Um relato sobre como os detalhes – por menores que sejam – fazem uma grande diferença. E sobre como muitas vezes eles não são percebidos.
Imagem via Frederico Antonio Borges Junior
“Se pararmos para pensar nas pequenas coisas, conseguiremos entender as grandes.” (José Saramago, em As Palavras de Saramago)
No dia 22 de agosto, a professora e pesquisadora Sylvie Debs, da Universidade de Estrasburgo (Université de Strasbourg, na França), esteve presente na Universidade Federal de Sergipe para a Conferência Inaugural do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cinema e Narrativas Sociais (Mestrado de Cinema) da instituição. Com o auditório lotado, a professora relatou sobre sua experiência em analisar a relação entre cinema e literatura de cordel no Brasil.
Acompanhei a Conferência ao lado de dois amigos, Lucas Fontes e João Paulo, ambos ingressantes de graduação na UFS e também conterrâneos da cidade interiorana de Fátima, na Bahia. Depois que Sylvie Debs finalizou sua fala, foi aberto o espaço para os possíveis comentários e questionamentos por parte da platéia, como é habitual em tais eventos. Dentre aqueles(as) que resolveram indagar ou comentar algo a respeito da obra e/ou da experiência da professora, considerada “uma das maiores especialistas de cinema brasileiro na França”, dois detalhes nos chamaram atenção: primeiro, que a maioria deles(as) eram professores(as) da instituição e do próprio Programa; segundo: que nenhum dos comentários começou com um “Boa tarde, gostaria de parabenizá-la pela apresentação...”.
“La vida me enseño una cosa: cada ser humano es una unidad pero nadie es más que nadie…” (José Mujica, ex-presidente e senador uruguaio, durante o VI Fórum Regional Esquipulas) Imagem por J. Valle y M. Toc
Pode parecer estranho que tenhamos dado especial atenção a este – muitas vezes considerado mero – detalhe. Todavia, mais estranho ainda para nós são as pessoas não darem atenção a isto (principalmente em um lugar de formação considerado “superior”). É como se os pequenos atos de gentileza aprendidos durante aquela formação de base – no seio familiar, entre os amigos, nos primeiros anos da escola – fossem esquecidos neste admirável mundo novo. Uma nova ordem de fatores e valores nos é apresentada e exemplificada por meio das ações pedagógicas presentes neste espaço, e assim vamos apreendendo novas formas de nos relacionarmos com o outro – mesmo que em certos casos essa nova forma de relação seja esboçada justamente por ações como a descrita anteriormente.
“O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.” (José Saramago, em entrevista ao jornal Diário de Noticias, em 11 de agosto de 2009) Imagem via kdfrases
Quando saímos da conferência e conversávamos sobre essa questão, Lucas mencionou: “Fosse eu, num tinha isso não, era: ‘Boa tarde, primeiro gostaria de parabenizar por sua fala...’. Minha educação veio de casa, se eu não desse bom dia aos outros ou falasse por favor ou obrigado, minha mãe ensinava era no tapa”, e rimos. Será isso que falta hoje em dia, um ensino baseado no método do castigo corporal? “Venha cá seu muleque, que você vai aprender a tratar bem os outros...”. Não acreditamos ser necessário passar por tal método para dar atenção a certos detalhes, até porque o exemplo é uma forma de ensinamento mais eficaz que qualquer outra. Então, com mais exemplos talvez possamos mudar um pouco esse panorama. Imagine só se um dos doutores, antes de fazer seu comentário, parasse por um instante para então dizer: “Boa tarde a todos. Professora, meus parabéns pela conferência...”, muito provavelmente os demais presentes notariam algo de diferente em relação aos comentários anteriores.
“Reconhecer falhas próprias ajuda a perdoar falhas alheias.” (Eduardo Marinho)
Na universidade (e não apenas nela), identificamos e compreendemos aspectos que compõem a rotina acadêmica que torna tão evidente as posições dos sujeitos dentro de seu espaço de atuação (por exemplo, compreendemos desde cedo que há uma hierarquia a ser mantida e uma burocracia a ser aceita; e um jogo de títulos e status em busca de mais poder entre seus próprios pares – do doutor que “tudo sabe” ao “limpador de bosta”, como se autodefine um dos funcionários com mais tempo de serviços prestados à UFS, seu Carlos, que “nada sabe”.
“Sou biólogo e viajo muito pela savana do meu país. Nessas regiões encontro gente que não sabe ler livros. Mas que sabe ler o mundo. Nesse universo de outros saberes, sou eu o analfabeto.” (Mia Couto) Imagem via O blogue que ninguém lê!
A pretensão aqui não é julgar aqueles que fizeram os comentários no referido evento. De forma alguma, até porque também não nos colocamos acima dos outros e tampouco somos imunes a erros e falhas. Na verdade, o intuito da reflexão é de ordem maior: questionar uma cultura acadêmica que tantas vezes tenta nos condicionar a hábitos como este a qual nos referimos. Enquanto estão todos muito (pre)ocupados com suas pesquisas e estudos, às vezes é comum (re)produzir esse tipo de situação. Dessa forma, corre-se o risco de se considerar natural uma cultura que privilegia a competição, arrogância, inferiorização e insensibilidade em relação ao outro, dentro daquilo que poderíamos denominar de universidade ao avesso, para lembrar a escola do mundo ao avesso descrita por Eduardo Galeano.
“Al fin y al cabo, somos lo que hacemos para cambiar lo que somos.” (Eduardo Galeano) Imagem via Pinterest
Neste contexto, tentamos nos autoavaliar constantemente para não correr o risco de também (re)produzirmos aquilo que criticamos e de perder a capacidade de crítica e autocrítica, necessárias ao nosso processo formativo. Ser hoje melhor do que fomos ontem, para amanhã tentar ser ainda melhores; sem que, para isso, tenhamos de deixar de lado os valores e princípios universais que tornam o mundo mais suportável e a vida mais significativa.
Marisa Monte - Gentileza
“[...] um fato apenas deve ser destacado como notável e espantoso: como na instituição acadêmica a totalidade dos alunos e dos professores, à semelhança de um gigantesco jogo de esconde-esconde, passam uns pelos outros e nunca se enxergam.” (Walter Benjamin, em 1915)
Gif do filme "O Show de Truman" (The Truman Show, 1998, de Peter Weir)
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