Parece frango, mas é fungo. Leite de vaca, sem vaca: foodtechs usam fermentação para revolucionar a indústria alimentícia.
Leite de vaca sem vaca. Carne com gosto de frango, rica em proteína, mas não é animal. A ideia pode parecer futurística demais, mas já é a realidade da indústria de alimentos global, com investimentos significativos em inovação e tecnologia.
Com as mudanças climáticas, os conflitos geopolíticos e o crescimento populacional, a preocupação com a escassez alimentar é um grande desafio. A biotecnologia promete ser uma importante ferramenta para impulsionar a capacidade de produção de alimentos, principalmente o de proteínas alternativas.
E o método milenar de fermentação tem sido uma grande aliada das foodtechs que buscam na evolução dos processos fermentativos caminhos inovadores para suprir a crescente demanda alimentar com a produção de proteínas alternativas para a indústria alimentícia.
Nesta reportagem, a Agência de Notícias da Indústria vai te mostrar as novidades que têm revolucionado a cadeia de produção de alimentos com as técnicas de fermentação natural; de biomassa; e a de precisão.
Imagine um processo de fermentação que usa a cópia do DNA da vaca para programar microrganismos a produzir proteínas do leite idênticas às originais, sem a necessidade de animais? Não, isso não é uma sinopse de série de ficção científica. Nós estamos falando de inovação e tecnologia.
Esse processo existe e é chamado de fermentação de precisão, a aposta da startup brasileira Future Cow para a produção de caseína e do soro de leite, insumos para a elaboração de iogurtes, queijos e suplementos alimentares.
Leonardo Vieira, cofundador e diretor executivo da empresa, destaca que a proteína é molecularmente idêntica à do leite tradicional, no entanto, o processo consegue eliminar a lactose, o colesterol e hormônios encontrados no produto animal.
Como tudo acontece de forma controlada em biorreatores, é possível, inclusive, eliminar componentes alergênicos presentes em moléculas de origem animal. Mas, como consegue ser tão parecido ao leite de vaca? Vieira explica que o processo de fermentação é similar ao usado na produção de cerveja ou vinho.
Ao contrário da fermentação tradicional, que utiliza microrganismos de forma mais ampla, a fermentação de precisão emprega microrganismos geneticamente modificados ou selecionados para produzir produtos específicos, no caso da Future Cow, a caseína e o soro de leite.
Para Vieira, o método é uma solução eficiente para os desafios globais de segurança alimentar. “Até 2050, precisaremos alimentar 10 bilhões de pessoas e já enfrentamos desafios para produzir proteína animal suficiente. A agricultura tradicional está sob pressão: aumento da temperatura global, recursos limitados e crises globais ameaçam o fornecimento de alimentos. Nossa tecnologia foi desenvolvida para complementar a cadeia produtiva já existente”, acredita.
O cofundador da Future Cow conta que a ideia da startup é desenvolver produtos híbridos que ajudarão a indústria de laticínios a aumentar a escala de produção entre 20% e 30%, fornecendo o que eles chamam de “cow-free milk”. Em bom português: leite sem vaca.
Dessa forma, o ingrediente vai poder ser usado para produzir sorvetes e iogurtes, por exemplo. “Para a indústria de laticínios, isso é uma revolução industrial. Além de termos um sistema de produção eficiente, ajudamos a eliminar uma etapa do supply chain, reduzir custos operacionais e logística”.
Além disso, Vieira explica que a técnica pode ser uma boa estratégia para o cumprimento de metas de descarbonização e redução do impacto ambiental, alinhadas às exigências regulatórias e do consumidor global. “Por meio da fermentação de precisão podemos reduzir em até 99% do consumo de água e até 60% menos uso de energia.”
Segundo ele, o Brasil é um dos únicos países do mundo com abundância nos três principais insumos para a fermentação de precisão: água, açúcar e energia renovável. Vieira estima que quando a tecnologia atingir escala industrial, o leite sem origem animal será mais barato que o produzido por vacas.
“O setor de fermentação de precisão está apenas no começo. Na próxima década imagino ver diversos produtos não apenas alimentícios (leite, ovo, carne e peixe), mas matérias como algodão, couro e até madeira sendo produzidas por biotecnologia de forma mais eficiente e sustentável”, acredita.
De acordo com o estudo Fermentação no Brasil, o potencial para a produção de proteínas alternativas, elaborado pela The Good Food Institute Brazil (GFI Brasil), o mercado global de produtos alternativos derivados da fermentação movimentou US$ 4,1 bilhões entre 2013-2023. Só em 2022, o investimento em fermentação de precisão chegou a US$ 382 milhões.
Em termos de negócios já estabelecidos mundialmente, são 158 startups oferecendo alternativas de proteínas produzidas por meio de técnicas de fermentação. Na área de fermentação de precisão, são 73, sendo que, até agosto de 2024, a GFI Brasil identificou nove startups brasileiras que já estão desenvolvendo negócios e produtos. A Future Cow é uma delas. A expectativa da startup é alcançar a comercialização em escala industrial até 2027.
Para chegar até aqui, a foodtech encontrou em barreiras para levantar recursos. No entanto, segundo Vieira, a credibilidade de investidores estratégicos e o uso e recursos de fomento à pesquisa e desenvolvimento foram fundamentais para o avanço e aprimoramento da tecnologia.
“Recebemos aportes do fundo global Antler durante nosso período como empreendedores residentes no Cubo Itaú em 2023, e da Big Idea Ventures, sendo a Future Cow sua primeira investida no Brasil", detalha. A empresa contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii); do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e estuda captar recursos com a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP); com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); e da agência de fomento do Estado de São Paulo, a Desenvolve SP.
A Future Cow está incubada no Parque Tecnológico Supera, em Ribeirão Preto e foi selecionada em 1º lugar no edital público do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) para o programa de aceleração de deeptechs. Assim, a startup está testando o escalonamento da produção na planta de fermentação semi-industrial do CNPEM, possível por meio de aportes de R$ 2,2 milhões pela Embrapii e pelo Sebrae.
A pesquisadora de biotecnologia do Instituto SENAI de Inovação Biossintéticos e Fibras, Eamim Daidre Squizani, explica que ainda há um caminho longo até o uso de microorganismos para produção de alimentos ganhar mais adeptos.
“As empresas ainda não olham para o uso dos organismos geneticamente modificados como um futuro possível para a indústria de alimentos. Elas ainda encaram como um desafio, porque é algo disruptivo, demanda investimento, pesquisa. Em um mundo de inseguranças climáticas, não acredito que vai ser sustentável por muito tempo a dependência das empresas pelo extrativismo para a obtenção de moléculas. O mais viável é iniciar a fermentação de precisão”, destaca.
Para ela, a inteligência artificial pode ser uma grande aliada no processo, pois, com ela, é possível melhorar as modelagens dos genes modificados, otimizando e tornando os bioprocessos economicamente mais viáveis. “A carne cultivada é uma realidade e será ainda mais. É uma questão matemática, estatística. Quantas pessoas nascem por dia? Teremos comida para todo mundo até quando? Então, a fermentação de precisão é o caminho para o futuro”, conclui.
Outra técnica que vem sendo explorada no Brasil é a fermentação de biomassa que, na prática, desenvolve diversos produtos semelhantes às proteínas de origem animal. Parece frango, tem gosto de frango, mas é uma proteína alternativa resultante de um processo de multiplicação de microrganismos, como bactérias, leveduras, microalgas ou fungos.
A foodtech Typcal apostou no micélio, nome dado à estrutura que compõe a biomassa de fungos filamentosos, semelhantes às fibras de carne, para produzir, entre outros ingredientes, a proteína análoga à animal.
O diretor de Tecnologia da startup, Eduardo Sydney, conta que o desenvolvimento começou no Brasil em 2021, com o objetivo de produzir ingredientes mais naturais para consumidores e com menor impacto ao meio ambiente. Em 2022, a tecnologia foi validada em laboratório. No ano seguinte, foi a vez de empreitar a planta piloto, em Curitiba (PR), para interagir com uma grande indústria de alimentos e validar a hipótese.
“Já lançamos em parceria com uma lanchonete em São Paulo (capital) um hambúrguer híbrido e com outra uma pizza e Wrap de micélio. O feedback que temos dos consumidores é que o micélio realmente surpreende na similaridade à proteína animal e dos proprietários dos estabelecimentos que é um produto muito fácil de preparar e temperar”, conta Sydney.
Uma vantagem em relação às proteínas vegetais é que o micélio não tem sabor residual (aquele sabor amargo que sentimos na proteína de soja e ervilha), o que facilita o uso como ingrediente pela indústria.
Segundo Sidney, a produção de proteína a partir do micélio ainda tem outras vantagens, sobretudo no uso de recursos. “Temos um processo produtivo realizado em biorreatores e baseado em biotecnologia, fazendo com que a proteína fique pronta em apenas 24 horas, produzindo sete mil vezes mais proteína por metro quadrado que a soja, por exemplo.”
Talvez você conheça e até tenha tomado leite fermentado com “lactobacillus vivos”, mas a fermentação natural vai muito além disso. O tempê é um produto proteico vegetal produzido por fermentação a partir de grãos de soja integrais cozidos e fermentados pelo fungo Rhizopus oligosporus. A técnica nasceu na Indonésia e também pode ser aplicada em ervilha e grão de bico.
A Mun Alimentos trouxe a história do tempê para o Brasil em 2016, mas a escala de produção só começou mesmo em 2017. O diretor executivo da empresa, Thomas Hendee, conta que não tinha referências locais de produção e nem equipamentos específicos. Tudo foi construído na base da experimentação.
“No início, o maior desafio foi justamente apresentar o ingrediente ao público brasileiro: um alimento fermentado, feito com fungo, que ainda enfrentava resistência. Com o tempo, desenvolvemos novos formatos mais práticos e acessíveis — como hambúrgueres, esfirras e, mais recentemente, salgadinhos — para facilitar a aceitação”, explica Hendee. Hoje, a Mun está presente em mais de 300 pontos de vendas no Brasil, com a maior praça em São Paulo.
O tempê é um alimento integral que oferece a combinação de alto teor de proteína e fibras, mas baixo teor de carboidratos e de gordura. Ele também contém pequenas quantidades de compostos chamados prebióticos, que ajudam a promover bactérias benéficas ao intestino. Mesmo com tantos benefícios, a adesão do público foi gradual.
“Sempre soubemos que o tempê não teria um crescimento exponencial imediato, considerando as dificuldades de se mudar hábitos alimentares e introduzir um novo produto no mercado sem grandes verbas de marketing. Mas acreditamos que temos muito a crescer, focando em parcerias estratégicas no food service e no lançamento de produtos cada vez mais práticos, saborosos e nutricionalmente ricos”, acredita Hendee.
De acordo com a Mun Alimentos, o mercado global de tempê foi estimado em cerca de US$ 4 bilhões em 2023, com projeções de crescimento para US$ 6 a 7 bilhões até 2030.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) publicou a Resolução RDC Nº 839, de 14 de dezembro de 2023, regulamentando o registro de novos alimentos e ingredientes sem histórico de consumo seguro no país, incluindo os que têm origem no cultivo celular e fermentação.
O documento inclui alimentos obtidos de vegetais, animais, minerais, microrganismos, fungos, algas ou de forma sintética. A medida é uma segurança para atrair investimentos e garantir que sejam realizadas pesquisas e testes na área de fermentação.
No entanto, caso os ingredientes e alimentos contenham organismos geneticamente modificados (OGM), ou derivados de OGM, eles devem atender às exigências estabelecidas na Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio. Aqui estão incluídos os casos de fermentação de precisão.
Para o gerente de Transição Ecológica em Inovação da CNI, Alessandro Pansanato Rizzato, a indústria de alimentos brasileira ocupa uma posição de destaque no cenário mundial na ciência e tecnologia, com instituições de pesquisas sólidas voltadas para o estímulo e desenvolvimento da bioeconomia. No entanto, ele afirma que estamos longe, em termos de investimentos e patentes em biotecnologia, como os países desenvolvidos.
“O Brasil é muito relevante no cenário global de alimentos, principalmente em termos de volume e exportação, no entanto ainda precisa intensificar seus esforços em pesquisa, desenvolvimento e inovação, bem como na adoção de tecnologias de fronteira para se posicionar como líder de inovação e tecnologia na indústria de alimentos”, avalia Rizzato.
Segundo Rizzato, as grandes empresas também estão investindo em biotecnologia, como a JBS que recentemente criou um Centro de Pesquisas em Biotecnologia para Alimentos, no Sapiens Parque, em Florianópolis (SC).
Com investimentos de mais de US$ 50 milhões, o foco principal desse centro é o desenvolvimento de proteína cultivada, com pesquisa para aperfeiçoamento de práticas de segurança de alimentos, ciências da carne, bem-estar animal, desenvolvimento de ações de educação e treinamento, bem como de testes de equipamentos.
“A biotech emerge como uma alternativa aos processos tradicionais que utilizam transformações físico-químicas sob condições mais drásticas. Ela utiliza transformações bioquímicas que geralmente ocorrem em condições muito mais brandas, trazendo vantagens em termos de consumo energético, equipamentos e materiais mais leves e baratos, além dos ganhos climáticos, como a descarbonização”.
Além disso, Rizzato acredita que a biotecnologia é uma alavanca para a bioeconomia e pode alçar o Brasil à liderança mundial em diversos setores industriais e impulsionar a Missão 5, da Nova Indústria Brasil, que trata da Descarbonização, Transição Energética e Bioeconomia.
Por: Rafaella Feliciano
Fotos: Arquivo Pessoal
Direção de arte: Juliana Barbosa/CNI
Da Agência de Notícias da Indústria
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