A frase soou-lhe mais como aviso do que qualquer outra coisa. À época, ele morava com os pais – um agricultor e uma dona de casa – e cinco irmãos, num casebre de taipa, em Pitombeira, no interior do Ceará.
O mundo ensinou. E tudo indica que Albecir aprendeu. No mês passado, sua rede de supermercados apareceu no Ranking 2024 das 300 Maiores Empresas do Varejo Brasileiro, elaborado pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) e que tem como patrocinadora master a Cielo. Com faturamento de R$ 460 milhões em 2023 (alta de 13% sobre 2022), o Supermercado Moranguinho ficou em último lugar na lista, que tem como líder o Grupo Carrefour, que faturou R$ 115,4 bilhões (+7%).
Até tornar-se empresário de sucesso, presidente de uma rede que inclui 15 supermercados, espalhados em seis cidades do Ceará, e um centro de distribuição, Albecir, hoje aos 55 anos, apanhou muito da vida. Ou do mundo, como diria sua mãe, dona Aldacir. Na infância, a lida era dura demais para todos na família.
Às 5h da matina, o pai, seu Raimundo, já estava na roça e a mãe, se virando para cuidar dos seis filhos. A comida era sempre contada e, depois de completar 7 anos, nenhuma criança ganhava mais nada do pai. Nada. “Nem uma cueca”, disse Albecir.
Quem tivesse tamanho e força suficientes para pegar na enxada – o que costumava acontecer por volta dos 6 anos –, ia ajudar o pai na lavoura.Naquel e cenário, o garoto não conseguia enxergar possibilidades de melhorar de vida. Por isso, decidiu ir embora de casa. Mesmo com apenas 12 anos e sem saber ler nem escrever – ele nunca concluiu o Ensino Fundamental –, sentia-se preparado para enfrentar o mundo.
E lá foi Albecir, perder o pouco que lhe restava da infância para viver uma vida de adulto. Imaginava que seria difícil. Mas não esperava que fosse tanto. O mundo ensinou da forma mais árida que poderia. Do dia em que saiu de casa até seus 16 anos, Albecir passou pelas mais árduas situações e fez de tudo o que podia para ter ao menos o que comer.
FOME
Por meses, teve de dormir na rua, nas praças, calçadas. Onde lugar houvesse para se deitar à noite, lá estava ele. Os jornais velhos que o vento soprava pelo chão serviam-lhe de lençol. Para ganhar uns trocados e não morrer de fome, catava tudo o que encontrava e que tivesse algum valor. Vendia papelão, pedaços de cobre, lata velha, garrafas.
Passou, também, a ajudar vendedores no mercado público da cidade. Nem sempre o dia era produtivo o bastante para que pudesse comprar comida para três refeições. Perdeu as contas das noites nas quais teve dificuldade para dormir, tamanha a fome que sentia. O estômago gritava, implorando por algum alimento, mas não tinha nada.
Mesmo nesses momentos, não se arrependia de ter saído de casa e seguia acreditando que, com trabalho e persistência, sairia daquela situação. O primeiro sinal de alívio para sua vida severina surgiu aos 15 anos, quando, trabalhando como camelô, teve condições de alugar um quarto numa pensão. Tinha, enfim, um teto.
“Eu me sentia orgulhoso por poder pagar um lugar para morar”, afirmou. “Nessa época, comecei a sonhar em, um dia, ter a minha lojinha.” Albecir lembra que, nesse período, costumava acordar às 4h da madrugada e ia para o mercado público, vender frutas. Começou a percorrer outras cidades, dentro de ônibus lotados, revendendo mangas nas paradas. Saía sempre numa quinta-feira e voltava no domingo. “Chegava a vender até 600 mangas em cada viagem.”
Cerca de um ano mais tarde, teve uma experiência que seria fundamental para seu futuro profissional: foi trabalhar na bodega do seu avô materno, em Pitombeira. Ali, aprendeu a fazer contas, a atender à clientela e aperfeiçoou suas técnicas de venda.
“Foi naquela bodega que aprendi a ser vendedor de verdade”, disse. Até que o avô achou que os rendimentos do lugar não eram o bastante para bancar o salário do neto. Aquele dia ficaria para sempre gravado na memória de Albecir.
“Era 6 de março de 1988. Por volta das 14h, meu avô me disse que eu tinha de ir embora.” Como ele estava morando com os avós, ficou, de uma só vez, sem trabalho e sem casa. Acabara de completar 19 anos.
BOTEQUIM
Pelo menos, não saiu com as mãos abanando. Como indenização, recebeu 420 cruzeiros, o que significava menos de 10% do salário mínimo da época (em torno de 6 mil cruzeiros). Pegou o dinheiro todo e entregou nas mãos de um tio que o convidara a abrir um botequim. O lugar vendia cerveja, cachaça e petiscos.
Por iniciativa própria, Albecir começou a comprar outros produtos – como açúcar, arroz e feijão – e revendia um pouco mais caro. As coisas estavam indo bem. O botequim crescia e começava a ganhar ares de mercadinho. Mas ele queria mais. Queria algo só seu. Decidiu sair do botequim e abrir o primeiro negócio próprio.
Estava com 22 anos quando inaugurou sua mercearia, que não tinha nem nome. Funcionava num cubículo de 10 metros quadrados e vendia praticamente só alimentos e bebidas. Sem dinheiro em caixa, contava com a bondade de alguns donos de armazéns da região.
“Eles me vendiam os produtos fiado e eu pagava quando podia”, disse Albecir. “Quem foi camelô não tem medo de dever.” Nessa época, seu dia começava às 4h da matina. Acordava, passava uma água no rosto, tomava café e seguia para a mercearia. Às 5h, as portas já estavam abertas. Só ia dormir às 23h, quando o último cliente – geralmente um beberrão local – ia embora cambaleando.
Foram cerca de dois anos nesse ritmo. E gastando o mínimo que podia, para juntar o máximo de dinheiro possível. Até que, já em meados dos anos 1990, vendeu o ponto para dar mais um salto: iria construir um supermercado. Investiu toda a verba que amealhara até então na compra de um terreno. Faltava-lhe, no entanto, dinheiro para a obra.
Foi alvo da generosidade do dono de uma loja de materiais de construção. “Pegue o que você precisar. Depois, você me paga”, ouviu do sujeito. “Deus sempre me abençoou muito por meio de várias pessoas que passaram pela minha vida”, afirmou Albecir. Assim, conseguiu erguer seu primeiro mercado, que ocupava uma área de 72 m². O estabelecimento ficava no térreo e a casa dele – uma quitinete –, no andar de cima.
INCÊNDIO
Batizado de Mercadinho São Francisco, o lugar cresceu rapidamente. Em menos de quatro meses, Albecir já tinha três funcionários – hoje, 1.680 pessoas trabalham em toda a empresa. Os negócios iam bem. Pela primeira vez na vida, sentia que os dias de aridez haviam acabado. Já fazia planos de usar o dinheiro que estava economizando para abrir outra unidade, quando uma tragédia deu-lhe uma rasteira. Um incêndio destruiu seu mercado. “Perdi tudo.”
O desespero ameaçou dominá-lo, mas ele não esmoreceu. Vendeu o terreno e juntou a verba ao montante que já tinha. Comprou outro espaço e construiu um supermercado ainda maior, com quase 100 m². Era a primeira unidade do Moranguinho, erguida na cidade de Pacajus, em 2002.
Hoje, são 15 lojas, das quais quatro foram inauguradas apenas no ano passado. Para este ano, ele planeja aumentar o faturamento em 10%, chegando a pouco mais de R$ 500 milhões. E quer seguir crescendo. Os planos para 2025 incluem a abertura de mais cinco unidades e elevar o faturamento para R$ 560 milhões. “Não podemos parar de crescer”, disse Albecir. “Mas sempre com os pés no chão e sem perder o foco nos nossos clientes, que são o que mais importa.”
Dos tempos difíceis, ele mantém alguns hábitos. Anota tudo numa agenda – diz que não tem intimidade com computadores –, faz todas as contas numa calculadora e ainda vende fiado. “Mas só aos fregueses mais antigos e apenas na nossa matriz, em Pacajus.” Para esses clientes, ele oferece até transporte. Do dia 29 de um mês até o dia 10 do próximo – época de pagamento –, um ônibus sai da sede do Moranguinho e vai buscar os fregueses em casa, nas localidades mais distantes. Finalizadas as compras, o motorista leva todo mundo de volta.
E por que uma empresa que aparece como uma das 300 maiores do varejo nacional faz esse tipo de coisa e ainda vende fiado? Casado com a mesma mulher há 31 anos e pai de uma filha, de 23, Albecir responde, com sua voz mansa:
“Muita gente me ajudou quando eu precisei”, disse. “Acho justo que eu também ajude a quem precisa. Principalmente, os meus clientes mais antigos.” O mundo ensinou. Ele aprendeu.
Por Klester Cavalcanti
Fonte: Diário do Comércio
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