Alinhar a vida profissional a conceitos de sustentabilidade já incorporados ao cotidiano – como ingerir alimentos orgânicos, reciclar o lixo e usar bicicleta como meio de transporte – foi o que impulsionou as gaúchas Adriana Tubino, 37 e Itiana Pasetti, 28, a abrirem a Vuelo, uma marca de mochilas e acessórios feitos de câmara de pneus e nylon de guarda chuva, materiais que, normalmente, são pouco ou nada reaproveitados. E vão para o lixo.
Amigas de Porto Alegre, cidade onde moram e fica a sede da Vuelo, elas trabalhavam nas áreas em que tinham se formado (Adriana é publicitária e Itiana, estilista) quando tiveram uma conversa que mudaria o rumo das coisas.
“Vimos que éramos complementares tanto profissionalmente quanto nos desejos que tínhamos. Então resolvemos trabalhar com o excesso de lixo, que era uma questão que nos incomodava bastante. Em Porto Alegre, a coleta seletiva funciona muito bem, já separávamos o lixo e tentávamos e entender como funciona a cadeia”, conta Adriana.
Nessa época, cerca de cinco anos atrás, Itiana trabalhava com moda e já tinha trocado o mercado convencional pelo da sustentabilidade. “Comecei a fazer consultorias de moda consciente. Eu atendia os clientes pensando no guarda-roupa deles, em como reinventar e transformar o que já tinham em vez de comprar peças novas. Foquei em moda sustentável porque queria me orgulhar do mercado em que trabalhava ”, diz ela.
Adriana, que já que tinha passado por agências de publicidade (foi redatora e diretora de arte) e produtoras de vídeo, estava trabalhando em um estúdio de design e internet que abriu com alguns amigos. “Foi meu primeiro momento de empreendedora, de experimentar fazer o próprio negócio e fiquei lá por 10 anos. Mas eu sentia que o caminho estava na sustentabilidade porque era algo que eu já vivia fora do trabalho. Abrir a Vuelo foi buscar essa coerência”, conta Adriana.
LIXO EXTRAORDINÁRIO
A Vuelo nasceria para o mundo como um e-commerce, em 2013, vendendo cinco produtos – hoje, são nove. A pesquisa de materiais foi parte essencial do processo embrionário da empresa, que durou quase três anos e foi tocado como projeto paralelo das sócias. O produto de estreia já tinha sido definido naquela primeira conversa, em 2010: elas criariam uma mala de mão para viagens de fim de semana – a Weeekend Bag da marca, vendida a 498 reais –, um projeto engavetado havia anos por Adriana. A habilidade de desenvolvimento de Itiana era a peça que faltava para a ideia ganhar vida, para a pesquisa virar produto.
Como matéria prima principal, elas buscavam um material que tivesse as mesmas características estéticas e funcionais do couro – dispensado por uma questão de conceito e princípios. Chegaram a pensar em usar o látex da seringueira (que é uma espécie de couro natural) ou algodão, até que chegaram à câmara de pneu.
“Visualmente, ela parece com o couro e resolve tudo o que a gente precisa em termos estruturais e de costura, resistência. E ainda tem uma característica super bacana que é ser resistente à água, já que é borracha. Muitas pessoas que vêem nossos produtos de longe acham que é de couro”, diz Itiana.
Além da Weekend Bag, todos os produtos da Vuelo são feitos do mesmo material. Entre eles, a Mochila padrão (398 reais), a Mochila Casca (138 reais) e a capa de iPad (118 reais).
Atualmente, a Vuelo compra câmaras de pneu em borracharias – gerando renda sobre um produto que até então não tinha mais serventia para os borracheiros – e hoje tem o apoio de uma empresa nessa captação. O único tratamento que as câmaras necessitam é higienização. No começo, a lavagem era feita manualmente, por famílias de baixa renda contratadas como forma de inclusão social. Quando o volume passou a ser maior, elas se deram conta do desperdício de água e agora a lavagem que é feita em uma lavanderia industrial com licença ambiental, cujas máquinas fazem captação de água da chuva e usam sabão biodegradável.
O processo seguinte, que inclui montagem, corte e costura é praticamente o mesmo utilizado em produtos de couro e feito por um ateliê de produção terceirizado. “Há algumas adaptações técnicas que fomos aprendendo junto com o pessoal da produção”, diz Itiana.
Uma outra pesquisa, em paralelo, foi feita para encontrar o material que serviria de forro para as bolsas. Nesse processo também entrou muita observação. “Começamos a ver que havia um descarte excessivo de guarda-chuva, o que significava matéria-prima em abundância. Além disso, o nylon do guarda-chuva é impermeável e há tecidos interessantíssimos, coloridos, com padrões que dificilmente se repetem”, conta Adriana.
Assim, a empresa passou a comprar o nylon das Unidades de Triagem (UTs), locais para onde vai o lixo seco, reciclável, recolhido em Porto Alegre. Elas contam que demanda da Vuelo deu início a um processo integral de reciclagem de guarda-chuvas – até então, o produto ia diretamente para os aterros. Adriana diz que, quando começaram a usar o nylon dos guarda-chuvas como matéria-prima, elas descobriram que a parte interna também poderia ser reutilizada porque as hastes de metal têm o mesmo reuso que o alumínio. Hoje, as UTs desmontam os guarda-chuvas e separam o nylon da ferragem, comprada por empresas que fazem reciclagem de latas de alumínio. Ela conta:
“Foi muito bacana porque a gente pôde introduzir renda para algumas famílias que hoje se sustentam da venda de um material que ia para o lixo”
Com materiais definidos, era hora de fazer testes para ver se os produtos que elas tinham concebido iam funcionar. Neste ponto, para seguir adiante, elas precisavam de dinheiro extra. Foi quando se depararam com a necessidade de montar um plano de negócio, pedido por uma amiga interessada em investir do projeto. “Fomos atrás do processo do canvas mesmo, do Design Thinking. Entendemos como estruturar o negócio e vimos que teríamos que ter mais dois investidores para iniciar uma pequena produção e tudo que envolvia isso”, lembra Adriana.
DE ANJOS E CLIENTES VOADORES
Corria o ano de 2012 e a Vuelo já estava quase pronta para decolar. Com três investidores anjo (a amiga e duas pessoas trazidas por ela) e os 150 mil reais levantados – que contemplavam as contas pessoais de Adriana e Itiana durante algum tempo – , as duas sócias puderam sair de seus empregos para se dedicar à Vuelo em tempo integral.
Nesses dois anos de operação, a Vuelo praticamente se sustentou sozinha. A partir do ano passado, começou a se pagar. Já o modelo de negócios teve mudanças ao longo do tempo. “Conversando com outros empreendedores vimos que o modelo de negócio sempre muda e com a gente não foi diferente Muita coisa seguiu igual, principalmente em relação aos conceitos. Mas em termos do business, da rapidez e do tipo do retorno, isso foi mudando bastante”, conta Itiana.
O ateliê de montagem é também escritório e funciona como showroom da marca. Alguns clientes, chamados por elas de vuelistas (“pessoas que querem voar com a gente”), aparecem para visitar ou conhecer os produtos vendidos online. É preciso marcar horário mas o contato pessoal é bastante bem vindo. Itiana fala dessa relação:
“A gente acredita que nossos clientes são mais que compradores atrás de produto. Vendemos um conceito de sustentabilidade, de repensar. São pessoas que se engajam nessa proposta”
Adriana concorda e diz que quando estavam fazendo o canvas sentiram um certo desconforto ao ter que definir o público alvo. “O próprio termo é ruim, como se a gente fosse mirar e acertar em alguém. Nossa ideia era poder fazer um projeto pensando em primeiro lugar no que a gente gostaria de comprar por isso nos colocamos como público alvo e é assim até hoje”, conta.
Elas acreditam que estão participando de um novo mercado, tanto na parte de produção como na parte de venda, e que também fazem parte de uma nova formação de consumidor, muito mais consciente. Um cliente que ajuda a definir até mesmo mudanças nos produtos, já que as sugestões costumam entrar na pauta de mudanças. Isso tem a ver também com a forma como elas produzem, sempre em pequenos lotes. “Se recebemos um feedback, conseguimos adaptar já para os próximos lotes. Os produtos são aperfeiçoados a cada produção. Um bolso para o qual não dávamos tanta atenção pode ser super importante para uma pessoa. É bastante detalhe”, conta Itiana.
Todos os produtos da Vuelo têm uma tag que descreve todo o processo de produção e explica que, no final da sua vida útil, o produto pode ser reencaminhados para a própria empresa, que dará a destinação correta. Em vez de irem para o lixo comum, há uma nova reciclagem: serão triturados para se transformar em matéria-prima para asfalto, para-choque de carro e isolamento acústico, subprodutos que já são produzidos, hoje, a partir da câmara de pneu moída. “A ideia é evitar que algo tirado do lixo volte facilmente para lá. Isso depende do engajamento dos nossos vuelistas, por isso apostamos nessa relação próxima com eles. Se eles não entenderem e não se sentirem parte do processo, essa logística reversa não acontece”, diz Adriana.
ALÉM DO “VUELISTA”, ELAS TAMBÉM QUEREM OS CLIENTES CORPORATIVOS
Como parte do conceito inicial, de ser mais que um e-commerce de produtos, a Vuelo tem, desde o fim do ano passado, um braço corporativo, com produtos e serviços para empresas, que se subdividem em três possibilidades.
Na primeira, chamada Ação e Reinvenção, a Vuelo utiliza seu know how para reciclar e reinventar resíduos gerados pelo contratante transformando-os em novos produtos que possam ser utilizados na própria empresa pelos funcionários. No primeiro projeto realizado dessa forma, uniformes que não eram mais utilizados viraram bolsas e cases de notebook. O papel da Vuelo é de consultora, e a produção fica por conta do cliente que, neste caso, apoia mão de obra social de uma comunidade de costureiras. “A ideia é dar consultoria e fazer nessas empresas o que que a gente faz com a Vuelo. E isso nasceu porque as empresas começaram as nos procurar ”, conta Itiana.
A segunda possibilidade é que as empresas façam parceria com produtos que a Vuelo já tem – nesse caso, a marca possui uma linha corporativa específica – com ambas assinando os produtos. Na terceira hipótese, a Vuelo pode criar, com matéria-prima própria, produtos sob demanda, de acordo com um briefing passado pela empresa.
Neste ano de 2015, a novidade ficou por conta da consumação de um namoro da dupla com a Yunus Negócios Sociais (iniciativa mundial do professor indiano Muhammad Yunus que, em 2006, ganhou o Nobel da Paz por seu trabalho com microcrédito). Em uma visita à sede brasileira da Yunus, em São Paulo, as gaúchas inscreveram a Vuelo no processo de aceleração – que começou em maio e termina mês que vem – e foram uma das seis selecionadas entre 80 inscritos. “Diria que foi uma das melhores coisas que nos aconteceu nesses dois anos porque nos sentíamos um pouco sozinhas já que esse tipo de mercado é muito novo. Agora encontramos nossa turma”, diz Adriana. A Vuelo passou a ser, oficialmente, um negócio social — e agora está apta a voos cada vez mais altos.
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