Em uma democracia, o interesse estatal nunca deve se sobrepor ao interesse público. No Brasil, infelizmente, existe uma grande confusão entre interesse público e interesse estatal. O interesse público deve observar o bem comum, o interesse de todas as pessoas, sejam agentes públicos ou não. No interesse estatal, vale o interesse do Estado e daqueles que trabalham no poder público.
Os funcionários públicos federais pedem reajuste de 19,99% em 2022. Enquanto isso, a renda dos brasileiros caiu mais 9,7% em um ano. Os estaduais também exigiram reajuste, e ganharam. A conta não é justa. Infelizmente, os servidores públicos possuem um conflito de interesse em apresentar, avaliar e aprovar medidas e políticas que beneficiam eles mesmos. Isso acontece porque é frequente o conflito entre interesse público e o interesse estatal no Brasil.
Os excessivos privilégios criados para atender servidores e agentes públicos podem atender aos interesses estatais e, principalmente, aos interesses privados das corporações e carreiras, mas não atendem o interesse público. A criação de benefícios e privilégios sem lei, que é comum nos três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo) sob o pretexto da autonomia dos Poderes, na verdade é uma forma de burlar o princípio da legalidade, a participação popular e os mecanismos de freios e contrapesos criados justamente para evitar abusos no exercício do poder estatal. Isso também não atende ao interesse público.
Nenhum Poder deveria definir regras em causa própria. Além disso, todos os aumentos de salários, benefícios e pagamentos retroativos deveriam ser baseados em lei ou em sentença judicial transitada em julgado, via precatório. Mas o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou pagamentos retroativos aos magistrados do Rio Grande do Sul referentes a 2005 e 2009: o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) pediu o pagamento de R$ 367 milhões, retroativos, para indenizar 1,1 mil magistrados (mais de 100 mortos), desde que o pagamento por subsídio foi implementado para ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e na Justiça Federal, e por quando foi adotado na magistratura estadual. O CNJ irá recalcular o valor da indenização, que deve ser menor que os R$ 367 milhões exigidos pelo TJRS, mas o precedente é péssimo, pois outros tribunais devem pedir o mesmo em seguida. Mais uma vez, o interesse público fica abaixo do interesse estatal.
Outro exemplo é o monopólio estatal no ensino básico. Isso pode ser ótimo para os sindicatos de professores e para os políticos, ou mesmo para a máquina pública – já que demandam mais concursos, mais verbas e mais licitações –, mas não atende o interesse público, principalmente sob a ótica dos alunos, pais e da sociedade como um todo. Embora o Brasil possua indicadores educacionais muito inferiores aos de países com gastos similares por aluno, ninguém quebra o monopólio estatal no Brasil. Por quê? Nessa horas, o interesse público fica em último lugar.
Nessa linha, como sempre ressalta muito bem o brilhante Salim Mattar, secretário de Desestatização do Ministério da Economia em 2019 e 2020, o art. 173 da Constituição Federal exige que a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só seja permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo.
Ocorre que, na grande maioria das vezes, as empresas estatais foram criadas apenas para atender interesses estatais ou políticos, não para atender relevante interesse coletivo. Agora que a privatização da Eletrobras está mais provável que no passado, a liderança do PT no Senado está pedindo a fusão da estatal com a Petrobras, para que se torne impossível a privatização: mais um exemplo da supremacia do interesse estatal sobre o interesse público.
Precisamos resgatar o conceito de interesse público, diferenciando-o claramente do interesse estatal e dos interesses privados de políticos, sindicatos, corporações e carreiras. É muito comum que o interesse desses grupos esteja em total conflito com o interesse público. Nesses casos, devem existir mecanismos para dar transparência aos conflitos de interesse e mecanismos para solucionar esse conflito sem que o interesse público seja reiteradamente desrespeitado.
Quando esses interesses se confundem, os cidadãos acabam prejudicados. Devem, também, existir formas de mitigar riscos para que os pagadores de impostos não sejam sempre prejudicados. O Brasil possui uma carga tributária proporcional à de países desenvolvidos (de 33,1% do PIB [Produto Interno Bruto]), maior, inclusive, do que a carga tributária dos Estados Unidos (25% do PIB) e da Austrália (27,7% do PIB). Por outro lado, a qualidade dos nossos serviços públicos ainda deixa muito a desejar, sendo muito inferior ao que gastamos. O ataque sistemático ao interesse público fere a nossa cidadania e enfraquece a nossa democracia. Chega de privilegiar os interesses estatais!
Fonte: “Gazeta do Povo”, 05/04/2022
*Por Paulo Uebel
https://www.institutomillenium.org.br/205215-2/
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