Carlos Lopes
Durante o primeiro semestre deste ano, 167 empresas nacionais foram compradas por multinacionais. Foi a maior liquidação de empresas privadas brasileiras num único semestre de toda a história do país, batendo o recorde do primeiro semestre de 2011 (94 empresas desnacionalizadas), que, por sua vez, batera o recorde do primeiro semestre de 2010 (77 empresas desnacionalizadas). Em relação ao semestre anterior, a desnacionalização de empresas aumentou 77%.
São dados da última “Pesquisa de Fusões e Aquisições” da consultoria KPMG, e correspondem às operações “cross border 1” (cb1) – descritas sucintamente como “empresa de capital majoritário estrangeiro adquirindo, de brasileiros, capital de empresa estabelecida no Brasil”.
De que países são as multinacionais que adquiriram essas empresas nacionais?
A maior parte, 71 empresas nacionais, foi adquirida por multinacionais dos EUA. Em segundo, 13 empresas nacionais foram tomadas por multinacionais com sede na França. Em terceiro, as multinacionais com sede na Inglaterra levaram 12 empresas nacionais. Em quarto, 11 empresas nacionais passaram para o controle de multinacionais da Alemanha. Em quinto, vêm as empresas com sede no Canadá, que adquiriram 8 empresas nacionais. Em sexto, as japonesas, que passaram a controlar mais 6 empresas que antes eram nacionais.
Depois disso, vieram as companhias com sede na Holanda (que passaram a controlar mais 5 empresas que eram nacionais), Suíça (mais 5 empresas), Espanha (mais 4 empresas), África do Sul (4empresas), Itália (mais 3 empresas), Chile (3 empresas), México (3 empresas), Suécia (2 empresas), Bélgica (2 empresas), Israel (2 empresas), Austrália (2 empresas), Índia (2 empresas), Portugal (2empresas), Argentina (2 empresas), China (1 empresa), Finlândia (1 empresa), Irlanda (1 empresa), Singapura (1 empresa), Emirados Árabes Unidos (1 empresa).
Essas transações têm a aparência de um bazar, mas vejamos mais um elemento: o ramo das empresas que foram desnacionalizadas.
Assim, no semestre, o capital externo adquiriu controle de empresas, anteriormente nacionais, nos seguintes setores (entre parênteses, o número de empresas desnacionalizadas no setor):
Serviços para empresas (21); tecnologia da informação (17); produtos químicos e farmacêuticos (10); alimentos, bebidas e fumo (9); telecomunicações e mídia (8); eletroeletrônico (7); mineração (7); produtos químicos e petroquímicos (6); companhias energéticas (3); produtos de engenharia (4); imobiliário (3); petróleo e gás (2); instituições financeiras (2); açúcar e etanol (1); publicidade e editoras (7); educação (2); shopping centers (5); higiene (1); transportes (1); lojas de varejo (2); metalurgia e siderurgia (2); construção e produtos de construção (4); serviços portuários e aeroportuários (2); autopeças (2); hotéis e restaurantes (1); aviação (5); fertilizantes (2); embalagens(3); montagem de veículos (2); empresas de internet (18); e, ainda, 8 empresas com ramo não especificado, classificadas pela KPMG na rubrica “outros”, foram também desnacionalizadas.
APETITE
A torrefação de empresas nacionais foi tão extraordinária – poderíamos dizer, sem exagero, tão escandalosa – que até os profissionais da KPMG, que têm como especialidade a fusão e aquisição de empresas, mostraram o seu espanto diante do “apetite dos estrangeiros comprando empresas no Brasil”, “situação que nunca havíamos visto até então” (sic).
O mais espantoso, no entanto, é que o governo ficou assistindo uma liquidação frenética de empresas nacionais, sem fazer absolutamente nada, como se a passagem em massa de patrimônio construído por brasileiros, com recursos brasileiros, para controle fora do país, fosse algo normalíssimo. “A participação estrangeira”, diz a nota da KPMG, “ganhou força inclusive em setores em que a presença brasileira foi tradicionalmente majoritária, como é o caso do ramo de Tecnologia da Informação”.
Nas tabelas desta página, o leitor poderá comparar o primeiro semestre deste ano com os de anos anteriores – e, na segunda, as desnacionalizações nos últimos oito anos e meio, período em que passaram a ser controladas de fora do país nada menos que 1.167 empresas que antes eram nacionais - 86,46% delas (1.009 empresas) depois que o ministro Mantega, ao assumir a Fazenda, em 2006, implementou a esdrúxula, embora não original, política de que o “investimento direto estrangeiro” (isto é, as multinacionais e a compra, por elas, de empresas nacionais) era a força motriz do nosso desenvolvimento.
Hoje, há sujeitos que ficam indagando nos jornais por que, apesar das medidas do governo, a economia não se recupera.
A questão é que a economia do país tem de existir para que se recupere. O que se permitiu até agora, e de forma mais grave ainda em 2011 e 2012, é a morte de partes gigantescas da economia nacional, tomada por empresas de outros países, sobretudo dos EUA, através da aquisição de patrimônio nacional já construído. Com alguns trilhões de dólares emitidos pelo FED desde 2008, qual a dificuldade de comprar empresas nacionais já construídas, se o governo não faz nada – pelo contrário – para impedir esse falecimento econômico nacional?
Certamente, sustentar as filiais de multinacionais com dinheiro do BNDES ou dos impostos não vai resolver o problema, exceto o das próprias multinacionais, aumentando sua margem de lucro – e possibilitando mais remessas de lucros para suas matrizes. Assim, como esperar que a economia se recupere, se não é a economia do Brasil que está sendo “estimulada”?
Desde o princípio do século XX se sabe – e existe vasta literatura, inclusive a favor desse esbulho, afirmando isso – que ter as decisões sobre a economia localizadas fora do país, ter os “centros de decisão” sobre nós em outros países, leva ao atraso, pois é óbvio que essas decisões não serão tomadas em função do nosso país. Isso é, exatamente, o que acontece quando a economia é invadida por filiais e subsidiárias das multinacionais. Se deixadas à solta, elas são um mero meio de transferir riqueza do país onde estão para aquele onde está a sua matriz.
O fato dessa política – com todos os “investment grade” concedidos por agências de “rating” que logo se desmoralizaram como antros de vigaristas (como bem sabe a presidente Dilma, que assistiu várias vezes ao documentário “Inside Job”) - ter levado a um fracasso estrondoso em 2008/2009, que só não foi uma hecatombe porque o presidente Lula resolveu tomar as rédeas da política econômica e colocar no centro o investimento público, com o PAC, o financiamento público, através dos bancos estatais, e, não menos importante, os gastos de custeio do governo a serviço do crescimento, não fez com que Mantega desistisse dessa miséria. Pelo visto, trata-se de um problema de interesses - e não de teoria econômica, ou de lógica, pois não há nenhuma lógica, muito menos teoria de qualquer espécie, nessa política à la Pétain.
Nesse sentido, nada há de mais meramente, vulgarmente ideológico do que essa política, pois não há nada na realidade – exceto alguns interessados – senão o seu inevitável fracasso.
Trata-se apenas de uma questão prática: não é possível desenvolvimento – nem crescimento, exceto algum ocasional voo de galinha – que não seja baseado nas empresas nacionais, estatais e privadas. Já mostramos que a única possibilidade das multinacionais aportarem alguma contribuição ao nosso crescimento é ter a economia baseada nas empresas nacionais (HP, 20/07/2012 e HP, 22/07/2012).
É tão óbvio que empresas estrangeiras não podem ser o setor principal da economia de um país, sob pena de levá-lo à estagnação e ao retrocesso, que nem é necessário argumentar que o fim da economia nacional não pode redundar em desenvolvimento nacional. Bastam os fatos: que país conseguiu progredir sem economia própria, isto é, tomada por uma economia externa ou por várias economias externas?
Se fosse possível essa mágica, por que os países lutaram tanto para sair do status de colônia? Só porque é mais bonito ser uma nação? Mas, só é mais belo ser uma nação porque esse é o único caminho para o progresso de um país. (Originalmente publicado em www.horadopovo.com.br)
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