Saiba como alguns dos principais médicos e cientistas do Brasil utilizariam os 26 bilhões de reais que serão gastos para fazer a Copa do Mundo
Quando a Copa do Mundo ainda era um sonho distante para o Brasil, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) pleiteava a organização do evento afirmando que tudo seria pago pela iniciativa privada. Agora, muitos anos e bilhões de reais depois, seja em investimento direto do governo ou abrindo mão de impostos, há estádios que custaram mais de um bilhão de reais, como é o caso do Mané Garrincha, de Brasília. A convite do site de Veja, médicos e cientistas fizeram um exercício de imaginação e contaram como investiriam os 26 bilhões de reais previstos pelo governo (dado do portal Transparência, da Controladoria-Geral da União) em gastos na Copa. As respostas dão uma ideia de como o Brasil poderia avançar muito em pesquisa científica e saúde pública.
Marcelo Gleiser
"Vamos supor que, em um Brasil fictício, o governo dobre a quantia de dinheiro, dando 26 bilhões de reais para a Copa (que é cara, mas traz divisas e várias outras vantagens, fora muita alegria e ansiedade aos torcedores) e 26 bilhões para a educação e pesquisa nas áreas de Ciências, Engenharias e Matemática (C.E.M.). Isso porque o governo sabe que sem o fomento necessário, o Brasil não mudará sua agenda de potência agropecuária e de mineração para uma nação inovadora em tecnologia e ciência básica de ponta.
"Este 'pacotão para o futuro' seria agenciado de forma impecável pelos vários ministérios e agências nacionais de forma que cada centavo seja gasto conforme o planejado. O currículo de ensino de ciências e matemática seria reformulado, dando grande ênfase à renovação de laboratórios e à disponibilidade de computadores e internet em todas as escolas do país.
"Os professores de ciências e matemática de ensino fundamental e médio (e por que não os de todas as áreas, já que estamos na utopia?) teriam seus salários triplicados e uma formação sólida. Com isso, jovens promissores veriam a carreira do ensino como uma opção viável e não como um ato heróico ou de desespero.
"Imagino que com 15 bilhões uma diferença palpável já pudesse ocorrer. Os outros 11 bilhões iriam para as universidades e centros de pesquisa, renovando laboratórios, dando bolsas para pesquisadores e alunos para que possam criar mais conexões internacionais, convidando cientistas renomados para passar períodos extensos no Brasil (como já anda fazendo o Ciência Sem Fronteiras), e trazendo de volta uma boa fração dos brasileiros que hoje se encontram fora ensinando e pesquisando. Mas trazendo de volta, como faz a China: com salários equiparados aos que ganham no exterior, para que possam manter sua qualidade de vida. Parte do dinheiro serviria para que o Brasil ingressasse como membro permanente e essencial em várias entidades internacionais de pesquisa, como o CERN ou a Agência Espacial Européia.
"Sonho? Talvez. Mas temos o talento humano necessário, não só para ganhar talvez a sexta Copa do Mundo (haja ansiedade!), mas para competirmos em pé de igualdade com as outras nações que ditam o passo do avanço científico e tecnológico mundial. Basta investirmos de maneira séria."
Marcelo Gleiser é professor de Física e Astronomia da Universidade de Dartmouth, nos EUA
Artur Katz
"Seguramente, não investiria em Copa do Mundo. Investiria basicamente em políticas de prevenção na área da saúde. Para isso, seria necessário também investir em estudos sobre os mecanismos de desenvolvimento das doenças, para que a prevenção e o tratamento estejam voltadas a, de fato, combater o que leva a essas doenças.
"Na área oncológica, dedicaria especial atenção à prevenção do câncer de colo uterino, pois ele vem sendo o responsável por muitas mortes. É necessário informar e prevenir a população.
"Um dos obstáculos para o desenvolvimento da saúde não só no Brasil, mas no mundo em geral, é o atrelamento de decisões médicas a decisões políticas. Sinto que, para viabilizarmos o acesso à medicina de ponta para toda a população, seria necessário um grande fórum de discussão envolvendo médicos, governo, fontes pagadoras e membros da indústria farmacêutica. Nesse fórum, todos teriam de estar empenhados em definir qual a melhor maneira de melhorar a medicina. Até mesmo nos EUA e na Europa há problemas relacionados ao financiamento da saúde, e eu só consigo vislumbrar essa solução: que todos se reúnam e participem de uma discussão sobre o assunto."
Artur Katz é coordenador de Oncologia Clínica do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês
Roberto Luiz d'Ávila
"Desde 1998, as pesquisas de opinião encomendadas pelo Palácio do Planalto apontam a saúde como a área mais criticada pela população. Aos poucos, ela se consolidou como o calcanhar de Aquiles das sucessivas gestões. De um lado, a pressão por um acesso mais amplo e de qualidade aos serviços oferecidos; de outro, as dificuldades causadas pelo subfinanciamento do setor. O resultado desse jogo de forças aparece no descontentamento geral de pacientes e profissionais da área, especialmente os médicos, com os rumos adotados.
"Os índices negativos mostram que a sociedade não quer mais conviver com filas, prontos-socorros lotados, demora na realização de procedimentos e a sensação de dificuldade no acesso aos médicos e outros profissionais da saúde. Caso o país contasse com um volume extra de recursos de R$ 26 bilhões para investimentos em saúde, muitos avanços poderiam ser alcançados, sobretudo no que se refere à qualificação da rede física, com a melhora de instalações e compras de equipamentos.
"Também poderiam ser desenvolvidos programas específicos para contratação emergencial de médicos e outros profissionais de equipes de saúde (enfermeiros, dentistas, auxiliares de enfermagem, etc) para atender, especialmente, nas áreas de difícil provimento, como os munícipios do interior do Norte e do Nordeste, e mesmo as periferias dos grandes centros.
"Para esses profissionais, além de remuneração adequada, poderiam ser oferecidos programas efetivos de educação continuada, a fim de assegurar o bom atendimento. Os recursos também poderiam ser úteis na formatação de uma rede de diagnóstico à distância, para ajudar na leitura e interpretação de exames, bem como oferecer retaguarda aos médicos em áreas distantes no momento de fazer diagnóstico ou prescrever tratamentos.
"Enfim, com este volume de recursos seria possível qualificar o atendimento da população de forma significativa e, sobretudo, lançar a semente do que seria uma carreira de estado para o médico e outras profissões que atuam na assistência dos brasileiros por meio do SUS. Com a ajuda dela, certamente seria possível desconcentrar a população de médicos, atualmente em sua maioria no Sul e Sudeste, e levá-los a se fixar nas áreas distantes.
"Com o aporte significativo de recursos, o governo poderia finalmente adotar decisões de caráter estruturante na saúde, o que renderia a construção de um cenário eficaz e eficiente de assistência."
Roberto Luiz d’Avila é presidente do CFM – Conselho Federal de Medicina
Mayana Zatz
"Eu gostaria de apresentar um dado: na época em que estávamos aprovando as pesquisas com células-tronco embrionárias, o governo da Califórnia deu três bilhões de dólares para essa pesquisa, o que equivaleria a quase seis bilhões de reais. Só a Califórnia, só para uma pesquisa. Então, 26 bilhões de reais não é nenhuma fortuna se pensarmos em pesquisa brasileira.
"Acredito que é preciso investir em centros de excelência. Eu investiria em centros de estudo de pesquisa com células tronco, tanto para terapia celular — a fim de usar essas células como um meio de tentar substituir tecidos e, no futuro, órgãos — quanto para usá-las para entender melhor as doenças genéticas e poder tratá-las em laboratório.
"Por exemplo: se tenho um paciente com alguma doença genética, posso tirar células de sua pele e, no laboratório, derivar suas linhagens celulares. Isso permite que eu entenda por que em uma pessoa que tem mutação genética um tecido é afetado por essa mutação e o outro não, e também por que duas pessoas com a mesma mutação apresentam um quadro clínico diferente. Mais importante ainda, consegue me fazer visualizar como tratar uma célula para que ela não apresente mais determinado defeito. No momento em que eu conseguir tratar uma célula em um laboratório e perceber que o defeito desaparece, terá sido aberto um caminho extremamente importante em relação a novos tratamentos.
"As pesquisas para isso, porém são muito caras, então seria absolutamente possível gastar 26 bilhões de reais apenas equipando centros de excelência com equipamentos, reagentes e pagamento de recursos humanos, para que estejam qualificados a realizar essas pesquisas.
"Existe, nesse ponto, outro problema: muitas vezes há equipamentos caríssimos nas universidades, mas não há como pagar pessoas qualificadas para cuidar desses equipamentos, que são extremamente sofisticados e, portanto, exigem uma mão de obra bastante qualificada para assegurar um funcionamento correto. Além disso, aqui no Brasil, se uma peça desses equipamentos se quebra, ele fica parado por seis meses.
"Não adianta termos dinheiro, se não conseguirmos agilizar a importação de materiais para pesquisa. Há muito desperdício de recursos devido a essa demora. Se eu precisar de um reagente para minha bancada e estiver nos EUA ou na Europa, eu consigo na hora, mas, aqui no Brasil, eu demoro meses para conseguir.
"Logo, se pudéssemos agilizar as importações e fazer com que elas fossem tão rápidas quanto são em vários outros países, os mesmos 26 bilhões iriam render muito mais. Poderíamos fazer pesquisa em um tempo muito mais curto e nos tornarmos mais competitivos.
"Para nós, seria um sonho que uma quantia de dinheiro como essa fosse investida em pesquisa — e quando digo pesquisa, estou falando também em recursos humanos, além de equipamentos —, porque é isso que vai alavancar o país. Mas, além disso, é preciso investir em leis que facilitem as importações e diminuam a burocracia existente.
"Repito aqui, algo que já falei para o ex-presidente Lula pessoalmente, e que gostaria que fosse transmitido para a nossa presidente: dê um voto de confiança para os nossos cientistas. Porque aqui, parece que todos são tratados como desonestos, até que se prove o contrário."
Mayana Zatz é diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USp
Nilton Rennó
"Gostaria de usar esse dinheiro para fazer algo relevante ao Brasil, e que inspirasse uma nova geração de engenheiros e cientistas. O Brasil tem um plano espacial bastante antigo. Começou trabalhando com a China e até avançou um pouco – mas nem se compara ao avanço dos chineses, por exemplo, ou ao plano espacial da Índia e do Paquistão. Por isso, acredito que para estimular o programa espacial brasileiro, seria necessário algo que anime e incentive os melhores talentos brasileiros a trabalhar na área.
"Assim, eu gostaria de propor uma missão ambiciosa o suficiente para energizar toda a juventude brasileira: a primeira missão à superfície de Vênus. Explico: um problema muito relevante atualmente é o do aquecimento global. Os três planetas mais parecidos no sistema solar são a Terra, Marte e Vênus. Toda a água presente em Marte se congelou, e hoje está em forma de gelo, abaixo da superfície das calotas polares. O que aconteceu em Vênus foi o outro extremo: toda a água ficou na atmosfera, em forma de vapor, com um aquecimento global muito forte, causando um fenômeno que chamamos de runaway greenhouse efect – o planeta não parou de aquecer até que toda a água virasse parte da atmosfera. A Europa e os EUA estão investindo muito em missões para Marte, sendo que Vênus é muito mais relevante para o entendimento do aquecimento global.
"Para a missão, também desenvolveria o foguete brasileiro, e consequentemente, nossa engenharia e nossa ciência. Além disso, uma missão como essa impulsionaria uma prática que é muito comum nos EUA, mas não no Brasil: parcerias entre empresas e universidades, centros de pesquisa.
"Parece difícil, mas é completamente possível para o Brasil realizar uma missão tão ambiciosa, com uma verba dessas. A Embraer é hoje uma empresa extremamente bem sucedida, um ótimo cartão postal para a tecnologia brasileira. Sempre que se fala em aviação, a Embraer é mencionada. Se o Brasil já é tão conhecido na aeronáutica, por que não ser conhecido também na área espacial?
"A missão poderia ser realizada entre dez e vinte anos. Um projeto como esse serviria não só para fazer todo mundo prestar atenção à tecnologia brasileira, como também formaria uma nova geração de cientistas e engenheiros que acreditam na capacidade do Brasil de fazer o que quiser."
Nilton Rennó é membro da equipe Curiosity, da NASA, e professor na Universidade de Michigan
Tasso Azevedo
"Investiria este recurso em duas frentes: promoveria a duplicação da base de florestas produtivas no Brasil, e promoveria uma revolução tecnológica no setor energético, especialmente na energia solar, eólica e em sistemas de bateriais inteligentes. Em 2020, o Brasil seria líder global em produtos florestais e nas fontes de energia que moldarão o século XXI com amplos reflexos na economia, emprego, renda e sustentabilidade de nossa via de desenvolvimento."
Tasso Azevedo é consultor e empreendedor social em sustentabilidade, floresta e clima. Foi Diretor Geral do Serviço Florestal Brasileiro e Diretor Executivo do Imaflor
Gustavo Rojas
"Essa quantia de 26 bilhões de reais é muito elevada, e eu gostaria de fazer algumas comparações. O valor planejado para investimentos em Ciência e Tecnologia de 2013 é de aproximadamente 10 bilhões de reais. Ou seja: para a Copa, é como se pegassem todo o dinheiro investido, mais uma vez e meia.
"26 bilhões ultrapassa até o orçamento da National Science Foundation, que é ó órgão dos Estados Unidos responsável por praticamente toda a pesquisa realizada no país; representa 70% a mais que o orçamento.
"O LHC, conversor de partículas da Suíça, custou, até hoje, 21 bilhões de reais. O telescópio Hubble, algo na ordem dos 20 bilhões também. Com o dinheiro da Copa, daria não só para construir o Hubble, como também operá-lo durante vinte anos. No 'Ciência sem Fronteiras', um programa muito importante, investe-se um total de 3 bilhões de reais – ou seja, com o dinheiro da Copa, seria possível realizar pelo menos oito projetos como o 'Ciência sem Fronteiras'.
"O Brasil manifestou interesse em participar da colaboração internacional no Observatório Europeu do Sul, o ESO. Desde 2010 estamos esperando a ratificação do Congresso para isso. A nossa contribuição como membro da ESO é de 370 milhões de reais, o que equivale ao necessário para reformar um dos estádios mais baratos da Copa. Logo, com os 26 bilhões de reais, seria possível pagar setenta vezes a contribuição do Brasil no ESO.
"Vale lembrar que o ESO é um consórcio; dividimos a conta com mais quatorze países. O projeto que está sendo conduzido agora é de um telescópio extremamente grande, que será o maior do mundo e terá quase quarenta metros. Esse vai ser o instrumento do futuro na astronomia, e o projeto demorará dez anos para ser concluído. Um instrumento tão avançado e tão grande como esse só pode ser construído por um consórcio de nações: o Brasil nunca vai ter condições de fazer isso sozinho.
"Se perdermos essa oportunidade desse consórcio, iremos ficar para trás e não teremos outra oportunidade. O custo total desse telescópio extremamente grande é de aproximadamente 2,8 bilhões de reais. Ou seja, com o dinheiro da Copa, seria possível fazer dez desses telescópios.
"Muitas vezes, quando as pessoas veem notícias sobre ciência, acham que há muito dinheiro envolvido, pensam 'tem gente passando fome por aí', esse tipo de coisa. Mas quando colocamos esses valores em comparação com os de outros projetos do governo brasileiro – no caso, a Copa – vemos que o que se investe em ciência, por mais volumoso que pareça, é quase insignificante perto do resto.
"Sabemos que vale a pena investir em ciência porque todos os países desenvolvidos investem pesadamente em ciência, e o Brasil está muito para trás. Se quisermos tomar uma posição de liderança mundial, como planejado nas últimas décadas, é muito importante que a educação e a ciência sejam prioridades – e não as primeiras áreas em que há corte de gastos quando surge uma crise, que é o que sempre acontece."
Gustavo Rojas é físico da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e mestre e doutor em Astronomia
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