Oprimeiro grupo de fiandeiros de algodão orgânico com quem Flavia Aranha trabalhou, em 2009, está até hoje na rede produtiva da sua marca homónima. A estilista vai na contramão de boa parte do mercado de moda global, que ainda utiliza o algodão convencional. Trata-se da fibra natural mais consumida no mundo, e o Brasil está entre os cinco maiores produtores e exportadores – o que requer um uso exorbitante de agrotóxicos, muitos deles prejudiciais à saúde da terra e das pessoas.
Para entendermos o cenário atual da cotonicultura, precisamos voltar à década de 1980, nos Estados Unidos. O país, hoje líder em plantações com transgênicos, encabeçou a Revolução Verde, um movimento que impulsionou o pacote tecnológico da agricultura. Ou seja, mais modernização e uso de agroquímicos (fertilizantes, agrotóxicos e sementes com genes modificados) para otimizar e expandir a produção de alimentos e, diziam, acabar com a fome. Pois é.
A ideia chegou ao Brasil por volta da mesma década e caiu como uma luva para o cultivo local. Antes de continuarmos, vale uma observação: “Embora o manejo seja milenar, e as plantações de algodão, que datam do século 16, sempre tenham sido feitas em esquema de monocultura de exportação, os agrotóxicos só entram na jogada há pouco tempo”, explica Yamê Reis, fundadora do Rio Ethical Fashion e autora do livro O agronegócio do algodão: meio ambiente e sustentabilidade.
Foto: FarFarm
O momento de aderência à Revolução Verde coincidiu com o ataque dos bicudos, peste comum na cotonicultura. O besouro devastou inúmeras plantações em todo o país, que à época concentravam-se nos estados do norte e nordeste, e causou grande incerteza sobre o futuro da produção nacional. “Foi então que a indústria da soja, que já era forte e estava em ascensão, viu a oportunidade de plantar algodão em outros moldes, ou seja, usando a tecnologia verde, com o uso intensivo de agrotóxicos para evitar as pragas, fertilizantes, e novo maquinário”, afirma Yamê.
O resultado foi a migração de produtores de algodão para o Cerrado, onde hoje está a maior parte da produção da fibra, e o surgimento do sistema rotativo entre soja, milho e algodão. Para Yamê, essa sucessão de episódios consolidou o uso das substâncias na cotonicultura.
A cotonicultura é responsável por aproximadamente 10% de todo o consumo de agrotóxicos no Brasil, segundo o relatório Fios da Moda. Ela exige cerca de 28 litros de agroquímicos por hectare, substâncias das quais o país é um dos líderes de uso, mesmo com muitas delas proibidas em outras nações, à exemplo do glifosato, associado a mais de 25 doenças.
Além disso, o uso dos químicos está associado às sementes com genes modificados. Dados da Embrapa mostram que, em território nacional, 92% da soja, 90% do milho e 47% do algodão são transgênicos. E tudo isso custa caro: os gastos com pesticidas agrícolas no Brasil podem ultrapassar 2,7 bilhões de dólares por ano.
“A agroecologia é a luta de classes e é questão de justiça social e igualdade de gênero. Não é só não usar veneno.” – Suzana Aguiar, da Rede Borborema
A agricultura agroecologia faz parte da família da secretária da Rede Borborema, Suzana Aguiar que há pelo menos cinco gerações trabalha com o campesinato. Para ela, uma grande preocupação é como os agrotóxicos podem contaminar o solo, a água e prejudicar a biodiversidade local. “Você vicia aquele cultivo para só conseguir crescer com cada vez mais agrotóxicos, o que prejudica a autonomia do agricultor em poder usar sua própria semente, tornando-o dependente de culturas agrícolas”, argumenta.
Em outras palavras, a terra acaba perdendo biodiversidade e resistência. “Quando você limita um sistema a uma só cultura, o solo empobrece ao longo das décadas, pois existem dinâmicas químicas e biológicas que são danosas no processo”, fala Mariana Gatti, sócia e diretora de projetos de moda e têxteis da FarFarm, negócio que atua com o desenvolvimento de cadeias de valor sustentáveis.
Comunidades submetidas ao contato com os agrotóxicos também sofrem impactos nocivos na saúde. A pesquisa Agronegócio e agrotóxicos: Impactos à saúde dos trabalhadores agrícolas no Nordeste brasileiro mostra como os insumos químicos podem prejudicar a saúde dos trabalhadores e pessoas que residem em áreas próximas às plantações ou são atingidas por resíduos de pulverização aérea. A principal consequência são lesões causadas por envenenamento, dada a alta toxicidade dos aditivos.
Há 20 anos, ninguém do povoado de Suzana, na Paraíba, imaginava ser possível plantar algodão sem veneno, mas José de Cinésio foi um dos camponeses que transformou essa realidade. Ele passou a observar como seria possível produzir a fibra sem o uso de aditivos químicos e testou formas naturais de lidar com os dilemas da agricultura, como o próprio bicudo. “Todo mundo precisou ver para crer. Muita gente ainda plantava o algodão com veneno, mas mesmo assim não conseguia combater as pragas. E aí o Zé acabou fazendo mais algodão do que os outros produtores”, relembra Suzana.
Esse princípio faz parte da agroecologia, uma prática milenar e ancestral. Trata-se do manejo ecológico dos recursos e da natureza, mas não só. “A agroecologia é a luta de classes e é questão de justiça social e igualdade de gênero. Não é só não usar veneno”, continua ela, que comercializa a fibra de algodão sem veneno para Flavia Aranha e para a marca de calçados Vert.
Foto: Suzana Aguiar
O fortalecimento das comunidades é outra característica da prática agroflorestal, método no qual a FarFarm é especialista. Trata-se de um sistema semelhante à agroecologia, mas que produz as culturas agrícolas em consórcio com as árvores e florestas, buscando a regeneração de territórios.
Mariana destaca que, “por conta do desenvolvimento econômico e social, você previne o desmatamento, já que o agricultor não precisa mais arrendar a terra, gerando um fortalecimento político. É um sistema interconectado, não só de menor impacto”. A FarFarm atua também com a família de Suzana. “Quando a gente planta algodão ecológico ou agroflorestal, reforçamos que o agricultor plante uma variedade de cultivos alimentícios, que garanta a alimentação da família e permita a venda para ter resiliência econômica”, continua a diretora.
“O algodão agroecológico é a solução da moda? Não. A solução da moda está na diversidade. Olhar para inovação, mas investir na ancestralidade.” – Flavia Aranha, estilista
Impulsionar a autonomia e soberania das famílias camponesas é um dos fatores que faz Flavia investir no algodão agroecológico. Por isso, ela defende a certificação participativa. “O preço que pago pela safra foi construído coletivamente em assembleia”, conta a estilista. Trabalhar com essa rede de produção é tudo o que ela sempre buscou. “É a restauração do solo, é fomentar a reforma agrária e a soberania alimentar. Vejo o quanto a agroecologia transforma uma sociedade. Brinco que a Rede Borborema é o Brasil que eu quero morar.”
O valor do algodão sem veneno vai além da prática comercial e estabelece novas relações com a moda. Suzana vê como importante a crescente busca pela fibra mais sustentável, mas sinaliza que “muitas pessoas só vão atrás pelo selo e esquecem o conceito, o que vem por trás. Cada quilograma de pluma (o algodão antes de ser fiado) tem um histórico de luta, perseverança. Comercializamos para duas as empresas, e nos identificamos com a história delas. Sabemos para quem estamos vendendo e como é bonita a continuidade do trabalho”.
Hoje, só 1% do algodão produzido no mundo é orgânico, mas sua busca tem crescido. A Embrapa é uma das entidades públicas que investe nesse tipo de pesquisa e desenvolvimento. Como exemplo, podemos citar o algodão colorido da Paraíba, que teve o apoio da organização. Em termos de certificação algodoeira, o Brasil é campeão. O país, quando comparado com outros que têm o BCI, é o que mais certifica a fibra. O BCI é a sigla para Better Cotton Initiative, um tipo de certificado acerca da sustentabilidade do algodão, e presente em vários países pelo globo.
Porém, Yame destaca que o selo não controla a quantidade de uso dos agrotóxicos. “O BCI se diz isento em relação ao uso do agrotóxico. Ela controla se você entregou o EPI e se o veneno está identificado e armazenado num lugar específico”, explica.
Porém, Yame destaca que o selo não controla a quantidade de uso dos agrotóxicos. “O BCI se diz isento em relação ao uso do agrotóxico. Ela controla se você entregou o EPI e se o veneno está identificado e armazenado num lugar específico”, explica.
Porém, Yame destaca que o selo não controla a quantidade de uso dos agrotóxicos. “O BCI se diz isento em relação ao uso do agrotóxico. Ela controla se você entregou o EPI e se o veneno está identificado e armazenado num lugar específico”, explica.
Mas reduzir ou eliminar o uso de agrotóxicos na cotonicultura é uma tarefa que demanda muitos atores e recursos, inclusive da sociedade civil. “Se a sociedade não tiver conhecimento de outras formas de produzir, ela vai sempre crer que precisamos de um pacote de veneno”, diz Suzana. “A gente sempre vai ter diversidade na agricultura, mas podemos escolher responder com práticas agroecológicas. Contudo, talvez não tenham pessoas que saibam produzir assim.”
Uma questão recorrente é a possibilidade de escalonar a produção de algodão sem agrotóxicos. Para Yamê, a resposta está em uma outra pergunta: por que a moda produz mais do que precisa? “Os excedentes são muito grandes. Começo questionando esse volume. Quem é o beneficiado? Quem ganha com esse volume do algodão? Se a moda quiser ter um papel social, precisa questionar essas coisas”.
Para Flavia, é importante escalonar, mas não nos moldes da monocultura. Ela defende a pluricultura e, por isso, sua etiqueta investe cada vez mais em pesquisas de novos materiais têxteis. “O algodão agroecológico é a solução da moda? Não. A solução da moda está na diversidade. Olhar para inovação, mas investir na ancestralidade”, diz ela, que se prepara para lançar uma nova fibra neste semestre de 2023, produzida a partir de plantas.
“Ainda assim, por mais linda que seja essa história, nenhum agricultor dessa (minha) cadeia pode comprar uma roupa da Flavia Aranha. Um sistema no qual nenhum produtor pode comprar o que produz não é sustentável para mim”, fala a estilista. “Parto da ideia de que nada é sustentável enquanto a desigualdade continuar como está. Se desde que comecei melhorou? Com certeza. Mas quando você vai a fundo, quantas podem dizer que não usam veneno na sua cadeia produtiva?”
Além disso, é preciso transformar as práticas de compra do setor. Na Rede Borborema, por exemplo, Suzana e Flavia destacam o fato de que a precificação é feita em conjunto, assim como o volume de pluma a ser vendido. Esse jeito de fazer negócio, no entanto, ainda é incomum na cadeia da moda. “As marcas não querem ter que se submeter a essa incerteza, a uma negociação que não espreme o fornecedor, que briga por centavos. Comércio justo é uma outra forma de fazer negócio. Acho que essa é uma grande resistência das marcas”, acredita Yamê.
É por isso que Mariana vê com cuidado a crescente da sustentabilidade e da agroecologia na moda. “Virou a palavra da vez e está sendo apropriada de forma irresponsável. A intenção das marcas está lá, mas poucas fazem efetivamente projetos considerados regenerativos. Por falta de parâmetro e certificação, qualquer um pode falar que é regenerativo, mas temos que analisar bem quais os conjuntos de práticas e reais impactos”, pontua a diretora. Ela ainda acrescenta que existe um descompasso grande entre as etiquetas e as comunidades produtoras.
Responsabilidade e comprometimento são as palavras que faltam no vocabulário da moda, pontua Flavia, que se diz crítica ao setor. “A agroecologia é política e tem a ver com repensar o sistema. Então, enquanto as grandes marcas não tiverem um compromisso de transformar a base do seu processo produtivo, vamos sempre estar inventando novas palavras”, finaliza a estilista.
POR BÁRBARA POERNER
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