A terceira temporada de House of Cards — talvez o retrato mais fiel dos bastidores da política nas democracias contemporâneas — vai ao ar hoje na Netflix.
Desde que a série caiu no gosto da classe política, de empresários e do mercado financeiro, muita gente tem comparado o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, com Frank Underwood, o protagonista da série.
Numa entrevista recente ao Valor, Cunha disse que compará-lo a Underwood era “um absurdo”.
“Eu vi essa série. Existem três diferenças clássicas, ali: o cara é um assassino, o cara é um corrupto e o cara ainda é um homossexual. Não dá para eu aceitar essa comparação. É ofensiva”.
Para comemorar a terceira temporada da série sem ofender o deputado, VEJA Mercados criou sua própria narrativa: ‘House of Cargos’.
Nas quatro cenas abaixo, absolutamente fictícias, não há corrupção, assassinatos, e muito menos referências a orientação sexual.
Só existe Brasilia, em todo o seu esplendor.
Cena 1. O entregador de jornais ainda não havia arremessado a Folha de São Paulo no jardim do prédio quando Eduardo Cunha, num terno Zegna que acabara de comprar em Lisboa, pisou fora de seu apartamento funcional e tomou o elevador, naquela manhã extorsivamente úmida de janeiro.
Ao chegar ao térreo, trocou um bom dia com seu segurança, que o acompanhava desde os tempos em que ele era um desconhecido na política. Estava aí um homem em quem Eduardo confiava. Qualquer dia, faria dele diretor de um fundo de pensão; o cara estava, inclusive, terminando a faculdade de administração, como parte de um acordo que eles fizeram lá atrás (“você estuda e eu te ajudo”).
O terno, impecável, era praticamente a única coisa virgem a esta altura da vida de Eduardo Cunha, ainda mais naquela manhã, horas depois de ter sido eleito presidente da Câmara, sacramentando sua posição como o terceiro homem mais poderoso do Brasil.
Em Brasilia, todo mundo sabia que o “terceiro”, no caso, era quase sinônimo de “primeiro”. A Presidente Dilma, àquela altura, já era o que os americanos chamam de ‘lame duck president’ — um pato manco, incapaz de causar danos. O vice, Michel Temer, que Cunha conhecia há anos e com quem mantinha uma relação volátil, estava numa posição difícil.
Se o clima azedasse e o impeachment viesse, Temer teria que fazer ainda mais aquela cara de paisagem que caracteriza todos os vices. Somente ele, Eduardo, poderia botar para quebrar: decidir alianças, dar celeridade a procedimentos ou retardá-los, e, claro, romper acordos ao sabor da conveniência do dia.
O Brasil podia não estar em boas mãos — isto é subjetivo — mas estava nas mãos certas. Disto Eduardo tinha certeza.
Afinal, política não se faz com aquela coisa de “vem pra rua”. Quem manda mesmo é quem se elege e “vai pro gabinete” — e ele tinha o maior, o mais espaçoso, o mais poderoso deles.
De repente, a política fluminense — onde ele havia afiado seus dentes, onde tinha feito e desfeito governadores — parecia coisa provinciana. Agora, ele estava no topo, e a República ainda não sabia direito o tamanho daquele homem.
“Me aguardem,” pensava ele enquanto o Corolla preto, cantando pneu, ganhava o Eixão.
Cena 2. Antes de mexer no tabuleiro que interessa, Eduardo Cunha sabia que tinha um dever de casa a fazer: agradar a base. Mesmo reinando agora dos píncaros do Poder, seria obrigado a manter no mínimo o semblante da velha rotina: visitar as igrejas evangélicas, dizer seus aleluias, dar os tapinhas nas costas dos pastores, ‘sentir’ a base. Essas viagens — frequentemente aos lugares mais deserdados da Baixada Fluminense ou da Zona Oeste do Rio — lhe eram tão excruciantemente desoladoras quanto as que seu colega americano, Frank Underwood, fazia ao Old South, sua terra natal.
“Quem são essas pessoas? O que eu estou fazendo aqui?” — ele pensava, enquanto doava a seu interlocutor o sorriso mais largo, o abraço mais caloroso e o olhar mais solícito de que o tal já fora recebedor.
Aquilo era um dom.
Sua promessa de que uma lei legalizando o aborto só passaria “por cima do meu cadáver” havia caído bem lá na base. Até o Malafaia lhe telefonara. Agora, era hora de meter mais cimento naquela laje. Ainda do carro, Eduardo ligou para um assessor no gabinete e pediu que puxasse dois projetos: um para impedir a adoção de crianças por casais gays; o outro, para criar o Dia do Orgulho Heterossexual. Ao desligar, sorriu apenas com o canto esquerdo da boca, um cacoete assimétrico que lhe acometia sempre que perpetrava uma maldade. (“Será que não estou pegando pesado no fundamentalismo?” cobrava-lhe, às vezes, sua consciência, geralmente na hora do banho.)
Ele sabia que a ‘elite branca’ iria criticá-lo por tomar aquele caminho de obscurantismo. Mas é disso que o povão gosta, e NINGUÉM entendia isso neste País melhor do que ele. Não ia ser agora, ao chegar ao topo, que ele ia se descuidar da base, esse bastião de legitimidade e fonte de desculpas para tudo. Mas sua mulher já o havia alertado para ter cuidado: até ele estava começando a acreditar naquelas bobagens.
Pensou na mulher. Cláudia sabia puxá-lo de volta à terra quando Eduardo exagerava. Só mesmo uma mulher forte e com opiniões próprias como ela para acompanhá-lo numa carreira tão meteórica. Além de tudo, era uma excelente mãe e jornalista — a única pessoa naquela classe que ele era capaz de amar.
Eduardo tinha aguentado muita coisa para chegar onde chegou. Filiado ao PRN, foi presidente da Telerj no Governo Collor. Já pelo PPB, comandou a Cehab no governo Garotinho. Collor e Garotinho: dois amadores. Enquanto eles subiram e depois botaram tudo a perder, Eduardo só avançava. Ele poderia lhes ensinar muito — senão sobre como conquistar o poder, sobre a arte de mantê-lo. Já há algum tempo, Eduardo gostava da fama de mau que o acompanhava. Ainda se lembrava de como servira bem a ACM a alcunha de Toninho Malvadeza. Deixe que digam, que pensem, que falem… No coração de Cláudia e nos grandes salões da República, Eduardo agora era o malvado favorito. Tom Jobim estava certo: o Brasil não é para principiantes.
Cena 3. No jardim do Palácio da Alvorada, a Presidente Dilma estava irrequieta. Dali a alguns minutos, receberia seu nêmesis. O homem que ela sabia não ser flor que se cheire. O adversário que ela tentara derrotar, e que agora empunhava a faca e o queijo.
O desgaste de material — os quatro anos do primeiro mandato mais os oito com Lula — já se fazia notar. Nem as emas do Alvorada tinham mais graça. Ela, que adorava sentar ali de manhã e ler no laptop as notícias do dia — “o que a Folha vai inventar hoje? Como a VEJA vai me sacanear?” — agora preferia ficar na sala imensa, desenhada pelo velho comunista, assistindo televisão.
Descobriu tardiamente a série “Desperate Housewives”, que retrata a como a neurose rege a rotina nos subúrbios dos EUA. A ex-guerrilheira ria daquela gente tão bem de vida e tão ferrada da cabeça, se bem que ultimamente temia que ela mesma estivesse se tornando uma caricatura neurótica.
Enfim. Agora tinha que esquecer aquilo tudo e colocar a armadura. Dentro de poucos instantes, Eduardo Cunha estaria ali. A Presidente conversara com Temer na noite anterior, e este, para confortá-la, disse que não havia mágoa no coração de Eduardo, e que o encontro seria mais tranquilo do que a Presidente imaginava. Mas como confiar no Michelzinho? No clima atual, até os apelidos afetuosos estavam sob suspeição. Já não dava para saber, aquela altura do campeonato, para que time o Michelzinho torcia: o Situação Futebol Clube ou o Clube de Regatas Mudança Já.
O segurança apareceu na varanda que dá para o jardim e acenou com a cabeça: o homem havia chegado. “Isso vai ser uma m#$@%,” pensou a Presidente, atropelando uma ema no caminho de volta.
Cena 4. O encontro começou protocolar. Se aquilo ali fosse uma estória em quadrinhos, os balõezinhos com as falas não teriam a menor relevância: a política estava sendo jogada nos balões de pensamento.
Por um nanossegundo — o máximo que sua empatia durava com um adversário — Eduardo Cunha sentiu pena de Dilma Rousseff. Ele até respeitava a adversária, daquele jeito que um rottweiler respeita um pincher que luta e late bravamente pelo mesmo pedaço de carne. A Presidente estava visivelmente cansada. O mea culpa implícito que foi ter de nomear Joaquim Levy, a queda abismal em sua popularidade que o Datafolha havia capturado, e sua própria consciência de que a campanha não fora exatamente kosher… Dilma estava apática, fragilizada.
Mas, como dizia seu amigo Frank, “Para nós que estamos escalando rumo ao topo da cadeia alimentar, não pode haver compaixão. Só há uma regra: caçar ou ser caçado.”
Ele se sabia o predador; a presidente era sua caça. Era hora de deixar isso abundantemente claro.
“Vamos deixar de lado as cordialidades e ir ao que interessa,” disparou ele, abrindo os trabalhos.
“E o que seria isso?…” devolveu Dilma com enfado, mas já sabendo aonde a conversa ia.
“Esse negócio de carguinho, de ministério de m…, isso tudo ficou pra trás! Eu hoje represento muito mais do que o baixo clero.”
Ela atiçou: “E QUEM o senhor representa, exatamente?”
“Se a senhora não sabe, não deveria estar nesta cadeira.”
“Escuta aqui, seu filho d…”
“Bom DIAAAAAA!” berrou o Michelzinho, irrompendo na sala e evitando uma colisão frontal entre os poderes.
A tal governabilidade estava por um fio, mas sobreviveria mais um dia.
Por Geraldo Samor
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SENSACIONAL!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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