Assim que for consolidado o julgamento do mensalão, no Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público do Trabalho vai utilizar a teoria do domínio do fato para buscar a responsabilização judicial de empresas que utilizam mão de obra escrava.
Na mira estão empresas que comandam as respectivas cadeias produtivas, mas terceirizam a produção justamente para tentar se dissociar da responsabilidade da contratação de funcionários que trabalham em condições análogas à da escravidão.
Entre os setores investigados pelos procuradores, e nos quais eles dizem ser comum a prática, estão o da construção civil, o de frigoríficos, o sucroalcooleiro, de fazendas e vestuário. A título de exemplo, só nos últimos dois anos viraram alvo de operações do Ministério Público a construtora MRV, maior parceira do governo federal no programa Minha Casa, Minha Vida, a grife multinacional Zara e o grupo GEP, detentor das marcas de roupas Luigi Bertolli, Cori e Emme.
Todas essas empresas estão no topo de cadeias produtivas nas quais auditores e procuradores do trabalho encontraram o uso de mão de obra escrava durante as operações - jornadas exaustivas de até 16 horas, pagamento por produtividade e moradia precária no mesmo local do trabalho. Todas terceirizavam a produção, subcontratando outras empresas que forneciam a mão de obra e o produto, e todas alegam que não tinham conhecimento das condições a que os fornecedores submetiam funcionários. As empresas sustentam que não podem ser responsabilizadas porque os funcionários não eram seus.
A súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, de 2011, proíbe a terceirização da atividade-fim das empresas. Significa dizer que uma fábrica de sorvete pode terceirizar atividades-meio do trabalho, como o serviço de limpeza, mas não pode terceirizar a produção do sorvete. Contudo, há questionamentos sobre ela no STF, que ainda não pacificou entendimento sobre o assunto.
Coordenador nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, o procurador Jonas Ratier Moreno refuta a tese das empresas do topo da cadeia em que foi flagrado o trabalho escravo. Ele é um dos entusiastas do uso da teoria do domínio do fato na acusação dessas empresas. "Será mais um material para a gente alegar. Esse julgamento (do mensalão) vem consolidar muitas posições, e principalmente essa. De que a empresa quando assume essa atividade, contrata alguém para produzir esse produto e coloca para vender, ela tem que saber que tem responsabilidade objetiva por esse produto", afirma.
Moreno diz também que as empresas "não podem dar uma de avestruz e não monitorar a cadeia produtiva", e utiliza o exemplo das confecções de roupa. "Pergunta: já que são confecção, onde está a fábrica? Vocês monitoram o produto? Não estão sendo negados direitos? Muitas vezes terceirizam para ter um produto barato. Em que condições se costura uma peça a R$ 0,20? Não pode alegar ignorância."
Amparo. A tese do coordenador encontra eco entre os pares. Chefe da instituição, o procurador-geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo, lembra que o Ministério Público do Trabalho já vem, desde meados da década de 1990, buscando a responsabilidade objetiva das empresas do topo das cadeias produtivas, e endossa o uso do domínio do fato como mais um instrumento jurídico para o Ministério Público do Trabalho. "Essa linha de argumentação vem à baila com muita força na medida em que é adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Você passa a ter uma jurisprudência muito significativa."
Os procuradores do Trabalho pretendem incentivar colegas de outras áreas a também usarem o instrumento.
Análise: Instrumento não é panaceia jurídica
Onde quer que haja um ilícito, há que se perguntar quem terá sido seu autor. Autoria é a relação que liga a ação de alguém a um resultado ilícito. No campo penal, autor do crime será o responsável pela produção do resultado que a lei preveja como passível de punição criminal.
Em muitos casos, o crime é cometido tendo o autor domínio da ação que resulta no ilícito. Quem porta a arma e puxa o gatilho tem domínio da ação homicida. Em outros casos, porém, a ação que diretamente leva ao resultado insere-se numa realidade mais complexa, com atores trabalhando em estruturas organizadas de poder. Nesses casos, o executor da ação pode ser instrumento, sendo autor quem controle o aparato de poder no qual ele, executor, está inserido. O executor domina a ação, mas o controlador domina o fato como um todo.
A possibilidade de imputação do ilícito ao controlador do aparato de poder é penalmente importante porque as regras de imputação criminal dependem muito de elementos pessoais, como intenção ou ciência de reprobabilidade da conduta. Em outros campos, onde a responsabilidade é menos presa à culpabilidade individual, não está claro como ela pode gerar ganhos na imputação de ilícitos a seus verdadeiros autores.
O domínio do fato não é um supertrunfo da responsabilização jurídica: não serve para punir mais e responsabilizar mais, e sim para refinar a imputação jurídica em casos particulares. Tratada como panaceia, produz certas injustiças a pretexto de corrigir outras.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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