Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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Surrealismo e moda: sonho, fantástico e irrealidade entre arte-moda

Surrealismo e moda: a realidade do onírico, o sonho, o fantástico e a irrealidade no diálogo arte-moda.

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Com suas roupas espetaculares, seus desfiles performáticos, seus sapatos inusitados, bordados e acessórios diferenciados, Roseberry mantém a identidade e a genuinidade peculiares aos valores de Elsa Schiaparelli nos dias atuais - Foto: Divulgação.

Surrealismo e moda: a realidade do onírico, o sonho, o fantástico e a irrealidade no diálogo arte-moda. Saiba mais!

Na historiografia da arte, o intervalo de tempo da então denominada “arte moderna” começou com o impressionismo, na década de 1870, ainda no século 19, e foi até a última das vanguardas do então período dos “ismos”, que foi o surrealismo, nas décadas de 1920 e 1930, antecedendo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Para discorrer sobre as propostas surrealistas na moda, faz-se necessário, primeiramente, transitar pelo universo das artes visuais e até mesmo entender o zeitgeist de então, assim como conhecer a origem da palavra “surrealismo”. 

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Schiaparelli - Foto: Divulgação.

Em 1917, o escritor, poeta e crítico de arte italiano radicado em Paris Guillaume Apollinaire (1880-1918) forjou e usou a palavra “surrealismo” pela primeira vez para descrever uma de suas peças teatrais, em uma espécie de identificação de um “super-realismo”, de uma “supra-realidade”. Já com o “Manifesto do Surrealismo”, de 1924, o escritor, poeta, ensaísta e crítico francês André Breton (1896-1966) tornou-se o principal teórico do movimento, e a palavra “surrealismo”, via literatura em um primeiro momento e depois nas então ditas artes plásticas, ganhou o sentido de “automatismo psíquico puro”. Ainda em 1924, o ator e escritor francês Antonin Artaud (1896-1948) disse que o surrealismo “é o grito da mente que se volta para si mesma”. Nesse sentido, percebemos também um livre uso dos fundamentos da psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), já propostos desde o início do século 20 e que vão influenciar consideravelmente a formatação desse fundamento estético-filosófico que foi o surrealismo. 

Porém, faz-se também necessário conhecer dois outros movimentos artísticos das vanguardas europeias dos anos 1910 que foram antecedentes diretos e ajudaram a fundamentar as premissas do surrealismo, sendo os alicerces na formatação dessa tal identidade “acima do real”, “além do real”, do “superreal”, do “automatismo psíquico puro” que veio a ser o surrealismo: os movimentos do dadaísmo e da arte metafísica.

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A italiana Elsa Schiaparelli deu uma grande e importante contribuição à moda, colocando-a no mesmo patamar das artes plásticas, em especial pelo viés do surrealismo. Em 2019, Daniel Roseberry trouxe novo sopro de modernidade à casa, em uma nova linguagem atualizada aos novos ares do tempo - Foto: Divulgação.

O dadaísmo, movimento inicialmente literário, fundamentado em Zurique (Suíça), trazia, então, uma significativa revolta e um inconformismo em relação às artes, propondo uma espécie de antiarte, especialmente devido à desilusão causada pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ironia e cinismo associados ao ilógico, ao absurdo e ao niilismo sintetizavam o conceito do movimento, chocando, provocando e rompendo com os valores tradicionais, já que o irracionalismo da guerra desmoronava com os clássicos padrões sociais estabelecidos daquele momento. Migrando para as artes plásticas, foi um conceito e uma prática com as propostas de uma antiarte que descontextualizava as coisas para contextualizá-las de outra forma. Até mesmo com o nome “dadá”, escolhido aleatoriamente pelo poeta romeno Tristan Tzara (1896-1963), nascido Samuel Rosenstock, que o fez ao deixar cair aleatoriamente o seu dedo em um verbete de um dicionário Larousse, em uma página aleatoriamente também aberta. Caiu na palavra “dada”, que por sua vez tem vários significados, desde “cavalinho de brinquedo” ou “cavalinho de pau” em língua francesa até “rabo da vaca sagrada” em línguas africanas, ou até mesmo sendo a maneira carinhosa que crianças, aprendendo a falar, chamam seus pais ou avós. Sendo assim, “dada” podia ser quaisquer e muitas coisas, ou seja, tudo ou nada, pois, com a guerra, tudo perdia sentido. O tal movimento teve o pintor, escultor e poeta francês Marcel Duchamp (1887-1968) como a figura mais representativa da total descontextualização do objeto artístico com o seu fundamento do “ready made”, isto é, transformando em objeto de arte um objeto “já feito”, que já estivesse pronto de maneira industrializada, rompendo com a tradicional artesania da elaboração artística.

Já a “pintura metafísica” ou “arte metafísica” foi um conceito e estilo desenvolvido nos anos 1910 pelo artista grego (de pais italianos) Giorgio de Chirico (1888-1978), baseando-se em “uma realidade subjacente às aparências exteriores”, com imagens realisticamente bem representadas em cenários irreais de uma imaginação criativa associadas a sentimentos de mistério, solidão, ilógica, alucinação e irrealidade. O artista italiano Carlo Carrà (1881-1966) aderiu à proposta. Com esses dois fundamentos artísticos foi alicerçado o terreno para a formatação do surrealismo propriamente dito, tendo, então, o dadaísmo e a arte metafísica como seus genitores.

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Foto: Divulgação.

Iniciado na literatura em 1924, migrou para as artes plásticas naquele mesmo decênio, tendo tido seu apogeu estético-conceitual entre 1925 e 1935, chegando, inclusive, a atingir o cinema, especialmente com os filmes do cineasta espanhol Luis Buñuel (1890-1983).

Dos nomes mais representativos deste movimento artístico, destacaram-se o belga René Magritte (1898-1967); o francês Jean Cocteau (1889-1963); o espanhol Joan Miró (1893-1983); o alemão Max Ernest (1891-1976); o francês André Masson (1896-1987); o russo Marc Chagall (1887- 1985); e, especialmente, talvez o mais emblemático e conhecido de todos os artistas, o espanhol Salvador Dalí (1904-1989).

Baseando-se nas questões oníricas (relativas aos sonhos), o surrealismo destacou-se em aspectos bizarros, inusitados, irracionais, irreais e incongruentes ao pensamento lógico; muito dialogando com as premissas do dadaísmo, com a diferença que este era niilista e o surrealismo era de caráter positivo ao espírito dos tempos e à ciência dos estudos psicológicos. Foi uma espécie de contradição do sonho com a realidade. 

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Foto: Divulgação.

No que tange às representações visuais, reconhecemos as imagens como reais de maneira isolada ali representadas sendo, inclusive, um resgate artístico ao figurativismo reconhecível (em oposição ao anterior movimento do abstracionismo); todavia, no conjunto da obra, não procedem em realidades lógicas, reconhecíveis e/ou entendíveis. Procedem na realidade onírica; exatamente como um sonho no qual os atributos dos deuses gregos Hipnos (deus do sono) e seu filho Morfeu (deus dos sonhos) se fazem presentes; não procedendo assim com a realidade da vigília, do estado de consciência, do estar acordado. Daí ser considerado o movimento artístico mais subjetivo de todos, tendo a realidade onírica do artista, do seu inconsciente, se manifestando livremente.

Na representação artística, reconhecemos pessoas, lugares e objetos dentro daquilo que a mente libera, mas não como de fato são na realidade, existindo somente na composição apresentada pela obra. Portanto, entra em diálogo com as questões incônscias, com os fatos que estão aprisionados e privados em cada consciência; numa espécie de entorpecimento da realidade; daquilo que é inconsciente, ou seja, daquilo que existe na mente sem o alcance do estado da consciência, que com técnicas então usadas eram liberadas livremente pela mente dos artistas. 

Exploração do imaginário; dos impulsos inconscientes e ocultos; das combinações inusitadas; dos arranjos visuais inesperados; da retratação dos objetos incompatíveis; das fantasias pessoais (neste caso, sejam conscientes ou inconscientes); do combate à lógica e à razão, abolindo as fronteiras entre o real e o imaginário, são alguns dos fundamentos da lógica do ilógico; da realidade onírica; do surrealismo como vanguarda artística que tiveram seus rebatimentos no mundo da moda. 

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Schiaparelli - Foto: Divulgação.

Na interface arte-moda, vou aqui me limitar a escrever sobre dois grandes nomes e seus respectivos amálgamas com a arte surrealista: trata-se da italiana Elsa Schiaparelli (1890- 1973) e do seu atual sucessor, o americano Daniel Roseberry.

De família aristocrata, Elsa Schiaparelli nasceu em Roma e foi estudante de filosofia. Em 1913, viajou para Paris e Londres e conheceu o conde William de Wendt de Kerlor, com quem se casou em 1914. Mudaram-se para Nice (França) e, posteriormente, em 1919, para Nova York. Separaram-se e, em 1922, Elsa retornou a Paris e enveredou-se pelo mundo da moda, abrindo sua casa de costura na capital francesa em 1927. Sua primeira peça foi um suéter de tricô contendo uma ilusão visual de um laço, também em tricô, à altura do decote. Tratava-se do uso do trompe-l’oeil, ou seja, uma espécie de “engana olho”, uma alegoria visual que engana rapidamente o observador pela falibilidade da visão. Nas artes, essa técnica foi criada na Roma Antiga, sendo uma ilusão de óptica; depois foi muito usada nas pinturas do período barroco e, posteriormente, praticada no surrealismo, especialmente por René Magritte. 

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Foto: Divulgação.

Sempre bem-humorada e espirituosa, Elsa ficou amiga de vários artistas da Paris dos “anos loucos”, em especial dos dadaístas e surrealistas, como Tristan Tzara, Francis Picabia (1879-1953), Christian Bérard (1902-1949), Jean Cocteau e Salvador Dalí, sendo esses dois últimos autores de desenhos de estampas para seus tecidos. Coube a Elsa, devido à sua amizade com esses artistas, introduzir na moda as premissas da arte surrealista. Assim o foi, e 1937 e 1938 parecem ter sido os anos de seu maior reconhecimento. Foi ela que propôs a ideia de lançar coleções de moda com temas específicos a cada temporada (o primeiro deles foi Le Cirque – O Circo); também lançou seu perfume nomeado de Shocking; assim como os seus famosos chapéus-sapatos desenvolvidos com Dalí. Para o seu perfume, cujo frasco era em forma de um torso nu feminino, referente ao corpo da atriz americana Mae West (1893-1980), em quem Dalí já tinha se inspirado para uma de suas obras, tinha uma fita métrica ao redor do pescoço e na tampa do frasco um buquê de flores de plástico (também inspiradas em obras de Dalí) e, no mais, Elsa solicitou que fosse desenvolvida uma tonalidade de cor em intensidade forte, marcante e diferente para a embalagem do perfume. O tom desenvolvido foi um rosa muito intenso, que recebeu o nome de “pink shocking”, daí até hoje usarmos a expressão “rosa-choque” para tons de rosa muito vibrantes. Essa tonalidade de rosa tornou-se a sua cor-símbolo.

Lúdica em suas criações, desenvolveu bordados inusitados nos ateliês Lesage, além de botões em forma de borboleta e lagosta. Criou lenços, luvas e calçados baseados na estética surrealista. A Jean Schulumberger (1907-1987), solicitou bijuterias fantasiosas bem extravagantes usando plástico, metal e porcelana. Criou seus vestidos-gavetas inspirados nas Vênus com Gavetas de Dalí, mas talvez o mais emblemático de todos seja o seu Vestido Lagosta (1937), inspirado na escultura Telefone Lagosta (1936), também de Dalí, tendo uma enorme lagosta estampada na parte frontal da peça. Vale lembrar que na cidade natal de Dalí (Figueres, Espanha), lagosta era uma espécie de apelido para a genitália feminina e, portanto, insinuava que quem a usasse estivesse nua.

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Foto: Divulgação.

Assim, Schiaparelli tornou-se uma das principais figuras da moda parisiense nos anos 1930. Nomes como Hubert de Givenchy (1927-2018), Philippe Venet (1929-2021) e Pierre Cardin (1922-2020) trabalharam e foram aprendizes chez Schiaparelli. 

Sempre inovadora, Elsa deu uma grande e importante contribuição à moda, colocando-a no mesmo patamar das artes plásticas, em especial pelo viés do surrealismo, a última das vanguardas da arte moderna. Realizou seu derradeiro desfile em 1954. 

Em 2007, a Casa Schiaparelli foi adquirida por Diego Della Valle, e a partir daí foi reabilitada à moda. Christian Lacroix assumiu a direção artística em 2013; Bertrand Guyon, em 2015; e, em 2019, a chegada do americano Daniel Roseberry trouxe novo sopro de modernidade à casa, tanto para a alta-costura quanto para o prêt-à-porter, e, assim, o nome Schiaparelli voltou a fazer parte das novas emoções e dos desejos de consumo na moda. 

Daniel, em suas concepções, recuperou a interface artemoda com o surrealismo e, em uma nova linguagem atualizada aos novos ares do tempo, sem perder as referências de origem de Elsa, trouxe à tona o onírico pelo viés do atual conceito do “escapismo”, dialogando com as identidades surreais, especialmente durante e pós-pandemia de covid-19. 

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Foto: Divulgação.

Com suas roupas espetaculares (lúdicas como ao tempo da fundadora), seus desfiles performáticos, seus sapatos inusitados e, em especial, bordados e acessórios completamente diferenciados, Roseberry mantém a identidade e a genuinidade peculiares aos valores de Elsa Schiaparelli nos dias atuais, seja com a moda conceitual, seja com a moda comercial; além, obviamente, do rosa-choque e do brilho dourado. 

Novos tempos, novas dinâmicas, novas leituras, novas tecnologias, novas criações, novo público e novo frisson na moda.

 por João Braga

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