Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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O verão 2016 de Rick Owens, apresentado na última semana de moda em Paris, é um elogio à resiliência feminina. Mais que enaltecer a nossa força (que havemos de ter, naturalmente), a coleção engrandece a nossa capacidade de resistir fortemente. Oras, é um mundo de homens brancos – há séculos! E nós, mulheres, na condição social de mulheres (isso é muito importante frisar: o nosso locus social de mulher), somos o quê senão objetos à deriva dos caprichos masculinos de posse?

A condição da mulher na sociedade é baixa, está à mercê das determinações masculinas – e não estamos falando de uma relação de afeto entre dois gêneros opostos, mas sim de uma circunstância social e histórica: a desigualdade entre gêneros é latente, brutal, e paradoxalmente tão natural/intrínseca e escancarada/escandalosa que ela se torna cotidiana e rotineira. A gente quase não percebe. Quase.

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Rick Owens verão 2016: curvas femininas descontruídas

Creio que essa coleção merece uma crônica e em tom pessoal, e não mais um detalhamento de shapes, cores, formas, texturas, materiais, conceitos e contexto. Vamos lá, vamos ao entendimento da mulher na paradoxal sociedade atual e tão retrógrada:

“Sim, Lu, não existe espaço na sociedade para a mulher independente, adulta, que vive sozinha, sem filhos, que tem talento, que tem dinheiro. Sim, não existe mesmo veículos de comunicação para ela e é natural que você se sinta isolada, sem pares, a condição social é para que mulheres como você não se unam, não juntem forças.”

Foi com essas palavras que um ex-namorado, o primeiro, e bissexual assumido (diga-se de passagem sim, pois é importante tratar das escolhas sexuais com naturalidade, aceitação, valorização e tornar visível a condição de ser minoria), e que durante anos trabalhou pelos direitos das mulheres na ONU, me tranquilizou para aceitar o status quo. Essa é a realidade: as mulheres não devem ser fortes, elas representam o sexo frágil, a condição de passivas e dóceis. “Docilizadas pela cultura inerentemente machista”, eu diria. Não há o que fazer: você não encontra o seu lugar, o seu lugar é você mesma.

Coincidentemente, no dia desta coleção impactante de Rick Owens, em que os trajes permitem que umas mulheres carreguem outras, eu estava em uma feira de startups, melhor dizer um “clube do bolinha” em que 90% do público era homens brancos de classe média, jovens empresários promissores (ou não! ou mais um sonho coletivo pelo Eldorado do dinheiro via tecnologia e comunicação), e o mais legal deles me sai com essa espontânea e provocativa pergunta:

- Mas você veio aqui sozinha?

Ao que respondi:

- É claro, eu não preciso pegar na mão de ninguém pra ir aonde quero ir. Eu sou o caminho! (Risos).

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Com força nas pernas, com um caminhar pausado e pensado, e com estrutura nos trajes, uma mulher consegue carregar a outra. Rick Owens verão 2016

Isso pode soar meio ideologia cristã, no estilo “eu sou o caminho, a verdade e a vida”, mas está bem longe de sê-lo (até porque o cristianismo é deveras machista). Esse tipo de resposta é o que resta a esse tipo de mulher que não sabe abaixar a cabeça: resta inventar sua ideologia, tirar de si mesma a própria força, ter a si mesma como a própria referência. E talvez a gente seja forte não por uma escolha pessoal, não por uma vontade de vencer as limitações sociais e pessoais, mas por ser essa a única (a única!) possibilidade de se manter sã diante de um velado e insano mundo machista.

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Rick Owens verão 2016. Não nos interessa a bunda ou a vagina, mas sim olhar adiante, olhar para frente, para o futuro, e caminhar seguramente tendo todas essas coisas bem embaixo do nosso nariz.

Resiliência é encontrar a vontade de vencer em um ambiente de forte pressão pra te derrubar. E sendo mulher, ao menos no meu caso, a vontade de vencer à violência doméstica, a vontade de vencer ao abuso sexual em casa, a vontade de vencer ao assédio sexual na universidade (e esse de um sujeito muito famoso, cientista e empresário bonito e bem-sucedido, capa da revista Exame, que ficou na minha cola por oito meses, mesmo eu tendo literalmente fugido da sala dele, após ele me pedir três abraços, um mais forte que o outro – eu senti pânico), a vontade de vencer ao assédio moral (o mais light, mas como dói ouvir “essa é a primeira de muitas vezes que você não vai conseguir”), bem no meu caso a vontade de vencer teve o amparo dos livros, do conhecimento. Eu li e leio pra valer: são quase duas centenas de livros ao ano (já há quase 10 anos) para confortar. E com a desculpa de não haver um termo intelectual mais apropriado para a dizer a real, devo afirmar: é uma merda ser mulher.

Além do desenvolvimento mental pela leitura (e não o comodismo de ser conivente com um cotidiano ignorante, de um machismo alienante), a outra muleta para caminhar no mundo dos homens brancos é um aprendizado budista (fruto de uns tempos meditando com monges no alto de uma montanha na Tailândia): ter compaixão e saber aceitar as perdas. Tem que ter compaixão destes homens todos e aceitar que, como mulher, você já nasce perdendo: perdendo um tratamento de respeito, com formalidade e seriedade, perdendo um salário equitativo, perdendo condições profissionais equitativas, perdendo o respeito pelo seu tempo, perdendo o respeito pelo seu corpo, perdendo tanta coisa. Tenho a sorte e o alento de pensar: embora tenha sofrido diversos tipos de violência doméstica e sexual em casa, ao menos nunca fui estuprada. É irônico, é velado. A maioria das mulheres está nessa mesma condição que a minha – e não podem dizer nada, não podem denunciar seus familiares, seus namorados, maridos, seus chefes – toda a corja de algozes que por um azar do destino tem vínculo de sangue, afetivo ou profissional. Novamente: essa é a condição velada da maioria das mulheres. Mas é tabu, é tudo tabu, tudo escondido, tudo pra te fazer sentir vergonha pela coragem do outro em tocar em assuntos complicados, como as nuances da desigualdade entre gêneros, a condição inferior (de objeto gracinha!) da mulher.

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O feminino é forte. Rick Owens verão 2016.

E aí, nesse contexto, entra a Moda, uma forma de comunicar que essa situação toda pode ser melhor, mais digna, ética. Ou não: essa situação pode ser apenas visível – o que já é muita coisa, dado a nossa força de não querer ver que a mulher é abusada constantemente e das formas mais sutis.

A coleção de Rick Owens fala de uma mulher forte sem ser o clichê da mulher sexy, poderosa e com grana (mas hey!, é nosso direito de ser sim, apesar de toda a violência, e toda a interpretação deturpada dos códigos eróticos, podemos ser sexy para nós mesmas se assim quisermos, podemos demonstrar o nosso poder e podemos ostentar o nosso dinheiro, se estes forem os nossos valores – isto é, nós podemos parar com essa humildade e discrição sobre nossas conquistas para não afugentar homens que estão categoricamente em uma posição socioeconômica inferior a nossa; esse comportamento típico das mulheres fortes não deve ser conivente e simpático com o machismo latente).

Bem, Rick fala mesmo é da força não de uma mulher e no seu sentido literal, mas sim da força do feminino e de uma maneira poética. Há muita diferença nisso: a força da mulher e a força da concepção da ideia do feminino. Ele poderia ter usado códigos masculinos para embutir o significado de força na ideia de feminino, mas não, ele se valeu de silhuetas femininas mais estruturadas, recortadas, desconstruídas, uma cartela de cores sóbrias. Ele poderia ter ido pelo caminho seguro dos códigos-clichês que denotam “mulher forte”, como elementos pesados, roqueiros, atributos de sexualidade madura e latente (um cruzamento da mulher Versace de sempre, com a mulher Yves Saint Laurent de estações recentes, ou a feminista dos anos 1960 com a yuppie dos anos 1980). Mas não: ele foi pelo caminho da suavidade e do intelecto, da simplicidade e da estrutura, da leveza da forma e do poder da ideia.

O principal vetor para comunicar essa ideia – de força do feminino – é o próprio corpo da mulher: e é portanto que vemos na passarela não somente roupas que libertam o corpo, distanciando-se da pele, dando amplidão aos movimentos, mas vemos principalmente o que nos choca: um corpo feminino carregando outro corpo feminino. Uma mulher ajuda a outra com a força de seu corpo, uma mulher fortalece a ideia de feminino com a liberdade de seu corpo. Releia esse parágrafo, isso é muito importante. É aqui que a Moda grita alto pelo valor do feminino, por valorizar a mulher e seu ethos indissociável, o feminino.

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Rick Owens verão 2016. Mulheres fortes, feminino forte.

Algumas mulheres são carregadas de ponta-cabeça, outras são carregadas com as nádegas coladas no queixo da outra, outras com as pernas nos ombros. Este ato de carregar outra no próprio corpo faz alusão à ideia de gravidez, daí também a justificativa das roupas serem largas. As roupas permitem dois seres em um mesmo espaço.

E para encerrar, pergunto: somos nós que carregamos estes homens brancos no nosso ventre? Somos nós que os educamos, no inerente machismo? Se eles nascem da gente, como é que nós, mulheres, temos permitido que eles questionem o nosso ir e vir, que eles machuquem nossos corpos, que eles não saibam lidar com a nossa independência deles, que eles se sintam tão inferiores a nós que tenham que criar mecanismos sutis de controle sobre nosso tempo/corpo/profissão/liberdade? Se eles vieram de nós, como nós permitimos que eles tomem posse de pequenos detalhes da nossa vida, impondo sua força no nosso tempo/corpo/etc.?

Sem querer ser piegas, e longe de delimitar uma conclusão (afinal, a questão da desvalorização da mulher ainda vai perdurar por mais de século), mas certamente um dos fatores que nos fazem fortes é a nossa perseverança em amar tais homens. E a cada defeito machista que vemos, que é tão inerente neles, nós respiramos fundo, temos consciência, e fazemos vista grossa, sem falar nada a respeito, sem bater de frente. A força do feminino é silenciosa e compassiva, perante a sociedade (embora sim, essa força seja objeto de diálogo entre nós mulheres).

Então, de repente, um estilista sensível torna tal força visível por meio da Moda. E, de repente, resolvemos falar sobre os tabus que vemos, sobre a nossa resiliência em meio a uma sociedade machista. Parafraseando Sartre: o que fazer com isso que fizeram pra gente? Bem, a gente segue amando a humanidade (homens e mulheres, igualmente) e compreendendo todas as fraquezas da nossa experiência humana. É um alívio quando essa compreensão vem por meio da beleza das formas, das roupas, dos gestos, da performance do desfile (e não precisa vir necessariamente da leitura de 200 livros/ano, de terapia, ou de meditação intensiva no outro lado do mundo, e todos os pequenos esforços de conseguir se relacionar minimamente com um homem). É belo ver uma mulher carregando a outra, isso enche o nosso coração de uma experiência estética muito poderosa. Sobretudo, é um privilégio se reconhecer entre nossos pares, notar que é um privilégio ser e estar entre mulheres resilientes – creio que todas sejam assim, mesmo que não tenham consciência da sua força, do seu corpo, do seu ethos feminino. Nas palavras do estilista, uma possível resposta é:

“Manter a graça sob pressão”.

Confira os  looks do verão 2016 de Rick Owens:

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