Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés

Fonte:|webartigos.com|

Antonio José Ferreira de Mesquita

A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés constitui um gigantesco esforço para compreender a natureza de uma forma de dominação fundada nesse contraponto: relações sociais capitalistas nas quais a força de trabalho se acha imobilizada através da moradia. Com este trabalho, José Sérgio Leite Lopes continua o exame de uma problemática que já se encontrava delineada em seu primeiro livro, O Valor do Diabo (1976), em cujo último capítulo, ao analisar as características do mercado de trabalho dos operários das usinas açucareiras, preocupou-se especificamente com o significado da "imobilização da força de trabalho pela moradia".
Originalmente escrito como tese de doutorado para o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ - e contendo um trabalho de pesquisa de mais de sete anos -, o livro de Leite Lopes desenvolve um leque de problemáticas a partir de um foco central: a análise detalhada de um grupo determinado de operários, submetido a relações de dominação particulares, para, justamente, estudar em profundidade um "padrão mais geral de uma forma de dominação específica, a das fábricas com vila operária" (p. 15).
A articulação das distintas problemáticas que se desdobram a partir deste eixo central faz da obra um dos trabalhos mais ambiciosos tanto no campo relativamente recente de uma "antropologia social da classe operária", como também no campo das análises da formação da classe operária no Brasil.
No entanto, A Tecelagem... - como esclarece o autor - constitui um livro essencialmente monográfico, no qual nos vemos introduzidos, ao longo de umas seiscentas páginas, no universo das relações sociais que compõem a vida dos operários da Companhia de Tecidos Paulista, instalada no Estado de Pernambuco; tanto na vida "dentro" da fábrica, no terreno dos processos de trabalho, como na vida "fora" dela, no terreno cidade que, sendo até há poucos anos de propriedade da companhia, constitui o símbolo do podér da empresa sobre a esfera da reprodução dos trabalhadores.
Considerando que a forma de dominação correspondente às fábricas com vilas operárias é apenas "uma configuração de uma estrutura de relações sociais de dominação dentre outras configurações possíveis no interior do modo de produção capitalista e no interior do conjunto de relações entre a cla:. se operária e o patronato" (p. 18), o autor escolhe a Companhia de Tecidos Paulista como uni caso "radicalizado", "limite", daquele padrão, no qual a estrutura de relações que se estabelece entre a fábrica e os operários envolve, "sob um mesmo controle, centralizado, a produção fabril, o domínio da moradia e da cidade, a produção agrícola da retaguarda territoriàl da fábrica e a circulação mercantil de bens de consumo dos operários, sob a forma de uma feira administrada. Além disso, esta, estrutura de relações sociais contém a promoção e administração de atividades médicas, religiosas e recreativas, e também uma numerosa milícia particular garantindo o ‘governo local de fato’ da companhia sobre estas múltiplas atividades" (p. 21).
Em A Tecelagem... Leite Lopes logra dar continuidade a uma metodologia de trabalho que rendera enormes frutos em O Vapor do Diabo: construindo os dados "dentro" de uma problemática que se nutre do conhecimento profundo de uma situação ou processo social "singular", transforma o seu trabalho em um laboratório de construção e reflexão teórica. É sobre a base dessa metodologia de investigação que o autor consegue articular as diferentes problemáticas que se colocava em sua obra, podendo preocupar-se, ao mesmo tempo, e com uma notável eficácia, tanto em "empreender o estudo detalhado da constituição, diante dessa forma de dominação, da identidade própria de um grupo operário determinado" (p. 15), como em oferecer elementos para "uma antropologia social da classe operária" (p. 20). Da mesma maneira, ao se propor a estudar "uma fábrica com vila operária determinada e sua trajetória a partir, mas não exclusivamente, das informações e representações do grupo operário formado por aquela fábrica" (p. 20), reflete sobre os modos de "interiorização da dominação e também de resistência à dominação, quanto aos aspectos propriamente simbólicos por ela assumida" (p. 21). Enfim, uma série de objetivos que, por outro lado, contêm uma variedade de referências e de diálogos que evocam desde historiadores sociais, como E. P. Thompson, até sociólogos que trabalham com materiais antropológicos, como P. Bourdieu.
A Tecelagem... está subdividida em dois livros. No primeiro, Leite Lopes analisa as características específicas da forma de dominação contida no sistema de fábrica com vila operária. A exposição das particularidades do "sistema paulista" decompõe-se em duas partes: a primeira mostra como o sistema de dominação ocupa-se das condições materiais de existência dos trabalhadores e de suas famílias, analisando desde o "aliciamento direto das forças de trabalho, a alocação no trabalho, a casa", até "a circulação mercantil dos bens de consumo fundamentais dos trabalhadores"; a segunda parte considera o lugar, nesta forma de dominação, da "promoção pela companhia da vida associativa, do lazer, e de atividades religiosas, a existência da polícia particular da companhia, e a incompatibilidade entre o ‘sistema papista’ e o sindicato operário" (p. 36). Por sua vez, o segundo livro ocupa-se das "contradições do ‘sistema paulista’" e trata da estrutura dos conflitos de classe e do processo de constituição, como grupo, dos operários da Paulista - um processo de "autoconstrução de uma identidade própria" que é também um processo de "autoconstrução de sua própria consciência de classe" (p. 274). Leite Lopes mostra as modalidades de estruturação dos conflitos de classe tanto "dentro" do que - parafraseando Marx - constitui o "laboratório secreto da produção", onde, por exemplo, se confrontam diferentes concepções de trabalho, quanto "fora" da fábrica, no campo dos conflitos que têm como eixo a esfera de reprodução dos trabalhadores e que são extensamente tratados no capítulo destinado à análise do processo de "libertação da cidade" e das "lutas pela apropriação da Vila Operária pelos trabalhadores" (pp. 459 e segs.).
A estrutura da obra, uma sucessão de capítulos correspondendo à articulação das distintas problemáticas abordadas, poderia encerrar a possibilidade de um equívoco: a separação dos dois "livros" poderia nos induzir a pensar o primeiro como dedicado a uma análise mais de tipo "sistêmico", enquanto o segundo encarregar-se-ia do estudo de suas "contradições". Mas é a própria força da argumentação de Leite Lopes que, pelo contrário, justamente nega essa possibilidade, mostrando, no primeiro livro, como o "sistema paulista" está constituído por suas próprias contradições e, no segundo, como o rèsultado do processo de autoconstrução do grupo de operários é um resultado particular, específico, que responde às características da forma de dominação em que, esse processo tem lugar. Em A Tecelagem... -Leite Lopes consegue expor com uma notável consistência uma metodologia de trabalho que se apóia; por um lado, na análise da lógica interna da forma de dominação analisada, ao mesmo tempo que afirma permanentemente seu caráter contraditório - em que os processos de interiorização da dominação, nos quais se assenta a "legitimidade" do sistema, opõem-se às distintas modalidades de resistência - e, por outro lado, em um autêntico trabalho com a história que põe por terra tanto a possibilidade de uma exposição ingenuamente linear, quanto a de uma análise que relegue a história a algumas, divisões específicas - os "capíttìlos históricos". Ambas as características se articulam, por sua vez, no que constitui o verdadeiro fio condutor da construção da problemática e de sua exposição: as representações dos trabalhadores sobre as relações, das quais participam e as visões construídas sobre sua própria história.
A observação direta do grupo - durante mais de nove meses de trabalho de campo - soma-se o tratamento das informações históricas recolhidas das avaliações dos operários sobre seu passado e de suas histórias de vida; a isto se agrega um enorme volume de dados construídos mediante a utilização de numerosas outras fontes que, por sua vez, refletem representações de outros tantos atores que participam deste processo social: desde obras de cronistas locais e manuscritos da autobiografia de um ex-operário da companhia, até diários e revistas de circulação local ligados a organizações políticas ou religiosas, atas das distintas organizações sindicais da Companhia Paulista e relatórios anuais e arquivos da própria empresa. Somam-se, finalmente, informações provenientes da consulta a arquivos e periódicos nas cidades de Recife e do Rio de Janeiro, o que contribui para dotar o livro de Leite Lopes de um certo caráter épico, pela abundância de informações detalhadas sobre as relações sociais na Companhia durante os últimos 50 anos.
Da leitura de A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés surge a certeza de que, nas Ciências Sociais, as metáforas são muito mais que um "recurso de estilo": constituem um verdadeiro instrumento teórico-metodológico. A começar pelo título da obra, pela enorme possibilidade de desdobramentos contida na própria idéia de "tecelagem", como acertadamente assinala Leite Lopes: por um lado, a própria produção têxtil, com seu exército de tecelões e fiandeiros; por outro, a idéia de tecelagem sugere o desenvolvimento de um processo ativo de autoconstrução, de um grupo social. Um processo que, como evoca muito bem o título do trabalho, nos remete à imagem de "teia", "trama" ou "imbricação", pois contém uma análise das múltiplas determinações em jogo: desde as "peculiaridades dos grupos sociais de origem das famílias de trabalhadores recrutadas para a Paulista, desde o modo de vida dos trabalhadores naquela vila operária, submetidos a uma forma de dominação específica a que não são irrelevantes as próprias idiossincrasias patronais, até determinações econômicas e políticas da indústria têxtil de nível nacional ( como a competição entre as indústrias do Nordeste a entre estas e as do sul do país), e até as determinações políticas nacionais e estaduais que se sobrepõem ao `governo local de fato' " (p. 22) exercido pela companhia sobre seus súditos, habitantes de "sua" cidade.
O título do trabalho, aliás, também faz alusão a esta situação: em Paulista, "cidade das chaminés", são justamente as chaminés, símbolo da fábrica, que dominam a cidade.
Desde o primeiro capítulo, o leitor de A Tecelagem... é conduzido às entranhas dessa "paradoxal servidão burguesa" constituída peló "sistema paulista". O processo de aliciamento direto dos trabalhadores por parte da companhia é mostrado como um processo "exemplar" da forma de dominação constituída nesta fábrica com vila operária.
Na forma de uma intrincada e fascinante sucessão de rituais e teatralizações, os trabalhadores rurais ligados à Paulista são "despojados de suas condições de existência anteriores" para iniciarem um "processo de proletarização singular" (p. 43), que contém todos os códigos de um autêntico "ritual de passagem", magistralmente analisado pelo autor: "submetidos a um processo de ‘desnudamento’ que pode ser visto, pelo desligamento das condições de existência anterior, como a primeira parte da seqüência que caracteriza os rituais de passagem, isto é, a separação; submetidos em seguida a um processo de marginalização, segregação e liminaridade nas condições de alojamento no depósito (onde os trabalhadores se encontram em uma situação de `espera'); e finalmente submetidos a esse ritual de apresentação ao patrão e alocação ao trabalho, a esse ritual de agregação (no qual os trabalhadores se encontram frente ao patrão em carne e osso, que os submete a um exame corporal, similar à revisão de um curriculum, que serve de antecedente à designação das novas tarefas), os trabalhadores aliciados defrontam-se com as suas condições iniciais de vida na vila operária" (p. 55). Trata-se de um conjunto de condições novas que supõe, depois do "desnudamento" dos trabalhadores aliciados, um "processo inverso de `revestir-se' proporcionado pela companhia, que completa, ao lado do ritual de alocação ao trabalho e a uma nova casa e de apresentação ao patrão, os ritos de agregação ao mundo da fábrica" (p. 58).
A Tecelagem... é um livro profundamente "vivo" em que o leitor é convocado, devido ao estilo literário e à capacidade metodológica e de investigação do autor, a observar "de dentro" o processo de constituição de um grupo de operários no marco de uma forma de dominação particular. Os recursos de Leite Lopes são de uma enorme variedade: desde a utilização de "histórias de vida" que, recriadas na forma de contos - e transformadas em verdadeiros "dados" -, servem para ilustrar, por exemplo, o processo de constituição de uma "cultura fabril" (cf. o episódio das "aventuras de Severino", pp. 74 e segs., "cultura fabril" que permite ao autor "desnudar" a lógica do sistema de dominação, mostrando não só os mecanismos articuladores da "microfísica do poder", como também os opostos, de uma "microfísica da resistência"; até o episódio - que tem lugar no início da década de 30 - que relata "a batalha do coronel Frederico ( proprietário da companhia) com Roberto do Diabo", ilustrando uma das características próprias do "sistema paulista" - sua incompatibilidade com a associatividade sindical de seus operários (cf. pp. 206 e segs.). Este episódio serve também para mostrar um exemplo de "teatralização da revolta", que constitui a contrapartida da "teatralização da dominação" manifestada, por exemplo, no processo de aliciamento dos trabalhadores. A luta entre Roberto do Diabo e o patrão envolve a primeira tentativa de organização sindical por parte dos trabalhadores e "permanece até hoje como marco inicial mítico do aliciamento em massa das famílias de trabalhadores, e portanto, da produção dos próprios trabalhadores modelares do `sistema paulista', fazendo parte, assim, da história incorporada desse grupo social" (p. 262). Um episódio que, contendo representações que aludem, por um lado, ao próprio intento de sindicalização e, por outro, ao fim do estilo personalizado de dominação do patrão frente à presença permanente do sindicato, a partir da década de 1950, projetar-se-á em períodos posteriores. Ao avançar na leitura de A Tecelagem... e sobretudo a partir do segundo livro, o leitor pode apreciar a profundidade da dimensão etnográfica do trabalho de Leite Lopes.
A profusão de dados e de informações detalhadas obtidas de inumeráveis fontes e oferecidas pelo autor para reforçar seus argumentos mostra a magnitude de sua minuciosa tarefa reconstrutiva. É justamente esta profusão e profundidade de detalhes que pode levar o leitor a sentir-se um tanto "perdido" e a não perceber adequadamente as articulações entre as diferentes problemáticas abordadas nessa parte da obra, na qual, aliás, se encontram algumas das passagens mais brilhantes do livro. Por exemplo, aquela em que Leite Lopes, estudando o processa de desarticulação do "sistema paulista", mostra, passo a passo, os mecanismos que contrapõem "microfísicas do poder e da resistência" no campo dos processos de trabalho. A análise inclui um conjunto de considerações sutis em relação às dferenciações entre os próprios operários e mostra a "resistência" dos trabalhadores não só nas grandes greves que salpicam o período 1945-1964, como também aquela "microfísica da resistência" que progressivamente substitui uma antiga "cultura fabril" por outra, adaptada à modernização empresarial e à sua nova "orientação gerencialista" (cf. pp. 361 e segs.).
A parte final do livro consagra-se à análise da última "epopéia" dos trabalhadores da Companhiade Tecidos Paulista: "a libertação da cidade e as lutas pela apropriação da Vila Operária".
Confluindo com uma sucessão de transformações políticas e econômicas nacionais e regionais, o processo de reapropriação da Vila Operária pelos trabalhadores faz parte, por sua vez, do s processo de dissolução da forma de dominação "fábrica com vila operária", mostrando sua própria natureza. A união entre a esfera da produção e a esfera da reprodução dos trabalhadores fica evidente no momento em que a companhia, em pleno processo modernizador, cede a propriedade das casas aos trabalhadores demitidos, como parte das indenizações (cf . o episódio que: a analisa "a resistência à ‘guerra contra os estabilizados’ depois de 1964") (pp. 541 e segs.).
A Tecelagem... começa com entrevistas que remetem a “dois tipos de orgulho manifestados freqüentemente pelos operários da Paulista a respeito do passado que caracteriza o seu grupo social: o orgulho que provém da ‘cidade das chaminés’, da própria grandeza da companhia ( ... ); mas também o orgulho decorrente da experiência de lutas travadas contra esta mesma companhia”(p. 585) . Ao chegar às últimas páginas do livro, fica claro para o leitor o conteúdo da contradição que opõe ambas as visões, sendo a oposição entre a grandeza da "cidade das chaminés" e a grandeza do movimento operário que ali "teceu" sua consciência uma excelente síntese do processo de autoconstrução do grupo de operários e da formação de sua própria consciência de classe, consciência que está ligada menos "a uma decorrência filosófica das possibilidades históricas atribuídas ao ‘proletariado’ e à ‘classe operária’, e mais às pequenas lutas e aos imprevistos da mobilização real' da transformação deste grupo operário em grupo mobilizado" (p. 589).
Por todos esses motivos, considero o livro de Leite Lopes um dos mais fecundos esforços recentes em ciências sociais no sentido de compreender os processos sociais de um ponto de vista que sintetiza as melhores tradições da história social e da antropologia.

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