Por: Geraldo Samor
“O papel aceita tudo”. Foi o que primeiro me veio à cabeça quando li a carta de meus colegas (entre os quais, alguns amigos) publicada nos principais jornais do país na sexta-feira, na forma de um informe publicitário “em repúdio ao regime de supressão episódica de direitos e garantias verificado na operação Lava Jato”.
Fiquei incomodado com o tom intimidatório, a falta de transparência (não se sabe até agora quem pagou pelo anúncio), a generalidade dos argumentos, o caráter de autopromoção, e, principalmente, a falsa defesa do Estado de Direito.
Afirmando que direitos e garantias fundamentais dos acusados estariam sendo sistematicamente violados, os signatários preveem “consequências nefastas para o presente e o futuro da justiça criminal brasileira”, comparam o processo a uma espécie de inquisição, dizem que o Estado de Direito está sendo deixado de lado, acusam os juízes e investigadores de parcialidade, chegando ao cúmulo de dizer que estamos diante de um “justiçamento”, “como não se via nem mesmo na época da ditadura”.
Para entender como a carta é uma afronta à nossa evolução histórica, cabe aqui uma retrospectiva, talvez muito simplista, mas essencial.
Muito em razão do cinema e da televisão, o Direito Penal sempre exerceu grande fascínio sobre os estudantes de Direito. Em meus tempos de faculdade, fui aluno de grandes e famosos criminalistas e testemunha da mística em torno deles, não apenas porque eram grandes oradores e atuavam em processos de grande repercussão, mas pela relevante atuação que tiveram nos tempos do regime militar, lutando pela liberdade de presos políticos, detidos arbitrariamente e com reduzidas chances de defesa.
Ser promotor e juiz durante o regime militar, acreditem, não era nada cobiçado. Não apenas a remuneração do serviço público não era tão boa, mas também a estabilidade (no caso de juízes e promotores, vitaliciedade) não era algo que atraía tanto os recém-formados bacharéis.
Era compreensível que, em um país com uma democracia e uma Constituição ainda muito novas, houvesse uma exacerbação das garantias dos acusados e uma justa desconfiança com relação ao Estado e, principalmente, às polícias. O Ministério Público, erigido à condição de instituição autônoma e independente pela Constituição de 1988, tratado como função essencial à Justiça e não mais vinculado ao Poder Executivo, começava a conquistar o prestígio e o reconhecimento da sociedade.
Mesmo assim, quem contava com um bom advogado dificilmente era condenado criminalmente. Prisão? Apenas para pobres e pretos, com raras exceções. Eventuais condenações em primeira instância muitas vezes eram anuladas em instâncias superiores (compostas por juízes mais antigos, em sua maioria) com base em tecnicalidades. A falta de estrutura do Judiciário e do Ministério Público não raramente permitia que a prescrição acontecesse. A enorme quantidade de recursos disponíveis e o entendimento de que a prisão só seria possível após o trânsito em julgado da decisão (que não acontecia nunca, se o condenado contasse com bons advogados) contribuíram, historicamente, para a sensação difusa de impunidade. Interceptações de conversas telefônicas e quebras de sigilo bancário, embora autorizados, eram posteriormente considerados inadmissíveis e, assim, as provas nunca eram tidas como suficientes para a condenação (especialmente nos crimes de corrupção e correlatos).
Não demorou muito para que as carreiras do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia – agora estruturadas, com plano de carreira e boa remuneração, garantia de autonomia financeira e operacional – passassem a ser objeto de desejo dos bacharéis e os concursos públicos para nelas ingressar se tornassem disputadíssimos. Uma nova geração de promotores, juízes e delegados — dotados de altíssima competência técnica e comprometidos na luta contra a impunidade — começou a trabalhar, oxigenando as instituições.
Foi nesse ambiente de instituições funcionando a contento e de ampla liberdade de imprensa que se deu o julgamento da Ação Penal 470, o processo do Mensalão, considerado um ponto fora da curva por destoar em alguns aspectos da jurisprudência que havia até então. O fato de ele ter acontecido diretamente no STF (em instância única, portanto), evitou que o processo se arrastasse por longos anos e reduziu as possibilidades de recurso dos acusados, já que todos os temas foram enfrentados diretamente pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário.
Muitos advogados criminalistas gritaram contra isso, valendo-se de bons e jurídicos argumentos. De minha parte, acho que o inadmissível era a tendência condescendente que então vigorava. O papel do ex-Ministro Joaquim Barbosa – um Ministro improvável, vindo do Ministério Público, levado ao cargo por motivos diferentes dos da maioria dos outros ministros, que não teve que se submeter à tradicional peregrinação em gabinetes de Deputados e Senadores para pedir apoio à sua nomeação — foi decisivo para a bem-vinda mudança do paradigma.
Mesmo não sendo um especialista em Direito Penal, a parcialidade dos argumentos desta “Carta Aberta” parece-me gritante. Sinto-me particularmente ofendido por este documento – que nada mais é que uma defesa fora dos autos — tentar se passar por defesa do próprio Estado de Direito, e acho sintomático que a OAB e outros conceituados advogados que atuam na Lava Jato não tenham endossado este protesto.
Não, colegas advogados! Nada do que está acontecendo pode ser comparado a uma ditadura. Está na hora de entender que o país mudou e não suporta mais a impunidade que imperava. A presunção de inocência cede diante de indícios robustos da participação em atividades criminosas e, principalmente, diante de uma condenação em primeira instância. Não se admite mais que um Senador da República, valendo-se do seu cargo, flagrado planejando a fuga de presos e condenados, seja deixado em liberdade. É evidente a necessidade da prisão cautelar de indivíduos que continuam tramando a destruição de provas e os saques ao país. O direito à privacidade e à intimidade não devem levar necessariamente à inadmissibilidade das interceptações de telefonemas e trocas de mensagens. O sigilo bancário cede diante de sinais injustificados de riqueza. Definitivamente, estas mudanças não colocam em risco o Estado de Direito, muito pelo contrário: finalmente começamos a ver a lei penal ser aplicada a todos, indistintamente.
Embora o risco de cerceamento de defesa seja real em qualquer processo, o que vimos até aqui é o oposto disso. Os acusados, mesmo os presos, tiveram a seu dispor toda a variedade de recursos. As decisões foram referendadas pelos Tribunais Superiores (TRF, STJ e STF) de modo que as acusações de “justiçamento” não podem ser imputadas a um pequeno número de promotores ou juiz. Inferir que Ministros do STJ e do STF estejam julgando por pressão da mídia é tão ofensivo quanto absurdo. A comparação deste processo com o que ocorria nos tempos da ditadura é indecente e faria corar os criminalistas que contra ela lutaram.
Em um país que enfrenta uma crise moral, econômica e política, é lamentável que alguns se manifestem não contra as normas absurdas que ainda permitem a impunidade (como é o caso da que garante ao acusado que completa 70 anos uma prescrição mais breve), e tentem, por interesse próprio ou de seus clientes, macular a imagem do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, valendo-se do mesmo artifício que a carta condena: a manipulação da opinião pública.
Bruno Resende Rabello é Doutor pela Faculdade de Direito da UFMG e Procurador do Estado de Minas Gerais.
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