Deparei-me com esta estória intrigante anos atrás, durante a pesquisa para o roteiro do telefilme Burning Sand, para o qual tinha entrevistado em Nova York, Antony Guarisco, marine norte-americano durante a campanha do Pacífico, e que em 1987 liderava o movimento nacional dos Atomic Veterans. Desde a década dos anos 70, estes soldados reclamavam reparações dos sucessivos governos em Washington - reparações pela morte de aprox. 200 mil veteranos que participaram dos testes nucleares entre as décadas de 40 e 60, porque tinham sido enganados, traídos pelas autoridades, forçados a assinar “salvo-condutos”, cheques em branco, isentando o Pentágono de “todas e quaisquer responsabilidades por eventuais danos à saúde”. A malícia infernal já estava subentendida na própria declaração, mas os boys assinaram; alguns por patriotismo, outros por ingenuidade, outros ainda por esdruxularias equivalentes.
O filme, com roteiro baseado em meu livro A bomba pacífica (Brasiliense, 1988), com financiamento inicial do Film Office Hamburg, há anos aguarda conclusão, porque a Guerra Fria deixava de ser fashion, as usinas nucleares e seus gêmeos siameses, as bombas, também atômicas, caíram em desuso em escala global. Mas eis que o projeto é salvo pelo gongo da História, melhor: por sua versão Bonapartista, aquela, cuja repetição Marx tão espirituosamente chamou de farsa. É que o fogo fátuo da Guerra Fria se reacende e, atento às graves alterações climáticas e a desesperada busca por fontes geradoras de energia de baixo impacto ambiental, um poderoso lobby (l´escroquerie nucleaire, como diz um amigo gallo-romano) arma esperto revisionismo histórico dos perigos das instalações nucleares, agora vendidas ao distinto público como “as menos poluentes e mais seguras”.
E fez a cabeça de Nosso Timoneiro. Este, como se sabe, entre mensalões e outras diatribes da nova classe de alpinistas sociais, aprovou a conclusão de Angra-3 e a construção de mais seis outras usinas nucleares. Dizem línguas afiadas que o Brasil precisa de assento no Conselho de Segurança da ONU, onde meras usinas nucleares rimam com bombas… Mas, o que interessa aqui, é que das seis usinas planejadas, duas ou três operarão no litoral do Nordeste – o que me devolve o insight de Louis Reard…
Nos anos 50 a relação macabra entre a fonte inspiradora e o trapinho homônimo – a bomba e o biquíni – repercutiu desfavoravelmente para Reard. Mais, non!, argumentando pela tangente, afirmou que havia emprestado o nome do sumário traje de banho ao atol, e não à bomba. A verdade é que ele tirou enorme vantagem dos testes com a arma terminal, cuja devastação parecia pescar no inconsciente coletivo fantasias associadas ao imperativo histórico de uma urgente devastação da moral vitoriana. Com a reprodução em algodão, de fac-símiles da cobertura de imprensa sobre os testes nucleares, Reard promoveu um marketing literalmente bombástico.
Contudo, garimpadas as segundas intenções nas lixeiras da História, eis que uma insólita explicação econômica parece varrer todo o encanto, substituindo nossas fantasias por fatos. O pano de fundo histórico do biquíni, que aqui funciona como perfeito trocadilho, foi a falta de pano para a confecção de fundilhos. Em 1943, em plena 2a. Guerra Mundial, o governo norte-americano obrigou a indústria têxtil ao racionamento de matérias-primas, provocando a redução de 10 por cento de algodão na confecção de trajes de banho femininos. O resultado desta operação militar foi uma espécie de “ventre livre” patriótico para o corpo feminino, e foi Reard quem lhe daria a forma no Velho Continente. Sua inovação mercadológica consistiu em reduzir o traje para 30 polegadas de malha, desmembradas em bustier top e um triângulo invertido, down, conectados por um cordão. O biquíni de Reard era tão sumário para a moral da época, que nenhuma modelo parisiense ousou subir a passarela.
Nos EUA, certa “Liga pela Decência” pressionou os produtores de Hollywood para banir o biquíni das telas. Porta-vozes da cruzada vitoriana questionaram em público a reputação das moças convertidas à moda, afirmando que “o biquíni revela tudo no corpo de uma mulher, menos o nome da mãe dela “(sic!). Impávido, Reard manteve a classe e a ousadia a serviço do marketing, contratando Micheline Bernardini, em cuja cabeça e corpo o biquíni caiu como uma luva, pois atuava como dançarina de nus no Cassino de Paris: após uma sessão de fotos dela em poses reclinantes, a imprensa caiu de quatro, embasbacada, e a musa foi soterrada sob uma avalanche de 50 mil cartas de fãs ensandecida/os.
Mas la Bernardini não foi capaz de impor a capitulação aos vitorianos EUA. Desesperado (melhor: de olho grande no mercado yankee), Reard incorporou a carta do eremita do tarô, e teve seu segundo insight: une femme fatal mal conhecida por “BB”. Deslocou para o campo de batalha suas estonteantes curvas, acentuadas pelo trapinho, et voilá!, era o que faltava: o biquíni precisava de curvas para ser valorizado, e la BB impôs a queda das últimas barricadas norte-americanas. Entrava em cena em Hollywood o vitorioso trapo que matava a cobra e escondia o… principal. Das passarelas para a tela e o vinil, foi um passo. O biquíni foi cantado em prosa e verso, imortalizado no rock de Brian Hyland, do final dos anos 50, “Itsy-Bitsy-Teenie-Weenie/Yellow-Polka-Dot Bikini”.
A empresa de Reard conseguiu manter-se no mercado até 1988. Uma versão sobre os motivos do fechamento da empresa insinua que Reard perdera a guerra pela miniaturização para o fio-dental brasileiro; aberração, vingança dos inventivos trópicos e golpe fatal nos planos do estilista.
Cinqüenta anos depois, é oportuno indagar se a vinculação proposital do maiô partido em dois com a arma de extermínio em massa, não abriga códigos de significados convergentes. O primeiro deles é a “onda Shumpeteriana”: em conjunturas de abertura democrática e crescimento econômico, a moda (e a libido) abre-se também, liberando o corpo do “supérfluo” (no inconsciente coletivo pós-guerra, masculino, era enorme a demanda pela “abertura do pano” sobre o corpo feminino). O segundo, é seu significante profundamente pós-moderno: a visão de Reard é a alegoria do êxtase ilimitado, cujo pêndulo sempre oscila entre Eros e Tanatos, entre o prazer e a morte – o signo marcante de toda a cultura iconográfica e moda, militarizadas e ferozmente midiatizadas neste início de 3º. Milênio.
Por fim, uma pitada de pimenta tupiniquim: as bombas atômicas norte-americanas lançadas sobre o paradisíaco atol de Polinésia – imortalizado nos quadros de Paul Gauguin – foram construídas, durante e depois da 2ª Guerra Mundial, com matéria-prima brasileira: milhões de toneladas de areia monazítica, contendo urânio e tório, das praias de Guarapari, no Espírito Santo, Mãe Ubá e outros costões do sul nordestino. Quem aguardar o filme, verá.
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