Nicholas Carr escreveu um livro ímpar, uma obra-prima sobre uma revolução tecnológica, cultural e biológica que nos deixa cada vez mais distantes dos... livros. Este aparente paradoxo resume grosseiramente o conjunto de ideias mais perturbador com que tive contato nos últimos tempos.
Desde seu provocativo ensaio Is Google Making Us Stupid?, publicado em meados de 2008, Carr vem discutindo a forma como a
Internet e sua ubiquidade vêm transformando não só a maneira como vemos o
mundo, mas também nossos relacionamentos e, em última instância, nossos
cérebros.
Em The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains (W. W. Norton & Co., 2010 - disponível também na Livraria Cultura), Carr constroi sobre o tema de forma magistral. Ele contextualiza o
assunto através das várias revoluções ocorridas desde que começamos a
viver em comunidade concentrando-se, ainda, nas mudanças relacionadas
com o armazenamento e a transmissão do conhecimento.
Antes da escrita, conta o autor, todo o conhecimento acumulado por uma geração era transmitido à seguinte de forma oral. A quantidade de
informação limitava-se, portanto, à memória das pessoas, ajudada por
rimas e canções, mas atrapalhada por versões e interpretações.
Da pedra para o papel, a escrita também experimentou importantes alterações, que hoje parecem inimagináveis. Como ainda representava a
derivação de uma tradição oral, a leitura era feita em voz alta. Parte
disso era para tentar entender o que o emaranhado de letras significava,
já que não havia espaços entre as palavras, tampouco regras gramaticais
ou de sintaxe definidas.
Somente quando a escrita passou a ser padronizada e os espaços foram introduzidos, o leitor pôde dedicar-se mais ao próprio significado do
texto do que ao ato de decifrá-lo. A leitura passava a ser, neste
momento, um exercício de introspecção e reflexão, criando uma ética toda
própria, abrindo caminho e disponibilizando as ferramentas para as
revoluções culturais seguintes.
As inovações posteriores trataram de difundir e popularizar a escrita e a leitura. Tanto a prensa de tipos móveis de Gutenberg quanto o
barateamento da produção de papel impulsionaram o mercado editorial,
multiplicando o volume dos textos impressos. Quantidade e qualidade
estabeleceram indústrias seculares e resistiram à chegada do gramofone,
do cinema, do rádio e da televisão.
De acordo com Nicholas Carr, no entanto, o livro está prestes a sucumbir à Internet. Mas ainda que esta afirmação pareça lugar-comum a
cada lançamento de e-reader, os motivos apresentados pelo autor
são diferentes e muito, muito preocupantes. Para ele, a dinâmica da
Rede vem alterando os mais básicos processos cognitivos envolvidos na
leitura, inclusive em nível biomolecular.
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Antes de prosseguir com suas idéias, Carr precisou destruir um dos mais arraigados - e errados - mitos sobre o cérebro humano: a falácia de
que ele se define inteiramente nos primeiros anos de vida. A maior
parte da nossa estrutura neuronal constitui-se nesta fase, de fato, mas
diversos estudos recentes comprovam que novas conexões podem ser
formadas, desde que haja estímulos para isto - do mesmo modo que
estruturas ociosas também são desfeitas.
Na vida real, Tarzan e Mowgli jamais aprenderiam a falar
Pacientes que tiveram áreas do cérebro comprometidas por traumas ou tumores conseguiram que outras regiões saudáveis assumissem suas
atividades, reforçando a tese da neuroplasticidade.
Mas assim como esta flexibilidade ameniza, em certo grau, o determinismo genético, as habilidades abandonadas desde cedo podem ser
irremediavelmente perdidas, conforme suas estruturas são redirecionadas.
Ainda que a desatenção seja o estado natural do nosso cérebro (resquício de ter que cuidar das crianças, espreitar a caça e se
proteger do tigre-dente-de-sabre ao mesmo tempo), nos últimos quinhentos
anos conseguimos nos reeducar para realizar atividades intelectuais
mais complexas.Tais alterações não ocorrem no âmbito genético, mas
através da educação e convivência, moldando o cérebro de acordo com as
necessidades específicas de cada indivíduo, cada contexto.
As últimas décadas, porém, parecem ter iniciado a reversão deste processo. Quando uma página de Internet nos bombardeia com banners, pop-ups, cores, sons, vídeos e outras distrações - além dos onipresentes emails,
mensagens instantâneas, SMS, BlackBerries e iPhones - está minando
nossa capacidade de concentração. Ler um texto com hyperlinks implica perguntar-se constantemente se devemos clicar ou não - e o mesmo vale para banners, pop-ups e que tais. Percorrer a tela com um mouse demanda uma atividade motora mais complexa do que virar páginas.
Navegar na Internet requer, portanto, uma série de atividades cognitivas que concorrem com a interpretação e processamento daquilo
que se lê. Isto consome, por conseguinte, boa parte da nossa memória de
trabalho, dificultando sua posterior transformação em memória de
longo-prazo.
A acelerada dinâmica da Internet promove, paulatinamente, o estilhaçamento da nossa atenção, comprometendo-a não apenas enquanto
estamos online. A outrora agradável leitura de um livro
tornou-se, para muitos, um impossível exercício de concentração. Quando
perde-se o foco, vai-se também a capacidade de raciocinar de forma
coerente e criativa. A festejada plasticidade neuronal representa,
então, uma via de duas mãos, pois os maus hábitos podem ser incorporados
tão facilmente quanto os bons.
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Em algum momento na história humana, determinadas tecnologias tiveram impactos profundos em nossa forma de pensar e enxergar o mundo, mudando
nossa percepção da realidade. Com o advento dos mapas, aprendemos a
representar o que não víamos, identificar o que não conhecíamos. Em
ambos os casos, desmaterializamos o raciocínio e passamos a exercitar o
pensamento abstrato.
Com os mapas, passamos a desenhar o que não víamos
Com o relógio mecânico - ou o ato de observar a passagem do tempo - dividimos nossa existência em pedaços sincronizados e localizados dentro
da eternidade.
Nossas rotinas assumiram o caráter mecânico, científica e rigorosamente cronometradas pelo instrumento recém-criado. Como o rabo
que balança o cachorro, o instrumento passou a determinar o que medir.
Ambos os exemplos representam caminhos sem volta. A adoção de novos instrumentos inibe algumas das habilidades substituídas - e estas podem
ser perdidas para sempre.
Em seu clássico Understanding Media: The Extensions of Man Marshall McLuhan já alertava que este tipo de problema poderia
acontecer, na medida em que o foco da mensagem migra para o meio em que
ela transita. Nos idos de 1964 McLuhan escreveu que nossas ações e
pensamentos sofrem mais influência do meio de comunicação do que do
próprio conteúdo, no longo prazo. Para ele, "[Os] efeitos da tecnologia
não ocorrem no nível das opiniões e conceitos, mas na alteração de
padrões de percepção, de forma contumaz e sem resistência".
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Esta nova relação com o texto escrito parece não chamar a atenção porque as mudanças foram sutis e graduais. Além disso, procuramos
prestar atenção apenas no que lemos - e não na forma como lemos. Mas as
publicações de hoje têm mais fotos e menos textos. Quantas páginas de um
livro você consegue ler de uma vez? Aliás, você ainda lê livros*? E
quando foi a última vez que escreveu um texto no papel, sem um editor de
textos? Foi fácil?
Claro que a evolução da tecnologia traz também enormes benefícios, como mais acesso a um número maior de obras. Outra vantagem apontada por
Carr é que com a possibilidade de constantemente revisar e editar sua
obra, o autor não tem mais a pressão de escrever um texto perfeito logo
na primeira tentativa.
Nada disso vale, contudo, se ninguém quiser ler. Se ninguém tiver paciência para chegar até o final de um texto que precise de mais de
dois Page Downs. Ou se o autor - que também é leitor - não conseguir sair da superficialidade em que todos parecem estar se afogando.
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* O mesmo problema da impaciência para ler livros ocorrerá também com os e-readers, já que a dificuldade está em concentrar-se. Aliás, na medida em que tais dispositivos incorporam as características da Rede (links etc.), passam a ter os mesmos obstáculos à uma leitura mais tranquila.
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