Apenas o penitente passará” diz o salmo. Mas, no Brasil (claro!), devo complementar: para além da penitência, é necessária paciência. Ciclos eleitorais têm uma capacidade formidável para destruir a lógica básica e o raciocínio crítico de um cidadão em qualquer lugar do mundo, de fato. Mas é nos traços tupiniquins que garantimos nossa especialidade – e singularidade. Pois somam-se às inerentes paixões político-eleitorais um ambiente com teses econômicas dos anos 1960 já há muito superadas e uma horda de artistas alçados à categoria de comentaristas políticos pelas redes sociais. Logo, o sétimo círculo do inferno parece ficar bem mais perto do que outrora se imaginava. Sacrifícios são exigidos, obviamente. E a oferenda da vez? O conceito de mercado. Reitero: apenas o penitente e paciente passará.
Para aqueles que só agora estão se familiarizando à discussão, o resumo da ópera é simples: nosso recém-eleito Presidente Lula andou apregoando disparates econômicos por aí. Mandou às favas conceitos de responsabilidade fiscal e prometeu gastos públicos ainda mais desequilibrados e insustentáveis do que o nosso singelo orçamento trilionário pode comportar. Uma discussão de bagatelas bilionárias. Naturalmente, a reação foi imediata e o mercado precificou: a bolsa de valores despencou e nossa moeda pagou o pato com um salto de desvalorização cambial. O contraste ideal foi conferir como o resto do mundo caminhou em sentido contrário ao abençoado caminho da Terra de Santa Cruz na última semana. É do jogo. Mas não é sobre tais tão frequentes variações que quero falar. Minha prosa para com você, caro amigo leitor, é conceitual.
Mente vazia sempre foi residência habitual de Belzebu. Esse hábito, contudo, está longe de ser exclusivo à vacância cerebral. Aparentemente, morada muito interessante e igualmente danosa pode se fazer na cabeça de celebridades brilhantes em suas respectivas áreas de atuação, mas cujo grau de conhecimento em política e economia equivale às minhas habilidades em cantar, dançar e atuar: nulas. Eis que diante dos indicadores de preço e cotações cambiais mais avermelhados, começaram a brotar frases como “esse tal ‘mercado’ precisa tomar rivotril” ou “esse nosso ‘mercado’ é muito estressadinho”. Especial colocação chamou-me atenção: “O ‘mercado’ se sentiu ofendido com a fala de Lula. Mercado, para quem ainda não sabe, é tudo o que não é povo”. Pois, repita comigo, caro amigo leitor: apenas o penitente e paciente passará. Friso no “paciente”.
A pérola conceitual de que “mercado é tudo que não é o povo” foi excretada por um ex-apresentador de televisão. Até quando, ó estúpidos, amareis a estupidez? Pois não faltaram aplausos a este nosso contemporâneo pensador. As redes sociais, deveras, são instrumentos fantásticos para dar asas aos mais parvos e tacanhos interlocutores. Por outro lado, claro, é por esta maravilhosa rede interligada de dispositivos que podemos difundir conhecimento. E, hoje, dedico meus pixels e megabytes à melhor compreensão do que é o mercado.
Mercado não é um local, uma entidade ou uma personalidade: trata-se de um processo. Não se deixe dominar pelo imaginário coletivo comum de meia dúzia de homens gordos capitalistas acendendo charutos com notas de dólares. Não pense que os gestores ou banqueiros da Faria Lima sejam sinônimo de mercado – ainda que, por vezes, vocalizem tendências econômicas como executivos e profissionais do ramo. Ao contrário do que pensa o intelectual moderno, o mercado é, sim, sinônimo de povo.
O que faz, afinal, a bolsa subir ou cair? Em síntese, as expectativas futuras de geração de caixa das companhias. Isto é, se a perspectiva futura é ter pessoas com mais renda, consumindo mais, com estabilidade e tranquilidade, a bolsa de valores – que congrega uma série de empresas representativas dos mais variados setores da economia brasileira – tende a se valorizar. Bolsa em alta é reflexo direto na vida do povo: é melhor perspectiva de investimentos, de geração de emprego, de consumo e maior renda. O índice de alta da B3 é mero indicativo de um cenário mais ou menos positivo para os trabalhadores e consumidores – e, portanto, não é de interesse apenas de quem investe ou administra fundos de ações na Faria Lima. Mas, lembremo-nos que as decisões de cada pessoa para consumir, trabalhar, investir ou poupar são altamente influenciadas por fatores como juros, câmbio, inflação, impostos e contas do governo. É nessa intersecção que as catastróficas falas do Presidente recém-eleito impactam a perspectiva futura.
Uma operação de crédito estruturado realizada na Faria Lima, por exemplo, pode encher os bolsos de gestores de fundos de investimento ou bancos. Esse é o glamour que vemos. Talvez, não tão visível aos olhos citadinos seja a clara percepção de que um título de investimento, em realidade, é um canal direto de geração de empregos, renda e consumo para trabalhadores do agronegócio ou da construção civil – caso estejamos falando de um CRI – Certificado de Recebíveis Imobiliários ou CRA – Certificado de Recebíveis do Agronegócio, por exemplo. A Faria Lima interessar-se-á pelas taxas de administração, estruturação, formalização e retorno do título, naturalmente. Promessas de descalabro fiscal e déficit nas contas públicas podem afugentar tais oportunidades do mercado financeiro. Mas já não se deixe enganar, amigo leitor: o maior impactado dessa história não será o sujeito de colete e sapatênis – e sim o homem do campo ou o trabalhador da indústria cujos empregos podem ser colocados em risco pela falta de financiamento para investimentos.
O mercado, portanto, não é partidário de um ou de outro. É, sim, um processo dinâmico e complexo que engloba trilhões de interações, todos os dias, a todo momento, para formar preços, índices ou taxas. Contratos futuros e operações de hedge feitos na Faria Lima, em sua essência, serão definidos pelo comportamento de milhares de Srs. João, agricultor de soja e milho, e de Donas Lourdes, consumidora de farinha de milho ou óleo de soja, bem como de tantas outras figuras anônimas invisíveis aos críticos (e tolos) do tal “mercado”. Por trás dos índices de bolsa e dólar, estão milhões de brasileiros que podem ter vidas mais ou menos confortáveis – a depender da sanha intervencionista do governante eleito em atrapalhar o fluxo de recursos entre poupadores e tomadores.
Na dúvida, pense sobre suas próprias decisões. Se o governo passar a gastar mais do que arrecada, iminente aumento de impostos começa a se aproximar. Isso mudará seus comportamentos, não? Caso não aumente impostos, a máquina financiar-se-á via inflação. Isso mudará seus hábitos, certo? Pois, assim, explica-se como simples vocábulos, quando vocalizados pelo sujeito que detém a caneta, podem causar tanto rebuliço no País (e digo País, e não mercado, para que você, amigo leitor, tenha clareza da abrangência dos impactos). Paciência é virtude. Para o brasileiro, é também condição mínima de subsistência. Força! Passará apenas o penitente (e paciente)!
André Bolini é formado em Administração de Empresas pela FGV-SP e estudante de Direito pela USP. Com experiência no mercado financeiro, já trabalhou com a estruturação de títulos e análise de crédito do agronegócio. Sempre em busca de real impacto na sociedade, como ativista político em prol das liberdades econômicas e sociais
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