Mesmo favorecidas por margens de preferência que permitem vencer licitações do setor público cobrando preços até 25% maiores que os concorrentes estrangeiros, as empresas nacionais perderam, para fornecedores de outros países, a chance de abastecer compras do governo brasileiro equivalentes a R$ 965 milhões, entre abril de 2012 e outubro de 2013.
Alguns setores, porém, aproveitaram a vantagem: fornecedores de máquinas pesadas e caminhões, responsáveis por boa parte do aumento de investimentos em 2013, foram os mais beneficiados pelas compras oficiais com preferências para empresa nacional.
Adotado por vários países - entre eles os Estados Unidos, que chega a aplicar 50% de margem de preferência em compras para as Forças Armadas e representações no exterior -, o privilégio concedido aos fornecedores nacionais turbinou, no ano passado, a indústria têxtil e de calçados. As margens de preferência (usadas especialmente para uniformes e calçados militares e escolares) quase quadruplicaram as vendas desses setores ao governo, de R$ 98 milhões em 2012 a R$ 356 milhões em 2013, até outubro.
Empresas nacionais não se aproveitam da margem de preferência
As compras governamentais são cobiçadas pelas empresas de atuação internacional e alvo de um acordo na Organização Mundial do Comércio (OMC), do qual o Brasil - como a maioria dos países emergentes - não quis participar. Faz parte das negociações de livre comércio, como as firmadas entre os Estados Unidos e parceiros pelo mundo e a atual discussão de um tratado comercial entre Mercosul e União Europeia (nessa negociação, o Brasil oferece uma pequena margem, de 3% para os produtores europeus, em relação a preços de países de fora do Mercosul).
Entre abril e dezembro de 2012, as compras do governo realizadas com a regra de favorecimento aos fornecedores nacionais somaram pouco menos de R$ 2,7 bilhões, a maior parte (R$ 2,2 bilhões) concentradas no último trimestre do ano; em 2013, os dados disponíveis até outubro mostram compras, pelas mesmas regras, de R$ 2,1 bilhões.
Em 2012, o PAC Equipamentos, pelo qual o governo compra e distribui equipamentos pesados a governos e prefeituras, garantiu 86% das compras com margem de preferência: as escavadeiras e motoniveladoras, com margens de preço de até 25% acima da concorrência, responderam por 55%; os caminhões e outros equipamentos rodoviários (com margens preferenciais de 14% a 20%), 30%. Já em 2013, os destaques foram a compra de produtos médicos (47%) e de confecções, calçados e artefatos (como capacetes), com 17% do total. Caminhões, furgões e equipamentos rodoviários ainda representaram 13% das compras oficiais, quase R$ 270 milhões.
Os dados sobre o desempenho das empresas nacionais favorecidas pelas margens de preferência foram gerados pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a pedido da gerência-executiva de política industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que concluiu, no fim de 2013, um estudo só agora liberado para publicação.
Por meio dele, pode-se ver que nem com permissão para preços mais altos as empresas nacionais se mostraram competitivas em setores como fármacos, medicamentos e equipamentos médicos, uma das áreas prioritárias para o governo - e desejadas por fornecedores americanos e europeus.
O mecanismo de privilégio aos nacionais, "se bem operado, pode fomentar a diversificação industrial, a agregação de valor e o desenvolvimento tecnológico", defende o estudo da CNI. Ele reconhece, porém, que, mal gerenciado, o sistema de margens de preferência "pode resultar em custos desnecessários para o Estado, a própria indústria e os consumidores".
O estudo da CNI, que não envolveu a importante participação de estatais, especialmente a Petrobras, no esforço de privilegiar fornecedores nacionais, calcula em R$ 72,6 bilhões o total de compras de bens e serviços pelo governo em 2012, dos quais pouco mais de R$ 48 bilhões em processos licitatórios. O governo calculava atingir R$ 15 bilhões em compras por meio de margens de preferência; ficou em apenas 14% desse valor, tanto em 2012 quanto no ano passado, até o mês de outubro.
As margens de preferência, que já beneficiam 11 setores, desde 2012, por lei, não podem durar mais de cinco anos; em dezembro, foram estendidos para 2015 os benefícios para as indústrias têxtil e de calçados, que perderiam as margens de preferência em 2013. No caso dos fabricantes de roupas e sapatos, a nova regra favorável aos produtores nacional fez caírem as compras de produtos estrangeiros (99% dos quais, chineses) de R$ 43 milhões em 2012 para R$ 7 milhões em
2013, até outubro.
A falta de competitividade do produtor nacional, ou ausência de fabricantes no país, levaram os estrangeiros a aumentar sua participação no fornecimento de fármacos, medicamentos e equipamentos médicos, de 2012 para 2013. No caso dos fármacos e remédios, os fabricantes garantiram o fornecimento de apenas 10% do total de produtos comprados pelo governo. Além disso, em 95% dos casos nos quais a margem mínima poderia ser usada, ela foi insuficiente para beneficiar fornecedores nacionais, porque os concorrentes estrangeiros apresentaram preços pelo menos 25% menores que os dos laboratórios no país.
O trabalho da CNI é um bom ponto de partida para avaliar as vantagens e insuficiências da política de compras governamentais. Não há, ainda, uma avaliação do custo desse programa, com os adicionais de preços pagos aos fornecedores no país, mas os valores envolvidos, até agora, são pequenos em relação ao total de compras do governo, até mesmo em relação ao total das licitações, único modelo de compras ao qual se aplicam as margens de preferência.
Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela UnB. Escreve às segundas-feiras
E-mail: sergioleo.valor@gmail.com
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