Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

As empresas, suas marcas, os indivíduos e o Otário

Internet expõe o desnível de expectativas existente entre a difusão de educação e informação e o modo como as empresas tratam o consumidor, como se este ainda tivesse o mesmo perfil de exigência de trinta anos atrás


Este texto foi publicado em 2013 no Webholic.com.br, republicado em 2014 no livro Torniquato e reproduzido aqui com pequenas alterações

Em meu livro Até o dia em que o cão morreu, há um diálogo em que o narrador, um sujeito um tanto amargo e formado em Letras, informa à nova namorada que deu aula “em um desses cursos falcatrua de inglês, tipo Yázigi”. 
[…] 
Isso está na edição original de 2003, uma publicação independente. Quando o livro foi reeditado pela Companhia das Letras, em 2007, a menção ao Yázigi precisou ser cortada, depois de uma, digamos, recomendação enfática dos editores. Descobri que havia um histórico perturbador de processos por causa de menções a marcas, empresas ou produtos em contexto negativo dentro de livros de ficção. A editora quase sempre perde. 
[…] 
Na verdade, existe algo de sinistro no policiamento a que todos os cidadãos, escritores de ficção incluídos, são submetidos no que se refere à opinião e uso próprio de marcas de produtos e empresas.

Todos os indivíduos são instados a se capacitar desde que nascem. De um pré qualquer até a graduação, pós-graduação, especialização, mestrado, doutorado. MBA. Bilíngue, trilíngue, poliglota. Mandarim. Ler muito, acompanhar noticiários, jornais e revistas, manter-se bem informado. Interpretar textos. Escrever bem, saber se comunicar, ser articulado. Subir ao palco.

Ao longo de décadas, a soma dessa busca pessoal por capacitação forma — é o que se espera — pessoas melhores e mais competentes, o que, por extensão, tende a criar cidadãos melhores, mais responsáveis, com uma noção mais ampla de seus direitos e deveres e de como suas ações repercutem na sociedade, para melhor ou para pior.

Quem adquire tanta ferramenta torna-se um consumidor mais exigente.

Então por que a qualidade dos produtos e serviços das grandes empresas e suas marcas e as relações que elas estabelecem com os consumidores não conseguem acompanhar o nível de exigência que se cobra dos cidadãos e profissionais? Por que se exige tanto dos indivíduos e não das empresas, suas marcas, seus produtos e serviços?

Quantias bilionárias são sistematicamente investidas para que marcas entrem na vida das pessoas, do nascimento até a morte. Isso repercute de maneira indelével na história de cada um. Há bebês que falam “Coca” antes de “mamãe”. Porém, em um jogo não recíproco, ao invadir a vida das pessoas, as empresas não aceitam que essas pessoas se voltem contra isso, transformando os lances nesse tabuleiro numa via de mão única.

No documentário The Corporation (2003), os diretores Mark Achbar e Jennifer Abbott sugerem o que pode ter sido a origem da desvantagem dos consumidores: a instituição da Pessoa Jurídica.

A partir da Revolução Industrial, o empresário se tornou o responsável legal pelas ações de sua empresa. Mas com o advento das sociedades anônimas, o direito e a Justiça precisaram se adaptar, criando a figura da Pessoa Jurídica. Assim as mesmas leis que sempre valeram para Pessoas Físicas passaram a valer para entidades não físicas, existentes como “pessoas” apenas no âmbito jurídico.

Na tese de Achbar e Abbott, essa personificação abstrata emprestada às empresas possibilitou-lhes agir como entidades que não seriam convenientes ou aturadas se fossem simplesmente Pessoas Físicas. O doutor Robert D. Hare, professor de psicologia na University of British Columbia, mostra, no filme, que quase todas as grandes corporações seriam diagnosticadas como psicopatas pelos critérios adotados pelo FBI, onde é consultor:

  • Indiferença e insensibilidade para com os sentimentos dos
    outros;
  • Incapacidade de manter relações duradouras;
  • Desrespeito e imprudência pela segurança dos outros;
  • Seduz, mente e engana repetidas vezes para lucrar;
  • Incapacidade de sentir culpa;
  • Falta de habilidade para se conformar às normas sociais respeitando comportamentos lícitos.

Galera cita, em seu texto, uma crítica à publicidade atual e ao modo como ela se dirige às pessoas, feita pelo artista Banksy e que tem circulado na internet (tradução minha):

Estão tirando sarro de você todos os dias. Eles se intrometem na sua vida, tiram um barato de você e depois desaparecem. Eles olham você do alto dos edifícios e fazem com que se sinta pequeno. Fazem comentários irreverentes no ônibus sugerindo que você não é sexy o suficiente e que toda diversão está acontecendo em outro lugar. Eles estão na TV fazendo sua namorada se sentir desconfortável. Eles têm acesso à tecnologia mais sofisticada que o mundo já viu e a usam para te humilhar. Eles são Os Anúncios e estão rindo de você. 
Você, no entanto, é proibido de tocá-los. Marcas, direitos de propriedade intelectual e direitos autorais significam que os anunciantes podem dizer o que quiserem onde quiserem com total impunidade. 
Foda-se! Qualquer anúncio em um espaço público que não lhe dá nenhuma escolha a não ser vê-lo é seu. É seu para pegar, reorganizar e reusar. Você pode fazer o que quiser com ele. Pedir permissão é como perguntar para alguém se você pode ficar com a pedra que ele arremessou na sua cabeça. 
Você não deve nada a empresas. Menos do que nada, você, especialmente, não deve a eles nenhuma cortesia. Eles é que lhe devem. Eles reorganizaram o mundo para se exibirem na sua frente. Eles nunca pediram a sua permissão para isso, então nem comece a pedir a eles.

O escritor encerra sua coluna com exemplos dos motivos que as Pessoas Jurídicas dão para serem desacreditadas na realidade e na ficção:

Então, com licença, mas a escola de inglês que meu personagem desaprova se chama Yázigi. E aproveito para dizer que evito ao máximo beber Brahma, Skol e Nova Schin por causa da publicidade intolerável que me forçam a ver quando um noticiário ou jogo do Grêmio me faz ligar a TV. E que aquele troço do Itaú de “uso consciente do dinheiro” quase me fez trocar de banco. E que qualquer vídeo com locução estilo “vovô carinhoso” me induz ao boicote. E que não consumo nada da Coca-Cola desde que meu intelecto foi vilipendiado por aquela campanha baseada “em um estudo sobre o mundo atual” (sic) que nos oferecia “razões para acreditar”, tais como “para cada tanque fabricado no mundo, são feitos 131 mil bichinhos de pelúcia”. Está no YouTube, mas não recomendo. 
E se algum personagem meu xingar a Coca, não fui eu.

A Internet tem sido o único espaço onde o consumidor tem chance de equilibrar esse jogo. Sendo uma via de mão dupla, nela os consumidores não se intimidam tão facilmente com o arsenal econômico e jurídico que tenta evitar que as informações circulem. São milhares de exemplos de como um cliente revoltado pode ser ouvido.

Entre os que surgiram como defensores dos mais fracos e oprimidos se destaca um de terno, que veste um saco de papel na cabeça, tem voz engraçada e mistura humor, animação e palavrões para desabafar e denunciar a forma retrógrada como as empresas tratam — e até enganam — seus clientes.

Ele é o Otário e seu campo de batalha é o Canal do Otário. Seus alvos são operadoras de telefonia, tv por assinatura, bancos, montadoras de carros, indústria de alimentos e agências reguladoras. Não há empresa no Brasil que não dê motivos para merecer um vídeo do Otário.

No Facebook, sua fanpage tem mais de 150 mil likes e 17 mil pessoas seguem seu Twitter. Dia a dia agrega aliados na defesa da boa relação das grandes empresas com os consumidores. Prega transparência, bom atendimento, inteligência no relacionamento, concorrência competente, inovação, informação, qualidade no produto e na prestação de serviços.

Em meio a essa luta hercúlea, é vítima de censura. As empresas usam o mesmo argumento que o jornal Folha usou para impedir que o site Falha de S. Paulopermanecesse no ar: o de uso indevido de marca, o que poderia confundir o consumidor. Quanta ironia!

No fundo, essas atitudes revelam que a revolta do Otário e de seus seguidores é justificada. A cada ameaça de nova censura, seu séquito une forças para multiplicar ainda mais os vídeos, tornando humanamente impossível para os departamentos jurídicos de cada empresa e do próprio YouTube remover todos os vídeos. Assim, pouco a pouco, a balança pende um pouco mais para as Pessoas Físicas.

Quase uma versão nacional e mais dramática de Super Size Me, o documentárioMuito Além do Peso, da diretora Estela Renner, aborda a obesidade infantil no Brasil e mostra as táticas das empresas alimentícias e outras transnacionais para, através da propaganda, convencer as crianças (e pais) de que seus produtos estão associados a bons ideais, a ser bem aceito pela sociedade e que podem substituir frutas e legumes sem prejuízos à saúde (por conterem vitaminas, minerais ou por não serem fritos).

Podendo agir como um psicopata sem o risco de ser identificado como um, o poder econômico dá acesso fácil aos meios de comunicação e à Justiça: ganha quem pode pagar mais. Uma Pessoa Física só teria condições de equilibrar a balança se pudesse, como as empresas fazem, manter atuante um departamento jurídico com seus profissionais. Com advogados à disposição para eventuais defesas em processos, as empresas garimpam as leis em busca de brechas comerciais, tributárias e civis e investem em ações que ainda não estão descritas como proibidas no Código de Defesa do Consumidor (CDC), podendo, desse modo, dar vazão a atitudes antiéticas e amorais — mas nem por isso ilegais.

No ranking de reclamação do Procon paulista, os 5 maiores bancos do país estão entre as 20 empresas que mais recebem reclamações. Em 2001, a Confederação Nacional das Instituições Financeiras, apoiada pela Federação Nacional dos Bancos, levou ao Supremo Tribunal Federal uma ação para tentar invalidar a aplicação do CDC na relação entre os bancos e seus correntistas. Em 2006 o Supremo julgou improcedente, obrigando essas instituições a respeitar o Código. Por mais que tenham perdido, a mera tentativa de se afastar das obrigações de consumo demonstra o vil apreço
que sentem por seus clientes.

Em 2004, uma grande empresa suíça de alimentação comprou a maior fabricante brasileira de chocolate. Ignorando as resoluções do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, a compradora, mais de oito anos depois, ainda estica uma batalha judicial para invalidar o que o órgão brasileiro recomendou para o negócio. Hoje concentra mais de 65% do mercado de chocolates. A compra não seria para favorecer o acesso a tecnologia e receitas exclusivas: o objetivo é ampliar seu naco no mercado. Com maior escala, otimiza seu lucro na relação matéria-prima x alimento pronto industrializado. Restringe fornecedores, diminui distribuidores; pontos de venda que podiam escolher entre duas empresas passam a ser reféns da mesma organização.

Objetivamente não há ilegalidade na transação. Mas será que a empresa não tomou a decisão e insistiu nela por conhecer o histórico de frouxidão das instituições brasileiras?

Quando confrontadas, todas as empresas envolvidas em litígios argumentam, até com certa razão, em respostas enlatadas, que seguem as leis e as regulamentações dos órgãos responsáveis no país. É verdade. Como também é verdade que todo cidadão bem informado e com o mínimo de senso crítico reconhece a ingenuidade desse argumento. As leis e agências reguladoras no Brasil são atrasadas, lentas, permissivas e favorecem o poder econômico. Se a culpa não é das empresas, inocentes elas também não são.

O caso das quatro (4!) operadoras de telefonia disponíveis para os cerca de 200 milhões de brasileiros é talvez o maior troféu nesse deprimente quadro de medalhas. Na média, seriam 50 milhões de clientes para cada, mas, segundo a Anatel, o Brasil tem 262,26 milhões de linhas móveis ativas (dados de fevereiro de 2013). Ou seja, mais de 65 milhões de motivos para cada uma delas ser uma empresa melhor, mais competente e inovadora do que a outra! Mas, na prática, acabam competindo para ver quem tem o garoto-propaganda mais caro e conhecido. Ou vender analogias fantasiosas como um trem fictício que percorre uma cidade de 20 milhões de habitantes que não tem nem 100 quilômetros de metrô. São empresas de marketing, não de tecnologia e telecomunicação, cujos produtos são os mesmos pacotes de serviços que se diferenciam apenas no formato e preço. Não há inovação que não seja gastar rios de dinheiro em marketing ou para comprar e fundir negócios preexistentes, formando empresas maiores, mais engessadas e burocráticas.

Em entrevista à Época, o comediante Fábio Porchat, do canal Porta dos Fundos, falou dos benefícios da rede como espaço para exercer a liberdade de criação:

A gente vem da TV para ficar na internet. A gente quer ficar na internet e acho que é uma decisão certa […] É porque na internet eu sou o dono do meu próprio negócio. Na internet eu sou o Roberto Marinho da parada. […] a internet é um lugar onde as pessoas [as empresas] pagam menos. Elas ainda acham que a internet é uma coisa menor. O que o Porta dos Fundos está fazendo é nivelando por cima. Em alguns casos, as pessoas falam que nós cobramos valores de TV e aí a gente responde: a internet é a nova TV.

Em um dos vídeos mais vistos, Porchat está pintado de azul tentando cancelar a linha de seu celular.

Quem já tentou cancelar alguma assinatura no Brasil sabe que é exatamente assim. Qual foi a resposta da operadora, segundo ele? “A TIM resolveu o meu problema, mas me tratou igual a um lixo.” Diferente do Spoleto, que, alvo de sátiras do grupo, resolveu contratá-los para dois novos vídeos. Outras empresas que fazem parte do cotidiano das pessoas também já foram citadas: NET, Coca e Pepsi.

Um dos conceitos que o guru do marketing Steve Jobs apresentou ao mundo foi: o marketing do produto é o produto. Nas campanhas da Apple não há nada além do produto sendo exibido e usado. O objeto de desejo não é uma celebridade, uma analogia, um sonho, algo etéreo: é tangível e está disponível. No máximo isso fica mais bem demonstrado em um comercial com o John Malkovich dizendo “linguiça”.

Quando as empresas vão perceber que é mais barato lançar melhores produtos do que gastar em marketing e depois ter que segurar o churn? Até quando as embalagens venderão imagens meramente ilustrativas de universos paralelos?

Em 2000 a Bovespa inaugurou o selo Nível 2 de Governança Corporativa. Apenas empresas que respeitam procedimentos rigorosos de transparência e melhor comunicação com o mercado ganham esse distintivo. O regulamento do Nível 2 estabelece que toda empresa que, com suas ações, quiser dinheiro da Bolsa precisa seguir essas premissas. Ao se relacionar com o mercado de capitais, que é muito exigente, muitas empresas são mais transparentes que na relação com seus clientes, que são os que mantêm seus negócios.

Em um mundo com tanta informação, com Wikipédia, YouTube, Khan Academy, Google, Facebook, Amazon, Twitter, Apple, Netflix e tantas outras fontes sofisticadas de conhecimento e tecnologia, é ingrato ter que continuar a ser tratado como o mesmo cidadão ignorante de trinta anos atrás, sem as mínimas satisfações inteligentes.

Para falar de igual para igual, de Pessoa para Pessoa, as empresas precisam deixar de tratar o cidadão e consumidor como otário. Hoje ninguém pode abrir mão do que é e do que sabe ao se relacionar com uma marca, ao usar um produto ou um canal de atendimento.

O dinheiro pago por produtos e serviços não pode ser usado contra os próprios clientes na tentativa de camuflar defeitos ou enrolar na hora de atendê-los.

A dinâmica de ouvir, entender e atender o cliente ficará minimamente decente e equilibrada quando não envolver maquiagem, políticas escusas e linguagem corporativa. As Pessoas Físicas ficarão mais tranquilas quando tiverem certeza de que o dinheiro que gastam num produto ou serviço está financiando sua satisfação e não explorando sua vulnerabilidade.

Consumidores do século XXI clamam por Pessoas Jurídicas comprometidas com os mesmos níveis de exigência impostos às Pessoas Físicas. Enquanto a informação e o conhecimento se difundem pela internet, a seleção natural pela qual passarão as empresas diante das exigências contemporâneas pode ser lenta e gradual, mas com certeza não será benevolente.

Força, Otário!

Este longo texto foi escrito durante as mais de 72 horas em que o autor ficou sem internet pelo casamento de problemas na sua fibra ótica com a falta de luz na região após pancadas de chuva na cidade de São Paulo, a maior metrópole do hemisfério sul.


Nota pra publicação de 2015

Acho que a maior parte do texto acima ainda se aproveita, porém, em pouco mais de dois anos de vida, alguns trechos e pontos seus envelheceram rapidamente, tornando-o datado.
Dois pontos são os que mais me incomodam ao republicá-lo aqui neste 2015:
1. O tratamento da internet como meio único e revolucionário pra equilibrar algumas relações;
2. O uso do personagem Otário como um contraponto ao modo como as empresas tratam o consumidor.
No caso da internet, não significa dizer que de lá pra cá a rede perdeu seu papel de equilibrar determinadas relações, mas que o tom “ufanista” e laudatório do texto original soa equivocado hoje.
No caso do Otário, em 2013 ele era uma novidade (basta comparar os números de likes e seguidores de então — registrados no texto abaixo — com os de agora). De lá pra cá, muitas posições que ele tomou e opiniões que expressou sobre determinados temas divergem bastante de minhas posições e opiniões pra esses assuntos — e hoje não o usaria como um bom exemplo na defesa do consumidor (apesar de achar que vários de seus vídeos ainda são ótimos ao demonstrar a escrotidão de grandes empresas, como esteeste e este).

Rafa Spoladore

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