Depois de capturar a cidade iraquiana de Falluja, em Janeiro, o Estado Islâmico convenceu um alfaiate que fazia capas para automóveis a vender coletes para bombistas-suicidas. Foi uma das muitas mudanças na cidade iraquiana que se adapta à vida sob o jugo dos militantes sunitas radicais.
O Estado Islâmico ganhou fama por decapitar e executar quem se colocou no seu caminho quando tomou cidades pequenas e grandes no Iraque e na Síria e formou seu autoproclamado califado, recorrendo muitas vezes a suicidas para conseguir os seus avanços.
Os militantes emitiram directrizes para a vida do dia-a-dia, de acordo com sua ideologia, exigindo que todas as mulheres usem véus que tapem totalmente o rosto e proibindo cigarros e cortes de cabelo de estilo ocidental, populares em Falluja até então.
Muitos moradores sentem-se alienados com as alterações, mas para poder manter o seu "império" e a sua "guerra santa" contra governos e exércitos, o Estado Islâmico também faz acordos com pessoas como o alfaiate, de acordo com pessoas que visitaram recentemente Falluja e que conversaram com a Reuters por telefone, a partir de Bagdad.
O Estado Islâmico fornece um gerador e combustível, o que lhe permite aumentar o lucro com o fabrico em escala de coletes, cintos e calças, no interior de um edifício crivado de balas disparadas por militares dos Estados Unidos contra a Al-Qaeda quase uma década atrás.
"Passei por tempos difíceis. Tenho filhos para sustentar. Escolhi esta nova profissão conscientemente e assumo a responsabilidade pelo desfecho", diz o alfaiate.
Como outras pessoas citadas nesta reportagem, o nome deste alfaiate não é divulgado por razões de segurança.
Cidade problemática
Falluja foi a primeira cidade no Iraque a cair diante do Estado Islâmico. É um grupo dissidente da Al-Qaeda, composto por árabes e combatentes estrangeiros, que já ocupa grande parte do Iraque e da Síria e ameaça tomar a vizinha capital, Bagdad.
Durante a ocupação norte-americana, na esteira da deposição de Saddam Hussein, em 2003, a cidade emergiu como principal área da insurgência sunita na província de Anbar, no oeste iraquiano, e rapidamente se tornou um reduto da Al-Qaeda.
Os fuzileiros navais dos EUA disputaram-na com a Al-Qaeda em 2004 em duas das maiores batalhas da guerra norte-americana no país.
Uma década mais tarde, o Estado Islâmico está profundamente enraizado em Falluja, o que a torna um dos maiores exemplos do que a vida se poderá tornar nos vastos trechos de território iraquiano e sírio sob controlo do grupo e da sua ideologia ultraconservadora.
Regras e mais regras
Todas as mulheres que chegam à cidade recebem gratuitamente um niqab, um véu que as cobre da cabeça aos pés. São forçadas a vesti-lo numa cabine com vidros escurecidos para não serem vistas.
O Estado Islâmico tem directrizes do que é proibido escritas em panfletos colados em prédios e mesquitas pela cidade: nada de cigarros ou narguilés (cachimbos de água), já que podem desviar a atenção das orações; nada de cortes de cabelo de estilo ocidental; nada de roupa com dizeres em inglês ou imagens de mulheres.
As mulheres não têm permissão de sair de casa sem a companhia de um parente masculino, uma regra que aprofundou as frustrações.
Uma testemunha recorda o caso de uma mulher que procurou o tribunal islâmico para argumentar que deveria poder andar sozinha por ser viúva e não querer incomodar os seus irmãos. Do lado de fora do edifício, gritou: "Vocês dizem que Deus não aceita que uma mulher saia de casa sozinha. Então como é que Deus pode aceitar que vocês matem pessoas?".
Um militante respondeu que a decapitariam se ela fosse um homem, mas o tribunal decidiu que ela devia ser expulsa de Falluja, de onde partiu com seus pertences e o grupo radical ficou com a sua casa.
As meninas menores de 12 anos, o limite para obrigar o uso do niqab, devem usar um lenço na cabeça.
"Por que razão eles nos forçam a fazer algo contra a nossa vontade? Nascemos livres e é injusto ser tratada assim", reclama uma mulher cuja filha de seis anos foi forçada a usar um lenço na cabeça.
Até as manequins nas montras devem usar o niqab.
Sacos de farinha e estradas limpas
Nos cafés onde antigamente se fumava narguilé e se discutia os eventos do dia, já só se pode beber chá e ver programação televisiva religiosa, explica o dono de um estabelecimento.
Um homem num mercado explica que foi apanhado a fumar: "Homens armados do Estado Islâmico prenderam-me e levaram-me a um clérigo que me avisou para não repetir o acto, se não seria chicoteado". "Cheguei ao ponto em que me convenci que temos de pegar em armas para combater o Estado Islâmico em Falluja ou acabamos por ser seus escravos."
Mas, ao mesmo tempo, o Estado Islâmico tenta conquistar as pessoas, oferecendo serviços básicos. Militantes em carrinhas regam árvores ao longo das ruas e há pessoas empregadas para retirar o lixo das ruas.
Até a farinha subsidiada vendida nas lojas estatais vem em sacos com o logótipo do Estado Islâmico.
Os militantes vêem Falluja como um trunfo importante nos seus esforços para redesenhar o mapa do Médio Oriente. Desde o começo dos bombardeamentos aéreos por parte de uma coligação internacional, liderada pelos Estados Unidos, os militantes deixaram de andar em jipes e carros facilmente identificáveis, optando por carros civis e motorizadas. Esconderam os seus outros veículos para evitar a detecção.
Actualmente, apesar da pressão dos raides americanos, o Estado Islâmico tem feito avanços na região e continua firmemente em controlo de Falluja. Boas notícias para o alfaiate, que teve de comprar uma nova máquina de costura e amontoa os coletes e calças suicidas (produzidas em preto e em bege, as cores preferidas pelos jihadistas).
Ocasionalmente soldados do Estado Islâmico aparecem e carregam o material para uma carrinha, levando-o para novas missões. "Sei que um dia posso vir a ser preso pelos serviços de segurança do Iraque. Mas eles devem ter em conta que faço isto para o bem da minha família", afirma o alfaiate.
FONTE:
http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=29&did=167589