Passada a aprovação do plano de recuperação judicial da Americanas, na terça-feira passada (19), a varejista terá um desafio tão complexo quanto ter obtido a adesão dos credores na assembleia geral. A companhia terá de colocar de pé uma nova estrutura de governança corporativa junto aos bancos credores, seus novos sócios a partir de 2024, e por para rodar um modelo sustentável de geração de caixa – algo que inexiste hoje.
Nos últimos dias, o Valor entrevistou executivos de fornecedores e varejistas que pediram recuperação na Justiça para detalhar as dificuldades desse processo, nos meses após a homologação do plano, e identificar eventuais cartas na manga que a Americanas pode ter nos próximos meses. “Renegociar dívida numa recuperação é até fácil, porque você chama um, alinha com outro, e no fim ninguém quer puxar o gatilho”, afirma um ex-diretor financeiro de uma rede que pediu recuperação em 2020. “Difícil é a realidade de uma varejista após o plano passar”, diz.
Os termos foram aprovados por 97% dos créditos em aberto na assembleia, e a expectativa é que a homologação do plano ocorra logo após o recesso do Judiciário, que termina dia 20 de janeiro.
Isso feito, serão 45 dias para chamar assembleia geral extraordinária (AGE) para um aumento de capital de R$ 12 bilhões do trio de acionistas de referência – Beto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles – e depois, são mais 30 dias de prazo obrigatório após a chamada. Com isso, já será metade de abril, e então serão mais 30 dias para os acionistas minoritários decidirem aderir ou não à emissão.
É relevante mapear a fase pós-aprovação, em parte, pelo ineditismo do caso. Pela primeira vez na história recente do varejo, os maiores bancos no país se tornarão acionistas de uma varejista em recuperação, algo inusual porque trata-se de um setor que nunca agradou as instituições, pela baixa rentabilidade e alta sensibilidade ao sobe e desce dos juros.
“Diversos planos de recuperação colocaram na mesa a proposta para grupos como Bradesco, Itaú Unibanco e Santander virarem sócios, transformando dívida em ‘equity’, mas isso era descartado logo de cara. Não sabemos ao certo como isso vai funcionar lá dentro agora”, resume um fornecedor de doces da Americanas.
Os bancos que entrarem na capitalização passam a ter a posição de credores, de sócios relevantes na rede, com 48,2% da empresa (caso os minoritários não acompanhem a transação), e eventualmente, de agentes financeiros, já que no dia a dia, a empresa pode recorrer a eles, e a outros bancos, para cotar linhas de crédito. O trio terá 49,3 % da rede se os minoritários não exercerem – hoje é 30,1%.
Informações anexadas ao acordo de apoio ao plano, assinado em novembro pelos credores Bradesco, Itaú Unibanco, Santander e BTG, mostram uma formação com sete membros, sendo quatro ligados ao trio e três independentes, mesma estrutura atual. A chapa será votada em outra AGE, provavelmente em junho, 10 dias após o fechamento do aumento de capital.
Os bancos estão de acordo com os nomes a serem indicados pelas partes, mas não há membros ligados diretamente a eles, diz fonte.
As instituições preferiram “não se envolver na estratégia e em determinadas responsabilidades do ‘board’”, diz uma pessoas a par do tema. O mandato será de três anos.
Pelo documento, a chapa é composta por Eduardo Saggioro, Luiz Fernando Edmond, Cláudio Barreto Garcia, Yuiti Matsuo, Paula Cardoso, Maria Rita Coutinho e Vanessa Claro Lopes.
Saggioro é sócio da LTS Investments, empresa do trio, e tanto ele quanto Garcia já estavam no colegiado anteriormente, como indicados dos três acionistas. A empresa tem afirmado que não há provas de ações fraudulentas contra membros do conselho.
Pela primeira vez na história recente do setor, bancos se tornam sócios de varejista em RJ
Saem do colegiado Sicupira, que, por anos, foi o sócio mais perto do dia a dia da operação, e Paulo Lemann, filho de Jorge Paulo. Entraram no órgão Edmond (ex-CEO da Ambev e executivo de confiança do trio) e Matsuo (investidor da LTS, empresa dos três acionistas).
Foi mantido um dos conselheiros independentes (Vanessa Lopes), que esteve no comitê de auditoria no período em que ocorre a investigação. No casos de Lopes e Matsuo, a primeira foi conselheira independentes na Light até meses atrás, e o segundo é membro independente da empresa de energia, cujo um dos maiores acionistas individuais é Sicupira. Procurados para comentar, o trio de sócios, Bradesco, Itaú Unibanco, Santander e BTG não se manifestaram.
A Americanas diz, em nota, que todos os nomes são de consenso entre os signatários do acordo com os bancos credores para a sua submissão à assembleia.
Os acionistas que fizerem a capitalização ficam impedidos de vender parte da posição (33% das ações) por três anos, o que deixa claro prazo de permanência. A participação será liberada em fatias de 6,67% a cada semestre.
Para credores fornecedores e ex-diretores de redes em recuperação, a capacidade de a empresa gerar caixa, quando passar a operar já sob as condições do plano, e o funcionamento da governança são aspectos pouco claros. “Em casos de recuperação, saber como a governança vai proceder após mudanças societárias é fundamental para retomar confiança dos stakeholders”, diz um empresário de uma rede em recuperação.
“Como ficam os comitês que exercem os controles, e que não funcionaram? E se os bancos ficarem fora do ‘board’ mesmo, também não terão posição no comitê de auditoria, como uma espécie de ‘watchdog’?”, diz esse empresário. A Americanas teve suspenso o selo de Novo Mercado pela B3.
Um ex-diretor financeiro cita outra questão de governança no dia a dia dos processos internos. “Eu penso no risco de algumas zonas nebulosas. Por exemplo, quando a área financeira for cotar empréstimo daqui a um tempo, num cenário de normalização do negócio, e fechar com um banco não parceiro, pelas melhores taxas, ouvirá do banco apoiador por que não fechou com ele?”, diz a fonte. “É preciso ter em mente as posições independentes de cada um”.
Bancos possuem áreas autônomas, reguladas por governanças e controles internos próprios.
A Americanas relata no plano que irá observar as melhores práticas de governança, e as regras deverão ser atualizadas se necessário para manter esse padrão. Ainda há entendimento interno que já houve avanços nos controles e na transparência após o início da crise. “A companhia não foi abandonada. A gente entende o lado das dúvidas, mas o que já foi conseguido, a aprovação com 97% dos créditos, foi um feito e mostra o rumo correto”, diz fonte próxima do trio.
Outro aspecto lembrado por um credor fornecedor, no setor de doces, departamento “core” da varejista, envolve o futuro comando da rede, definido pelo conselho.
Não se descarta a hipótese no mercado de que a rede venha a definir, em algum momento, um nome mais próximo do varejo e com relações com a indústria, ou com o braço digital, algo fundamental nessa transição para um novo modelo comercial, afirma esse credor.
A empresa teve sua diretoria encolhida neste ano, e parte da equipe que fica abaixo da vice-presidência comercial saiu ou foi dispensada. Há uma percepção de que a presidência atual deve focar mais no início de uma reestruturação e no alinhamento junto aos credores. Leonardo Coelho, CEO da rede, veio da Alvarez & Marsal, especializada em reestruturações.
A necessidade de criar um novo modelo de negócio com fornecedores e com lojistas do marketplace também são temas considerados parte desse desafio do grupo.
Por anos seguidos, a Americanas atuou se financiando em operações bancárias com prazos de pagamento muito longos à indústria. Isso era parte de um sistema fraudulento que envolvia a adulteração dessas transações e das verbas de propaganda negociadas com os fornecedores, como forma de melhorar o seu resultado.
Esse sistema teve que ser desmontado, e outro foi se estabelecendo baseado em condições tradicionais de mercado. Mas isso não está completamente formado, e precisará funcionar em 2024, quando dependerá da própria geração de caixa.
Neste ano, entraram R$ 1,5 bilhões de um financiamento para grupos em recuperação (chamado “DIP”) do trio de sócios, que ajudaram a sustentar o ciclo de caixa para Páscoa e Black Friday.
A questão é que hoje, o pagamento de praticamente toda a compra ocorre à vista, porque a rede não opera mais com financiamento via risco sacado, uma das peças centrais do esquema fraudulento. Só que a compra à vista dos fornecedores não será mantida, até porque é insustentável.
Neste redesenho, o plano de recuperação define regras que apoiarão o novo modelo comercial de uma rede focada na venda nas lojas físicas e no marketplace, com itens de terceiros, e uma estratégia menos voltada a itens pesados, como eletrodomésticos.
Ocorre que, no dia a dia do negócio, considerando a dinâmica do varejo, as questões acertadas no plano não são tão “preto no branco”, como resume um ex-diretor comercial de uma rede de eletrônicos que esteve em recuperação.
No plano aprovado, credores têm de voltar a estender os prazos de pagamento para a rede ao praticado em contrato, em 2022, no acumulado de 12 meses. Trata-se de um intervalo de 60 a 90 dias – e não aquele da gestão anterior, de mais de 200 dias para pagamento.
Pode ser bom para a indústria, mas ao mesmo tempo, os fabricantes acabavam vendendo mais caro para a rede porque sabiam que demorariam a receber, e isso melhorava as suas margens.
“O jogo será outro no ano que vem”, diz o ex-diretor comercial. “Como a indústria não pode vender a eles mais caro, como fazia, tentará ganhar rentabilidade de outra forma na negociação. E como eles perderam escala mesmo em itens ‘core’ no on-line, não será fácil se manterem competitivos”.
Outra hipótese, citada por uma fonte, é o fabricante concentrar bonificações e lançamentos nos concorrentes, porque o vendedor não é obrigado a destinar à varejista os itens de alta venda. “A fraude nas verbas deixou uma cicatriz grande nessa relação. O acordo aprovado prevê o retorno das verbas, mas não vejo isso voltando rápido”, diz um fabricante de eletrodomésticos para classes C e D.
Internamente, a Americanas deve manter a postura de parceiro nas negociações, porém considera aplicar multa permitida no plano, caso haja resistência maior de credores a cumprir os termos no dia a dia, apurou o Valor.
De forma geral, há uma percepção no setor de que há uma vantagem para a Americanas hoje, apesar do cenário ainda difícil. O varejo local passa dificuldades, há diversas redes endividadas, então os credores precisam da Americanas operando. Também é preciso considerar que a operação física das Americanas é um negócio altamente resiliente, dizem todas as fontes ouvidas pelo Valor.
A varejista ainda recuou da ideia de vender a Ame, carteira de serviços digitais, algo crucial para plataformas on-line, o que a ajuda a proteger a sua capacidade de reação. A intenção é vender a Hortifruti Natural da Terra e a Uni.co.
Na prática, todo esse processo depende do fôlego de caixa que a varejista terá que retomar com a transição de modelo comercial.
Após o aumento de capital de R$ 12 bilhões do trio, previsto para ser concluído em maio, R$ 5 bilhões referem-se a financiamentos “DIP” (Debtor-in-Possession). Deste valor, faltam entrar R$ 3,5 bilhões, a serem injetados em fevereiro. Então, sobram R$ 7 bilhões.
Desta soma restante, R$ 2 bilhões irão para um leilão reverso (vencem os que oferecem os menores preços) da dívida de credores, e R$ 6,7 bilhões para recomprar dívidas com desconto. Ou seja, no final são R$ 8,7 bilhões, acima dos R$ 7 bilhões disponíveis.
Portanto, ainda faltariam recursos, e a diferença deve vir, ao longo dos meses, da recomposição do capital de giro nas negociações com fornecedores, apurou o Valor.
Sobre os desafios da empresa, a Americanas informa, em nota, que o plano teve apoio de 91,1% dos votos e 97,2% dos créditos, o que mostra ser “factível e bem aceito entre partes”. E a sua homologação destrava pagamentos e possibilita a transformação da rede.
Diz que a capitalização dos acionistas e as negociações com credores abrem bases “para a reorganização operacional e financeira” da rede, com a renovação do relacionamento e da confiança com credores. Ainda diz que os desafios pós-homologação foram endereçados nos termos do plano e a experiência da atual gestão é um “ati vo valioso para sua condução”.
Por Adriana Mattos |
Fonte: Valor Econômico
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