A BBC News Brasil testemunhou o veloz funcionamento de softwares que coletam dados de forma automatizada | Ilustração: Kako Abraham/BBC
ara alcançar mais eleitores, campanhas políticas obtiveram neste ano programas capazes de coletar os números de telefones de milhares de brasileiros no Facebook e usá-los para criar grupos e enviar mensagens em massa automaticamente no WhatsApp.
Esse tipo de ferramenta custa até R$ 1.300 e é facilmente encontrado na internet, com nota fiscal ou mesmo pirata, evitando rastros em prestações de conta. Há dezenas de vídeos explicativos no YouTube e nos sites das empresas que oferecem esses serviços, acessíveis mesmo para quem tem pouca experiência com computadores.
Tradicionalmente, vendedores de empresas de cosméticos e nutrição eram os principais compradores desses aplicativos. Nestas eleições, a prática ganhou um novo público alvo: o eleitor.
A BBC News Brasil ouviu pessoas ligadas a diferentes campanhas, em condição de anonimato, entre as quais marqueteiros e militantes ligados a partidos políticos que relataram como usaram essas ferramentas em campanhas políticas, falou com empresas que vendem esses softwares e que registraram alta nas vendas durante a eleição e, ainda, com pessoas que foram adicionadas em um mesmo dia e sem consentimento a diversos grupos de WhatsApp de conotação política durante a campanha eleitoral.
A prática viola as regras de uso dos dados do Facebook e, para alguns especialistas, pode ser considerada crime eleitoral. À BBC News Brasil, o Facebook disse estar investigando o caso, e o WhatsApp disse estar levando a denúncia a sério e tomando medidas legais. O WhatsApp declarou ainda ter banido centenas de milhares de contas suspeitas neste período eleitoral (veja as respostas completas no fim desta reportagem).
Procurado, o TSE não esclareceu se a prática consiste em crime eleitoral.
Os usuários que podem ter tido seu número de telefone "garimpado" por esses programas têm esse dado em configuração pública.
A BBC News Brasil apurou que a técnica foi usada, ao menos, em campanhas de candidatos a deputado estadual, federal e ao Senado. Também já havia sido usada no pleito de 2016 por candidatos a vereador e ao menos um candidato a prefeito.
Com as redes sociais desempenhando um papel cada vez mais importante no cenário eleitoral, foi por meio delas que campanhas conseguiram dados da população para influenciar eleitores.
A reportagem testemunhou o funcionamento desses softwares. Quem opera o programa escolhe o público-alvo no Facebook (por palavras-chave, páginas ou grupos públicos) e dá início à coleta dos dados em uma planilha.
Em menos de dez minutos e de dez cliques, é possível reunir quase mil telefones de usuários, já segmentados por curtidas na página de determinado candidato, gênero e cidade, e criar automaticamente grupos com até 256 pessoas cada a partir da lista dos telefones coletados.
Os programas de envio automático de mensagens usam contatos de planilhas que os usuários adicionam ao sistema. A criação dessas listas usa, em geral, quatro estratégias: coleta de dados de usuários de redes sociais por meio de robôs, telefones informados voluntariamente por simpatizantes ou clientes, compra de bases de dados vendidas legalmente (como a da Serasa) ou furto de informações de empresas telefônicas.
Há 20 dias, período decisivo da campanha eleitoral do primeiro turno, uma dona de casa que mora no Grajaú, bairro da periferia da zona sul de São Paulo, disse ter acordado e visto que seu número de telefone tinha sido incluído em quatro grupos de WhatsApp. Em entrevista à BBC News Brasil, ela relatou que não conhecia nenhum dos membros ou administradores.
"Não sei onde encontraram meu telefone. Os administradores e algumas pessoas tinham números estrangeiros. Eu fiquei com medo. Saí de todos e denunciei todos os grupos para o WhatsApp", contou ela, que pediu para ter a identidade preservada por receio de represálias.
Direito de imagemGETTY IMAGESA dona de casa disse não ter colocado seu telefone em nenhuma lista de campanha política ou site, mas no Facebook, sim. Seu número era público.
"Depois de um ou dois dias, fui colocada em outros oito grupos. Todos com nome Bolsonaro 2018 ou Lula Livre 2030 (nome irônico, fazendo referência à pena total do ex-presidente). Isso nunca tinha acontecido comigo ou com nenhum outro amigo. Eu tirei print das telas e bloqueei todos também", disse ela à reportagem.
Um universitário de 23 anos que mora em Campinas, no interior paulista, relatou ter sido incluído nos últimos dois meses em três grupos que pareciam ter diálogos conduzidos por algumas pessoas.
"Era como se quatro deles guiassem o debate. Eles mandavam dezenas de memes e vídeos contra o PT todos os dias. As outras pessoas mandavam muito conteúdo também e aquilo se tornava uma loucura. Quem não concordava com ideias de extrema direita não suportava meia hora ali", afirmou o jovem que pediu para não ser identificado.
O caso da dona de casa ilustra uma técnica testada pelo marqueteiro Luiz Rodrigues Junior, da Agência Genius Publicidade, conhecido como Junior Brasa. Ele admitiu à reportagem ter usado bancos de dados para criar grupos e também para disparos individuais de mensagens pelo WhatsApp.
Junior afirma que sempre utilizou bancos de dados das próprias campanhas e que, por isso, a prática seria legal. Além disso, disse não ter investido mais no recurso pelos baixos resultados.
Afirmou ter aplicado a técnica da criação de grupos e "disparos em massa" na campanha de um candidato à prefeitura, há dois anos. Neste ano, disse ter usado apenas o recurso dos disparos na campanha de um candidato a deputado federal. Ele não quis revelar quem eram os clientes.
Segundo ele, grande parte dos adicionados sem consentimento acaba saindo dos grupos. Mas, quem permanece, se mostra um militante em potencial nas redes sociais.
"Não posso montar um grupo de apoio ao meu candidato, porque exponho ele. Começo a tomar pau ali e não tenho controle. Então, a gente montava grupos sobre eleição, tipo 'Fim da corrupção na eleição'. Aí, convidava um monte de gente pela ferramenta e botava no grupo", afirmou Junior.
"Metade (de quem era adicionado) já saía logo de cara e ficava (a outra) metade. E nesse grupo a gente infiltrava dois, três profissionais nossos, que começavam a mandar conteúdos de nosso interesse e provocar discussões nos grupos. E aí fazia isso em cadeia. Fazia isso em 50, 100 grupos", continua Junior.
Dependendo da qualidade do banco de dados usada, diz ele, é possível criar grupos só de mulheres, por exemplo com um tema ligado a elas. Ou um grupo formado só por moradores de um bairro específico, que tenha um problema específico para o qual o candidato da campanha tenha uma solução.
Segundo ele, a estratégia é bastante eficiente, mas, para dar certo, demanda um exército de pessoas para "conseguir debater no grupo e conduzir a opinião das pessoas".
Direito de imagemGETTY IMAGESEsses aplicativos, além dos números de telefone, também acessam dados que usuários deixaram públicos, como cidade onde moram, data de nascimento, email e número de telefone.
Por exemplo: uma amostra coletada a partir de um desses serviços reuniu os dados de 37 mil usuários que interagiram com posts ligados a um dos candidatos à Presidência - quase metade (18 mil) deles deixam seus números disponíveis de forma pública na rede.
Ou seja, na prática, candidatos podem agrupar segmentos específicos, como paulistanos defensores de armas ou soteropolitanas pró-aborto.
"O que meus programas fazem é o mesmo que uma pessoa faria o dia todo na rede. Se olhar os dados de alguém uma vez é considerado legal, por que fazer isso cem ou mil vezes seria ilegal? Os dados estão públicos. O Facebook não tem como barrar isso porque afetaria o serviço dele próprio", questiona Eleandro Tersi, dono de uma empresa que comercializa mais de 40 softwares, sendo o WhatsApp Grupos o mais caro, por R$ 1.273. (Veja a resposta do Facebook mais adiante).
A prática de envio massivo de mensagens via WhatsApp demanda geralmente estratégias que envolvem as chamadas "fazendas de celulares". Empresas montam estruturas com dezenas de aparelhos que se alternam nos envios para evitar os banimentos por spam que inutilizam os chips usados (considerados "queimados").
Mas, com o avanço tecnológico, alguns serviços nem precisam mais dos aparelhos, só dos chips.
Há diversas estratégias para driblar restrições. Uma delas, por exemplo, coloca os números "frios" em sites de classificados com anúncios de produtos muito mais baratos que a média. Potenciais consumidores enganados pela oferta enviam inúmeras mensagens ao "vendedor", legitimando ou, no jargão, "esquentando" o número perante os mecanismos do WhatsApp de detecção de robôs.
Empresas também utilizam ferramentas que impedem a identificação da origem do número. Diversos grupos de WhatsApp com conotação política foram criados, por exemplo, por números com DDI dos Estados Unidos, mas eles não são necessariamente daquele país. Trata-se de uma fraude.
Como esse mercado de marketing via redes sociais é relativamente novo, os preços, as estruturas e a complexidade das ferramentas variam bastante. No interior de São Paulo, por exemplo, é possível encontrar serviços que oferecem o envio de 1 milhão de mensagens de WhatsApp a partir de R$ 30 mil.
Na quinta-feira, o jornal Folha de S.Paulo publicou uma reportagem na qual afirma que empresários que apoiavam o candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) pagaram, por meio de caixa 2, o envio de milhões de mensagens no WhatsApp contra o PT. Em resposta, o capitão reformado afirmou que não há provas contra ele, que não pode controlar empresários, que tem uma militância orgânica sem impulsionamento inflado e que sofre perseguição da imprensa.
A campanha de Bolsonaro divulgou nota dizendo ter sido "acusada falsamente de contratar via caixa 2 serviços de WhatsApp para disseminar fake news (...) sem provas e fundamentação jurídica, ajuízam uma ação de investigação judicial eleitoral com base, exclusivamente, nessa notícia falsa". Questionada pela BBC News Brasil se a campanha de Bolsonaro utilizou programas de envio massivo de mensagens via WhatsApp, Karina Kufa, coordenadora jurídica da campanha do candidato do PSL, respondeu: "Não, até mesmo porque não precisa".
Especialistas em direito eleitoral ouvidos pela BBC News Brasil divergem sobre a legalidade das práticas, e o TSE não esclareceu a questão.
A lei proíbe a comercialização de bancos de dados para campanhas eleitorais. Ou seja, a única maneira legal possível de enviar mensagens massivamente a eleitores é com bancos de dados próprios da campanha, coletados com eleitores que cederam seus telefones, por exemplo.
Não há consenso sobre o uso e coleta automatizada de telefones disponíveis no Facebook. Para Gabriela Rollemberg, vice-presidente da comissão de direito eleitoral da OAB Nacional, o eleitor precisa ter concordado com a cessão de seu telefone pessoal. "Se o eleitor não autorizou pegarem seu contato no Facebook, é uma irregularidade."
Já o procurador regional eleitoral de São Paulo, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, diz que, se não há comércio de banco de dados, não há ilegalidade. "Se a pessoa entrar no meu perfil e tem lá meu telefone, é um dado público. Essa consulta não é ilegal. E, a princípio, se o próprio interessado estiver colhendo os números com seus esforços, com um programa declarado na Justiça Eleitoral, seria um 'garimpo' de dados, não comercialização", opina.
Os dois concordam sobre a criação "artificial" de grupos: dizem que é legal, uma forma atual de fazer campanhas políticas do passado. "É lícito. É como se você estivesse numa fila do cinema e alguém viesse falar com você sobre um candidato. Não precisa se identificar falando que é funcionário de campanha", diz Gonçalves. Segundo Rollemberg, "é uma estratégia de comunicação". "O problema é que as pessoas ainda desconhecem esse tipo de estratégia e ainda são mais suscetíveis a isso, acabam sendo influenciadas. Acham que é isento, quando não é."
Já a professora de direito da FGV-Rio Silvana Batini diz que o disparo de mensagens, se não for feito de forma transparente, ou seja, mostrando claramente que vem de uma campanha política, pode ser considerado ilegal. Além disso, "a partir do momento em que você começa a utilizar subterfúgios, fraudes e a exceder limites do próprio aplicativo, sem deixar claro de onde está vindo, é abuso", afirma, referindo-se aos dispositivos que burlam o sistema do WhatsApp e mandam mensagens em massa para os eleitores.
O contexto de cada caso precisaria ser analisado, mas poderiam configurar abuso de poder econômico e utilização indevida de meios de comunicação.
Nestas eleições, diz Rollemberg, o TSE tentou combater o problema de notícias falsas enviadas por meio das redes sociais, mas ficou claro que "as ferramentas tecnológicas estão à frente e a Justiça não está conseguindo acompanhar". "O controle deixou a desejar."
Segundo o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Carlos Affonso Souza, a disseminação de mensagens e criação de grupos em massa ferem a lei brasileira ao influenciar as eleições de modo artificial e também as regras de privacidade dos dados das comunidades virtuais.
"Essas plataformas já possuem em suas regras de comunidade uma proibição no sentido de impedir que ela seja instrumentalizada de forma artificial para aumentar o volume de determinadas discussões. Foi nesse sentido que o Facebook tomou diversas iniciativas para remover contas e páginas de usuários falsos ou inflavam notícias falsas", afirmou Souza.
Direito de imagemGETTY IMAGESSegundo ele, o Twitter barrou contas automatizadas e o Facebook permitiu anúncios eleitorais apenas para candidatos ou coligações. Mas, segundo ele, "a vida encontrou um caminho e o WhatsApp se tornou a rota de escape da desinformação na eleição brasileira".
O Facebook disse que as ferramentas violam as regras da plataforma. "As nossas políticas não permitem a coleta automatizada de dados. Nós levamos isso muito a sério, e estamos investigando este caso específico", afirma o porta-voz do Facebook.
A plataforma não respondeu por que o número de telefone é tratado como um dado que pode ser público, nem se adotou medidas contra as práticas descritas pela reportagem.
Cada usuário pode ser membro de quantos grupos quiser no WhatsApp, mas há alguns limites impostos pela plataforma. Um deles é o número de grupos que podem ser criados por um usuário. Esse limite, no entanto, é de 9.999 grupos. Outro limite é o número de mensagens encaminhadas simultaneamente em conversas diferentes, que foi reduzido de 256 para 20, em agosto deste ano, em razão da disseminação massiva de notícias falsas.
"O WhatsApp baniu proativamente centenas de milhares de contas durante o período das eleições no Brasil. Temos tecnologia de ponta para detecção de spam que identifica contas com comportamento anormal para que não possam ser usadas para espalhar spam ou desinformação. Também estamos tomando medidas legais imediatas para impedir empresas de enviar mensagens em massa via WhatsApp e já banimos contas associadas a essas empresas", disse a companhia por meio de nota.
O TSE diz que "não há uma legislação eleitoral específica para o Whatsapp e correlatos". "O que a legislação eleitoral prevê para tratar de propaganda eleitoral na internet está contida na Resolução TSE nº 23.551/2017. Nas outras esferas do Direito, o Whatsapp é regido pelo Marco Civil da Internet, que regulamenta serviços prestados por meio da rede mundial de computadores."
De acordo com Souza, o Marco Civil da internet trata de questões de conteúdo de terceiros, não de aplicativos. Segundo ele, as plataformas não são responsabilizadas pela informação que circula por elas automaticamente. Apenas determina a remoção de determinados conteúdos. Mas hoje é impossível fazer isso no WhasApp.
"Isso funciona para o Twitter e Facebook. Mas o WhatsApp tem a peculiaridade de ser um aplicativo que preserva a privacidade de ponta a ponta. Isso faz com que o conteúdo não esteja nos servidores da plataforma, mas nos dispositivos dos usuários. Então, qualquer medida que se pense envolvendo o WhatsApp é diferente das outras redes sociais. O meu receio é que esse discurso nos faça voltar à discussão de bloqueio do aplicativo ou que ele abra mão dessa criptografia. Não é hora de ceder à tentação de pânico moral", afirmou.
Matheus Magenta, Juliana Gragnani e Felipe SouzaDa BBC News Brasil em São Paulo e Londres
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45910249
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