A jornalista, escritora e roteirista reflete sobre o que ficará da performance feminina nas Olimpíadas para as mulheres.
Pela primeira vez na história, o Brasil terminará as Olimpíadas com medalhas de ouro apenas de mulheres. Os atletas brasileiros não ficavam de fora do topo do pódio desde os Jogos de Sydney, em 2020. Os motivos para o acontecimento são muitos, e pode-se dizer que as conquistas das atletas femininas brasileiras representam uma vitória coletiva em uma luta que vai muito além do território esportivo.
A poucos dias do fim do evento, ainda há possibilidade de mais ouros femininos, com destaque para o futebol. Por ora, Rebeca Andrade (ginástica artística), Beatriz Souza (judô) e a dupla Ana Patrícia e Duda (vôlei de praia) trouxeram as três medalhas douradas que o país conquistou até agora nessas Olimpíadas de Paris. Entre essas mulheres gigantes, Rebeca tem o título de maior atleta olímpica brasileira da história do país, com seis medalhas no total, sendo duas de ouro.
Para Milly Lacombe, jornalista, escritora e roteirista, essas vitórias refletem séculos de batalhas travadas por mulheres em todo o mundo, o que as iguala em suas diversidades. “Não podemos separar as conquistas de hoje das lutas das nossas ancestrais”, diz. “Os ecos dessas mulheres estão presentes em cada vitória que vemos agora. Foi a luta das mulheres, e não apenas a decisão de comitês, que nos trouxe até aqui.”
Nesta entrevista, Milly Lacombe compartilha suas perspectivas sobre as lições que podemos tirar das vitórias das atletas brasileiras, como a busca por igualdade de gênero nas Olimpíadas foi alcançada, e como essa batalha árdua, cheia de percalços e derrotas no caminho, pode inspirar mudanças em outras áreas da sociedade.
Estamos vendo mais igualdade de gênero nessas Olimpíadas, sim. Ela foi conquistada na canetada, porque o COI [Comitê Olímpico Internacional] se propôs a fazer isso. Mas aí, também, precisamos entender: por que isso aconteceu? Por que um dia os executivos do comitê acordaram felizes e quiseram resolver tudo para as mulheres? Não. São lutas que travamos ao longo de muitos séculos.
Não podemos separar, por exemplo, a Rosa Parks dessa luta. Ela se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um homem branco na década de 1950. A lei dizia que se um homem branco entrasse, ela teria que se levantar e o lugar seria dele. Ela se recusou, foi presa e esse ato de desobediência civil iniciou um movimento muito barulhento nos Estados Unidos.
Não dá para separar, por exemplo, a luta das mulheres na Idade Média, que batalhavam para não serem queimadas. Houve um genocídio contra corpos femininos na história. Não podemos separar a história da Sissi, que raspou o cabelo em protesto aos dirigentes machistas, que eram chefes dela, quando era a melhor jogadora do mundo. Não podemos separar a história da Marta, que saiu do semiárido xingada por todos de mulher macho, e hoje está aí, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo. Além da história das que ficaram pelo caminho, das que foram presas e apanharam porque estavam jogando bola num Brasil que as proibia de fazer isso.
Nada é separável do que está acontecendo agora. A vida é como uma corrida de bastão: passamos para alguém seguir e vamos em frente. Então os ecos das nossas ancestrais estão nessa conquista. Não foi o COI, não foi o COB. Foi a luta das mulheres.
O que fica de lição com essa conquista — sobretudo a do futebol feminino, que já é imensa, mas o ouro pode vir — é que nada está perdido. Até quando entendemos que tenha sido perdido, não está. Nem no esporte, nem na vida. Porque podemos olhar para a história longa e a história curta. Na longa, a seleção feminina batalha há três décadas por visibilidade, respeito e afeto. Chegou a duas finais olímpicas, perdeu ambas. Pode agora ganhar a sua, e eu realmente acredito que isso vai acontecer.
Mas, ainda assim, se não acontecer, nunca sabemos quantas derrotas e quantos fracassos estão dentro de uma enorme conquista. E isso fica de lição para essas mulheres, que estão lá, jogando, e para nós também, que estamos aqui, torcendo por elas e pelo futebol feminino do Brasil e do mundo.
Existe uma consciência de classe das jogadoras de que elas precisam ser muito unidas, porque nada foi dado, foi tudo conquistado com muita luta e muito sofrimento. E a gente precisa seguir juntas para que mais seja conquistado.
Acho que é a união. Crescemos ouvindo, de todos os lados, que “mulher não sabe ser amiga de mulher. Mulher rivaliza com mulher. Homem é amigo de homem, homem é parceiro. Mulher, não”. Então, quando entendemos que a força da união e da amizade entre as mulheres é uma das maiores, se não a maior do mundo, a gente compreende o caminho e por que tentam nos separar. Porque uma das ferramentas básicas do machismo é rivalizar mulheres, e porque caímos facilmente, até hoje, nisso.
Então, acho importante entender que temos o feminismo em comum. O que me une à Leila Pereira é que nosso chão é comum, mesmo que sejamos diferentes. Existe um ambiente de sofrimento que eu e ela sabemos qual é. É por isso que a Angela Davis diz que quando uma mulher negra se movimenta, ela movimenta toda a sociedade. Como no Brasil não separamos raça de classe, a luta de uma mulher negra tem que ser a minha também, porque quando ela se move, ela movimento tudo. Para mim e para a Leila Pereira.
Acho que o interesse pelo esporte feminino cresce porque tem apoio. Ninguém nasceu gostando do futebol masculino, por exemplo. No meu caso, meu pai me pegou pela mão, me levava aos jogos, me explicou tudo. Eu conseguia ver jogos na TV, ouvi-los no rádio. Então é algo construído, e essa construção nunca foi dada para esportes femininos. Se não tem apoio, não tem televisionamento, não tem interesse. Isso está mudando porque, com o barulho que estamos fazendo, os patrocinadores perceberam que é melhor investir em algo que está acontecendo e crescendo.
Quando o patrocinador investe, a TV e a mídia vão atrás. E quando isso acontece, a criança começa a ter contato. Então hoje, por exemplo, com a Rebeca Andrade, muitas crianças devem estar pedindo para o pai e a mãe matricularem elas na ginástica artística. Quanto ao futebol feminino, as meninas estão pensando “eu posso, eu quero uma chuteira, eu vou jogar”. E assim a gente movimenta, e haverá mais Rebecas, mais Martas. E, com isso, mais audiência e mais sonhos. Estamos dando às mulheres o direito de sonhar. Um direito que muitas gerações não tinham e foram na “marreta” mesmo, cavando.
O que mais está me inspirando é ver essa união entre as mulheres. É ver o apoio das ginastas gringas à Rebeca. É ver a Bia Souza sendo treinada pela antiga rival. É ver a israelense que perdeu para a Bia Souza colocar a cabeça no ombro dela, em sinal de afeto e amor, depois de perder a luta. É ver a jogadora de handball do Brasil carregar no colo a rival machucada. É ver as duas norte-americanas que perderam para a Rebeca se curvarem a ela no pódio. É ver a força dessa união.
A gente sabe que as coisas não estão ganhas por completo ainda, e que precisamos dessa união. Sabemos disso conscientemente ou intuitivamente, mas sabemos. Sabemos que somos mulheres e que em Paris, São Paulo, Nova York ou na Cidade do Cabo, passamos pelas mesmas coisas. Sabemos que ser mulher é um país, uma nação. Nossa nação é ser mulher. Isso é o que de mais bonito está vindo lá de Paris para mim.
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