Cena do filme "Tropa de Elite 2" (2010), de José Padilha.
Todo país é uma narrativa. Uma trama à qual o resto do mundo assiste com diferentes reações – tédio, admiração, medo, raiva.
Você pode compreender o Brasil como um documentário cru sobre desigualdade, egoísmo, injustiça, insensibilidade.
Você também pode pensá-lo como uma comédia de erros, um pastiche cheio de exageros e situações absurdas, um pastelão com esquetes que revelam com frequência um humor grosseiro.
E pode enxergar ainda um road movie cheio de bofetadas, perseguições, emboscadas e tiros. Um thriller com plot twists inacreditáveis, um whodunit em que uns apontam o dedo para os outros — e todos parecem ter assassinado a vítima.
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Comecemos pelos personagens.
Eles são bem estereotipados: uma elite econômica de alma extrativista, que só quer saber de garantir o seu, há 500 anos. Pode rabiscar no storyboard um empresário de cartola e charuto entre os dedos, ou um fazendeiro de botas e chicote na mão.
Do outro lado, desenhe peões maltrapilhos e sem instrução, realizando trabalhos manuais de pouco valor agregado, no campo ou na cidade, e tendo filhos igualmente subeducados e subalimentados, que passarão adiante a mesma fórmula de ignorância e pobreza.
Entre essas duas esferas, uma classe política que existe para manter ricos e pobres em seus devidos lugares, e para repassar a maior parte das contas e despesas do país aos que menos têm
Uma polícia que existe para demonstrar, todo dia, com o uso da força, que grande parte dos brasileiros não tem direitos nem é cidadã.
Uma casta de líderes religiosos que vive às custas da exploração desavergonhada da vulnerabilidade e da estupidez alheias.
Entre outros vilões e bandoleiros óbvios – que, incrivelmente, passam despercebidos. E mais: são muitas vezes incensados como heróis.
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Perceba que todo esse sistema depende da existência de miseráveis.
Todo esse modelo precisa de sub-cidadãos para continuar existindo.
A pobreza no Brasil não existe por acaso, e nem é vista como um problema por quem manda no país. A escassez é uma forma de jugo, uma política bem tramada. Um planejamento de poder bem feito, que faz girar uma indústria poderosa
Um dos truques para manter o fosso entre os que têm muito e os que não têm nada é oferecer ao escravo o cargo de feitor, para que ele apenas troque de lado dentro do sistema, sem jamais questionar a engrenagem da escravidão.
E para que, assim, passando a frequentar o alpendre da Casa Grande, o escravo-feitor seja mais um a manter todo o resto da turma trancado na Senzala.
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Esse plot te parece muito óbvio? Meio clichê?
Então vamos botar uma pimenta aí.
Pense no surgimento de um Robin Hood. Um líder surgido entre os peões com a promessa de reequilibrar as forças em curso há séculos em nossa sociedade e de transformar o país num lugar mais justo.
Esse campeão do povo precisa de 20 anos e quatro eleições para convencer o povo de que é, enfim, o seu candidato.
Robin Hood assume com a desconfiança dos charutos e das botas. E faz um bom governo. É reeleito. Termina o segundo mandato com aprovação na casa dos 80%. Um fenômeno de popularidade
O país vive um momento de prosperidade, de confiança no futuro, de reconhecimento internacional. Mais de 30 milhões de brasileiros saem da pobreza e se transformam, pela primeira vez, em consumidores.
Para completar, Robin elege para sua sucessão uma mulher – a primeira presidente do país. Uma quebra de tabu de grandes proporções, uma conquista histórica para as mulheres.
Chegamos ao céu? Redenção nacional? Final feliz? Não. Pera.
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Descobre-se que Robin Hood tinha um bocado de capangas ao seu redor.
E que o projeto de poder da sua turma envolvia molhar a mão de uma pá de gente – a mesma corja de sempre, além dos novos chegados. (E, claro, colocar dentro do próprio bolso um pouco desse capim também.)
Enfim: uma prática brasileiríssima, antiquíssima, que Robin Hood não poderia ter reproduzido de modo algum. Sob pena de trair sua promessa e seu legado, de jogar no lixo todas as esperanças colocadas sobre ele, e de se transformar em mais um Príncipe João em nossa longa história de rapinagem público-privada
Em paralelo, enquanto nutríamos o desejo de festejar uma mulher na posição mais importante do país, consolidava-se à nossa frente uma das piores gestões da história.
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A narrativa ganha contornos épicos quando surge um cavaleiro cruzado que promete desmontar todo o esquema de corrupção armado.
O peculato é uma instituição nacional muito antiga. Na compreensão do brasileiro médio, a grande motivação para alguém entrar na vida pública é a locupletação. Se além de beneficiar a si e aos seus, ele ou ela fizer alguma coisa de útil pelo país, é lucro.
No entanto, o cruzado risca um xis especificamente na testa de Robin Hood, que é colocado no altar de sacrifício como o bode expiatório para um rito catártico de lavagem histórica da honra nacional. (Além de sermos um país de cleptomaníacos, também adoramos um linchamento.)
A malhação de judas conecta com as esperanças já perdidas de muitos brasileiros de viver num país menos desonesto.
Em outros, irrompe um desejo de forra – a inepta administração que sucede Robin Hood, indicada por ele no auge do seu poder de influenciar o voto entre nós, afunda a nação numa enorme crise econômica e política.
Robin Hood é levado a ferros para a prisão, em um show televisionado ao vivo e a cores para todo o Brasil.
Círculo fechado, gran finale, mocinhos e bandidos finalmente revelados?
Calma. Pera mais um pouquinho.
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Descobre-se que o cavaleiro cruzado era, na verdade, um velho xerife de Nottingham, como tantos outros, dedicado a defender o status quo da Casa Grande – só que envergando uma capa nova e esvoaçante.
A parcialidade e os ritos sumários, que já poderiam causar estranheza nos processos de julgamento, começam a revelar um problema ético grave quando o xerife aceita um cargo no novo governo que emerge no vácuo da administração que ele ajudara a derrubar
Mais tarde se saberia que, tecnicamente, o xerife tinha atropelado uma série de princípios e prerrogativas legais, a ponto de ter sua capacidade julgadora questionada pela alta corte do país – inexplicavelmente, só quatro anos depois de sua lida ter sido levada a cabo debaixo de todos os holofotes.
Como se chama esse gênero, em que o “mocinho” tem a sua verdadeira identidade revelada — e em que a autoridade que a revela também é desmascarada logo em seguida?
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O epílogo dessa trama estamos vivendo hoje.
Com o país pegando fogo, imobilizado num deserto de ideias e de inteligência. Com os brasileiros desesperados diante do presente e desesperançosos quanto ao futuro.
Uma parte de nós acreditou que haveria uma solução rápida para resolver os males da nação, que iríamos mudar as coisas na porrada, que não havia problema em flertarmos com o arrepio à democracia, à lei e às instituições.
Nosso filme — que já foi drama, comédia, fantasia — virou uma fita barata, com roteiro troglodita, em que metralhamos os inimigos (e todo mundo é inimigo) do começo ao fim. Virou tragédia.
O banho de sangue deixou de ser metáfora e virou um mar de mortos ultrarrealista com a chegada da pandemia e a posição do governo federal de não apenas negá-la, mas operar pela obstaculização de todas as medidas sanitárias e preventivas em curso no resto do mundo
Nenhum outro líder mundial conseguiu perpetrar todas essas barbaridades ao mesmo tempo: negar a periculosidade do vírus, incitar a aglomeração, criticar o uso de máscaras, combater o isolamento social e negligenciar a distribuição de vacinas à sua população.
Nosso filme chega nesse momento a um anticlímax horroroso, com mais de 300 mil mortos. Com o país afundado na idiocracia, numa guerra boçal da presidência contra os fatos, a ciência e a história. Chafurdado no fanatismo religioso, na cegueira ideológica, na burrice política, no autoritarismo e na perversão de um governo inepto e truculento, inoperante e criminoso.
Me pergunto: é possível que alguém ainda esteja gostando do que está sendo exibido na tela?
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Cenas dos próximos capítulos?
Olha, quem financia esse filme somos você e eu. No fundo, é a gente que aprova o roteiro e escolhe o diretor.
Para mim, essa produção que afunda já há quase uma década traz uma lição principal: é muito difícil incensar heróis no Brasil. Nossos próceres não nos permitem continuarmos sendo ingênuos a esse ponto
Não temos mais o direito de bater palmas sem o receio de estarmos sendo cúmplices de um pilantra. Nem de levantar uma bandeira sem o medo de estarmos sendo vítimas de um engodo.
Em certo sentido, isso é ótimo: temos tido todas as evidências, ano após ano, eleição após eleição, de que não existem salvadores da pátria. Nem de um lado, nem de outro – e muito menos entre os que se escondem no centro.
Se continuarmos acreditando nesse tipo de lorota, e procurando esse tipo de ilusão em nossas escolhas, não poderemos reclamar depois (a ninguém além de nós mesmos) pelas monstruosidades que viermos a confirmar nas urnas.
Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores.
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