Vejo muita gente dizer que o desmatamento da Amazônia causou a seca no Sudeste. O dano que provocamos à floresta teria desligado a “bomba de umidade” e interrompido “os rios voadores” que mandam umidade para Minas Gerais e São Paulo. “Esse crime ambiental tem a ver com a falta d’água na maior cidade da América Latina “, disse o Fantástico recentemente. “Nos aproximamos de um futuro desértico e a culpa é toda nossa”, concluiu outra reportagem em tom de lição de moral.
Nada disso. A ideia de que há um culpado para a seca não tem a ver com a Amazônia. Tem a ver com os astecas.
Sim, com os astecas. Quando sofriam uma colheita ruim ou uma estiagem no Vale do México, os astecas julgavam o infortúnio causado pelo clima como um castigo. Achavam ter irritado os deuses e, para acalmá-los, realizavam centenas de sacrifícios humanos, atirando corpos decepados pelas escadarias das pirâmides de Tenochtitlán.
Como toda civilização que passou pela Terra, os astecas caíram na “falácia do mundo justo”, a tendência de acreditar que o universo segue uma lógica moral. Por causa dessa tendência cognitiva, é tão fácil para nós julgar desgraças como castigos. Se vivemos uma situação ruim, é porque fizemos por merecer.
Quando alguém comete a bobagem de culpar uma vítima de estupro (“foi horrível, mas ela não deveria sair por aí com uma saia tão curta”) ou de um assalto (“não precisava sair por aí ostentando um relógio tão caro”), não está expressando só um machismo ou marxismo da pior espécie. Também se deixa levar pela ideia de que uma força oculta pune quem não se comporta.
Como os astecas de oito séculos atrás, tem muita gente encarando a seca do Sudeste como um castigo. Se estamos sofrendo hoje, é porque nos comportamos mal no passado. Qual foi, então, o pecado que cometemos? Deve haver algum, é preciso procurar… Sim, claro! O desmatamento da Amazônia! Difícil resistir à tentação de relacionar a desgraça da seca à maldade do desmatamento.
Mas uma coisa não tem a ver com a outra. Conversei com três especialistas em dinâmica climática e eles foram categóricos. “Grande parte da comunidade científica concorda que não é possível fazer uma relação direta entre desmatamento da Amazônia e a seca no Sudeste”, diz Tercio Ambrizzi, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.
“A afirmação de que as secas do Sudeste estão sendo causadas pelo desmatamento é leviana, sem base científica e contrária ao bom senso”, afirma Luiz Carlos Molion, representante dos países da América do Sul na Organização Meteorológica Mundial (OMM). “A umidade para as chuvas do Sudeste não é produzida na Amazônia. Ela vem do Oceano Atlântico e apenas passa sobre a floresta. As raízes das árvores consomem mais umidade do que as folhas liberam para a atmosfera.”
“O resultado de estudos dos últimos dez anos mostra claramente que o desmatamento atual não tem nenhum impacto no regime de chuvas do Sudeste”, me disse Francis Wagner Silva Correia, coordenador do núcleo de Modelagem Climática do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Mais que a floresta, o que garante chuvas no Brasil é a Cordilheira dos Andes. Caso ela não existisse, a umidade que entra na Amazônia pelo Atlântico seguiria direto para o Pacífico. Principalmente no verão, época de mais chuvas na região Norte, a umidade bate na cordilheira e volta sentido sul, alimentando as chuvas de verão de boa parte do país.
Esse fluxo não se desligou em 2014. A diferença é que, por causa da bolha de calor que misteriosamente se instalou no Sudeste no verão passado, as chuvas caíram antes de chegar a Minas Gerais ou São Paulo. Enquanto as represas esvaziavam em São Paulo, o rio Madeira teve a maior cheia já registrada.
Há cientistas que especulam até mesmo que haveria mais chuvas no Sudeste caso toda a floresta se transformasse num enorme estacionamento de shopping. “Na hipótese absurda de se desmatar completamente a Amazônia, a rugosidade da floresta deixaria de existir, choveria menos por lá e um fluxo de umidade um pouquinho maior que o atual seria transportado para o Sudeste, talvez aumentando as chuvas”, diz Molion.
Calma lá: não estou dizendo que devemos parar de nos preocupar com a floresta e asfaltar as margens do rio Negro. Há muitas outras razões para se preservar a Amazônia que este artigo não derruba. Mas não dá pra deixar de lado o rigor científico só para sensibilizar o público. Quem faz isso troca a sensatez por uma noção de culpa tão mística quanto a dos astecas.
http://veja.abril.com.br/blog/cacador-de-mitos/2014/12/12/o-mito-do...
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