO ACUMULAR CAPITAL SEM EXPLORAR A MAIS VALIA, QUANDO ALGUEM GANHA DEMAIS, OUTROS PERDEM DEMAIS TAMBEM, CADA DIA MAIS AS FORTUNAS SE ACUMULAM NA MAO DE MENOS GENTE, ESTES DOENTES MENTAIS NAO ESTAO PENSANDO EM MEIO AMBIENTE EM COMO VAI FICAR O PLANETA PARA SEUS FILHOS, ELES SAO MONSTROS CRIADOS PELO CAPITALISMO SELVAGEM, PELA GLOBALIZAÇÃO, ELES QUEREM APENAS O MARKETING QUE COMPRAR ESTES  MULAMBOS PRA RECICLAR VAI TRAZER PRA ELES, ESTÃO ANDANDO PARA A TINTA QUE ELE DEIXOU DE JOGAR NO MEIO AMBIENTE COMPRANDO ALGODAO NATURALMENTE COLORIDO, ELES QUEREM O MARKETING, SE ISTO ACRESCENTAR 10% AO FATURAMENTO DELES, ESTAMOS AI, SE NAO, DANE-SE VAMOS COLOCAR TINTA, VAMOS GASTAR AGUA, VAMOS FERRAR TUDO DESDE QUE MANTENHAMOS O CRESCIMENTO ANUAL DO NOSSO FATURAMENTO, VAMOS FAZER QUALQUER COISA PARA QUE EU SEJA O PROXIMO HOMEM MAIS RICO DO MUNDO PELA FORBES, OU QUALQUER OUTRA PORCARIA DESTAS.

ENTÃO NÓS QUE FAZEMOS MODA SUSTENTAVEL,  FAZEMOS ANTES DE TUDO POR PAIXÃO, PORQUE SE FORMOS PENSAR NESTES NUMEROS E DADOS QUE ESTÃO AI, AMANHÃ NAO TEREMOS UMA UNICA EMPRESA DE MODA SUSTENTAVEL NO MUNDO (FALO DE MODA SUSTENTAVEL DE VERDADE E NAO DAS ESTELAS MCARTNEY DA VIDA), NAO VOU CITAR AS EQUIVALENTES A ELA NO BRASIL PORQUE CERTAMENTE SEREI PROCESSADA, MAS TODOS SABEM QUEM É O REI DO GREEN WASHING BRASILEIRO.

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