Assisti à primeira sessão do julgamento do mensalão por um viés singular, que aqui partilho com os leitores. Desde menino me encantam os livros, pois eles nos ajudam a entender a vida e nos explicam o mundo.
Não posso conceber que tenhamos líderes que não apenas nada leem, como apregoam ser desnecessário fazer isso, louvando sem cessar os benefícios da ignorância que os alçou aos postos aonde chegaram e a um estado de bem-estar social privatizado, isto é, a política que praticam só é boa para eles mesmos.
O cenário, a Torre de Papel do processo, que desejamos não se torne uma Torre de Babel, pois a confusão tem sido a principal arma da defesa, uma vez que os próprios advogados estão convencidos de que seus clientes perpetraram os crimes de que são acusados e sabem mais do que nós, pois sabem que nem tudo o que foi descoberto está ali apresentado, que há figuras referenciais que deveriam estar no banco dos réus e não estão, restando-lhes apenas chicanas como a da estreia: levantar uma questão de ordem para a qual um dos ministros, afinal vencido, tinha pronto um voto de centenas de páginas.
Mesmo derrotado por 9 x 2, goleada raramente vista em jogos de futebol, o esporte nacional, ele saiu vitorioso, perfilando-se ao lado da defesa na tarefa de espalhar a confusão, contrariando seus deveres de supremo magistrado, dos quais um dos principais é ser claro, sem buscar refúgio no abominável juridiquês!
O ministro Lewandowski, se não foi claro no confuso palavrório, deixou claro a quem servia: aos réus! Na quinta-feira, ele foi o melhor advogado de defesa e pelo visto assim será durante todo o processo! Não por ter votado a favor do desmembramento, a tal questão de ordem da defesa, mas pela forma como o fez: demorar bastante para atrasar o julgamento o mais que puder!
O ministro Marco Aurélio votou com ele, mas por motivos bem diferentes, exumados em linguagem clara, entendida por todos. Até o ministro Tofolli votou contra Lewandowski e isso de per si já é evidência de que ele exagerou na confusão que queria espalhar.
O ministro Joaquim Barbosa irritou o colega porque disse as coisas como elas devem ser ditas: a questão tinha sido discutida antes e estava resolvida. E era deslealdade com os colegas da Corte trazê-la de novo! Ele não fez a argumentação ad hominem (para o homem que julgava), ele a fez ad rem (para a coisa julgada) ad claritatem (para clareza) et contra balbum (e contra o bobo), o mesmo balbus que queria fazer de bobos, não apenas os colegas da Corte, mas nós também!
Mas por que este viés é singular, se estou dizendo o que todos vimos? É que lembrei de São Bernardo de Claraval, que morreu há quase mil anos, autor da frase “de boas intenções o inferno está cheio”, e que reclamou duramente da arquitetura de seu tempo. Em carta a outro abade perguntou:
“Que querem dizer ao irmão que lê e contempla essas monstruosidades ridículas, essas belezas assombrosas e grotescas e essas deformidades admiravelmente belas que povoam os átrios do mosteiro? A que vêm os macacos volúveis, os lobos furiosos, os tigres malhados, os centauros horríveis, os esgrimistas lutando, os caçadores soprando os seus instrumentos musicais? Numa só cabeça, muitos corpos, e num só corpo, por sua vez, muitas cabeças.”
Ele queria que seus monges se concentrassem na leitura e na meditação, e achava que os enfeites e ornamentações dos prédios distraíam os frades e os padres. Vieram os críticos de arte em seu socorro. As construções de três elementos ou de triângulos eram referências sutis à Santíssima Trindade. Águias, cordeiros, peixes, dragões, maçãs, lírios e um sem-número de outras figurações não eram apenas cópias da natureza, traziam mensagens embutidas.
Mas ele não se conformava com a interpretação. “Ora uma cauda de serpente num quadrúpede, ora um peixe com cabeça de quadrúpede. Noutro lugar, eis uma rês com frente de cavalo e a parte posterior de cabra. Alhures um animal de chifres com a parte de trás de muar.”
Debalde lhe explicavam os motivos que tinham baseado aquelas criações artísticas, nas quais eram vislumbradas múltiplas variedades nas mais diversas imagens. E ele concluía, tristonho e desanimado: “Com mais prazer se lê nas pedras do que nos livros, preferindo-se admirar essas singularidades a tomar a peito os mandamentos de Deus.”
Religioso, buscava a transcendência, se surpreendia com tudo aquilo e exclamava: “Santo Deus, se não se peja das farsas, pelo menos por que não se tem medo dos custos?”.
Para quem teve paciência de ler o artigo até o fim, num tempo em que tudo deve ser rápido e os novos leitores não podem mais concentrar-se por alguns minutos, pois imagens etéreas, veiculadas em televisores, tablets e celulares, distraem sua atenção, que já é pouca, vi nas reflexões de São Bernardo de Claraval uma alegoria do que ocorre no julgamento do mensalão.
Todos sabem que o rol de quarenta mensaleiros denunciados semelha até mais do que disse São Bernardo, parece-se com o hospício imaginado pelo gênio de Machado de Assis em O Alienista. Se o que os quarenta mensaleiros fizeram não é crime, então todos podem fazer o que eles fizeram, impunes, como impunes eles têm ficado até agora, uma vez que a lei é igual para todos!
Ao final de O Alienista, Doutor Simão Bacamarte, o médico que trata dos loucos, se interna no hospício e solta todos os clientes. Louco era ele, não aqueles nos quais diagnosticara a enfermidade e dos quais tratava.
É o que restará à sociedade brasileira, se punição não houver. O Brasil vai virar um gigantesco hospício dirigido por pouco mais de quarenta quadrilheiros!
Mas ainda dá tempo de prestar atenção às admoestações de São Bernardo de Claraval, não por ser santo, mas pelo que escreveu, e ao menos enquanto durar o julgamento deixar de contemplar as serpentes com corpos de vacas, ainda que vacas sagradas, e prestar atenção nos autos!
Se aquela Torre de Papel não servir para provar os crimes, estaremos diante de um quadro sinistro: de um lado, um bando de malfeitores, que outrora dirigiam os destinos do país e que poderão voltar a fazê-lo; de outro, de profissionais altamente qualificados, que entretanto não conseguiram provar nada do que foi denunciado e que todos sabem que eram verdades, mas verdades que precisam ser provadas, e comprová-las requer competência!
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A literatura do mestre Machado de Assis sempre será um catálogo perfeito das sandices brasileiras. O "bruxo do Cosme Velho" enxergava longe - e bem de perto também.
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