A estrutura sindical brasileira enfrenta hoje os maiores desafios desde sua consolidação na era Vargas, o que pode acarretar tanto seu virtual desaparecimento quanto seu renascimento militante.
Desde sua incorporação como parte do Estado corporativista nos anos 1930, a estrutura sindical brasileira se apoiou em um tripé. Primeiro, é necessário o reconhecimento pelo Estado da entidade sindical, dando à esta a capacidade de ser beneficiada pelo imposto sindical. Segundo, a entidade sindical representa todos os trabalhadores, independentemente da filiação individual, junto aos empregadores e ao Estado, fazendo que os acordos coletivos sejam aplicados a todos os trabalhadores de determinada categoria, o mesmo ocorrendo com as ações coletivas impetradas pelos sindicatos. Em terceiro lugar, a existência na legislação do conceito de unicidade sindical, que estabelece que uma determinada categoria, em determinada base territorial, só pode ser representada pelo sindicato portador do reconhecimento estatal exclusivo, não havendo a possibilidade de concorrência entre entidades.
Tal configuração mostrou-se extremamente resiliente e, desde sua incorporação na legislação trabalhista durante o Estado Novo, passando pelos breves períodos de democracia e pelo longo período autoritário, pelas reformas neoliberais e chegando aos governos do Partido dos Trabalhadores, nenhum governo se dispôs a alterá-la de forma significativa. Em decorrência dessa estabilidade e capacidade de mobilização de recursos financeiros, os sindicatos brasileiros emergiram no século XXI sendo reconhecidos como atores sociais relevantes na formulação de políticas públicas e como força política significativa. Além disso, firmaram-se como referência dos trabalhadores na luta por direitos negados pelos patrões e na prestação de serviços sociais.
Por outro lado, essa configuração mostrou-se tão estável também por atender a interesses nem sempre aderentes aos dos trabalhadores. Ela incentivou o fracionamento das entidades sindicais em categorias de trabalhadores cada vez mais estreitas e em bases territoriais cada vez menores, nos levando a ter em 2017, segundo o Ministério do Trabalho, aproximadamente 11,5 mil sindicatos de trabalhadores no país, com muitas dessas entidades existindo apenas para permitir a arrecadação do imposto sindical por agentes privados alheios aos trabalhadores. A necessidade de reconhecimento estatal para essa arrecadação compulsória gerou a comercialização ilegal das “Cartas Sindicais” nos corredores do Ministério do Trabalho. O crescimento da disparidade entre a representação de fato e a de direito afastou a grande maioria dos trabalhadores da filiação aos sindicatos, que historicamente tem sido abaixo de 20% dos trabalhadores. Além disso, fomentou uma estrutura sindical que não pode ser incluída na categoria, muitas vezes usada, de “movimento”: é formalista, ou seja, atua estritamente dentro dos limites formais do trabalho, se distanciando de agrupamentos de trabalhadores como os informais, desempregados ou ligados a movimentos sociais; é verticalizada e oligárquica, com as direções controlando as instâncias decisórias das entidades que, apesar de formalmente democráticas, inibem a participação dos trabalhadores de base; está envelhecida e distanciada dos trabalhadores, pois grande parte das lideranças, mesmo nas entidades atuantes, se constitui de militantes formados na luta contra a ditadura ou no princípio da redemocratização, já afastados há anos dos processos de trabalho dos seus representados.
Em linhas gerais esse era o cenário quando o vice-presidente Michel Temer assumiu o governo, iniciando uma reorientação radical nas pautas políticas em discussão, em consonância com a maioria parlamentar reunida no processo de deposição de Dilma Rousseff. A mais icônica transformação ocorreu em torno da legislação trabalhista. Aproveitando-se de uma proposta de reforma pontual da legislação, o setor privado, através de seus representantes no Congresso, multiplicou as emendas ao projeto de lei, que ao ser aprovado alterou 106 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Além de introduzir formas de contrato de trabalho inexistentes até então, foi a primeira redução sistemática e generalizada de direitos trabalhistas da história brasileira.
Entre as alterações trazidas pela nova lei, houve a extinção da contribuição sindical compulsória, que alimentava não só os sindicatos, mas também as federações, confederações e centrais sindicais. O resultado imediato foi a queda dramática da receita das entidades sindicais. De acordo com o Ministério do Trabalho, a arrecadação da contribuição caiu 86% de janeiro a setembro de 2018 em relação ao mesmo período de 2017, sendo que essa modalidade representava, segundo o Ipea, 60% de todas as receitas dos sindicatos. Para as entidades de nível superior, que não contam com a receita direta de associados, a redução pode ter sido muito mais drástica. Adicionalmente, a nova legislação esvazia o papel dos sindicatos na mediação da relação do trabalhador com o empregador, retirando a obrigatoriedade de homologação das rescisões contratuais pelos sindicatos, criando a figura do trabalhador hipersuficiente, que terá a possibilidade de negociar um contrato individual de trabalho mesmo em patamares inferiores à legislação e ao contrato coletivo e criando a estrutura paralela aos sindicatos dos conselhos de trabalhadores das empresas, que assumem a possibilidade de negociar temas antes exclusivos aos sindicatos. O resultado mais imediato foi a redução da realização de acordos e convenções coletivas, que entre janeiro e setembro de 2018 apresentaram uma redução de 28,6% em relação ao mesmo período de 2017, configurando ameaça real aos trabalhadores que deixaram de ser amparados por instrumentos coletivos justamente em um cenário de rebaixamento do piso legal de direitos.
Diante de cenário tão desafiador, as entidades sindicais têm reagido reduzindo suas despesas drasticamente, tanto pelo enxugamento da estrutura administrativa quanto com a redução de benefícios ofertados aos trabalhadores, buscando medidas legais para sustar a extinção da contribuição sindical, incluindo nas pautas de negociações a instituição de contribuições aos trabalhadores e empresas, tanto compulsórias quanto com direito à oposição, e, mais importante, têm dirigido seus recursos para o aumento do número de filiados. Ainda é cedo para aferir o sucesso de tais estratégias, mas é patente que elas operam dentro do mesmo marco normativo e político do período anterior. Por isso, seu sucesso tende a ser parcial e, mais importante, distribuído desigualmente entre as entidades sindicais.
O dilema posto ao sistema sindical brasileiro pode ser resumido em lutar para recuperar suas funções e formas de financiamento anteriormente garantidas por lei, ou apostar na introdução da liberdade e autonomia sindical completa na sociedade brasileira. A primeira dificilmente será exequível com a recente eleição de um governo que, no que concerne aos direitos trabalhistas, tende a dar continuidade às políticas implementadas no atual governo. E mesmo no caso de um futuro governo mais alinhado aos trabalhadores, reinstituir a cobrança da contribuição sindical teria custo político alto diante de sua rejeição junto à sociedade. O resultado mais provável de tal opção seria um lento definhar para a imensa maioria das entidades, deixando milhões de trabalhadores sem qualquer representação. A segunda opção apresenta as dificuldades presentes em qualquer rompimento com uma longa tradição, mas oferece oportunidades que não são pequenas. A primeira medida seria assumir uma posição clara e fomentar as mudanças legais que permitissem a implementação da liberdade de associação completa, significando a possibilidade de concorrência entre sindicatos e o abandono da necessidade de autorização governamental para seu funcionamento. A oportunidade para tal está posta com a formatação liberal do governo eleito, e pode ajudar a trazer a questão da representação dos trabalhadores para o debate. Em segundo, seria necessária uma reordenação política profunda na estrutura sindical. Isso se daria principalmente pela fusão de entidades sindicais nos diferentes níveis de organização. Apesar da resistência geralmente oferecida pelas direções sindicais, a transição geracional iminente gera a oportunidade para esse movimento. Por fim, seria necessária a reorientação dos recursos disponíveis para a organização de estruturas nas categorias hoje mal representadas, organizando novos sindicatos baseados na associação dos trabalhadores ou incorporando-os a sindicatos multicategorias ou setoriais formados com base nas entidades mais bem-sucedidas hoje.
Esse movimento de reorientação não teria o mesmo efeito em todas as entidades, e por isso não deve ser defendido por todos os segmentos políticos da estrutura sindical brasileira. Oferece portanto uma posição de vantagem para as frações mais organizadas e militantes dessa estrutura, notadamente o campo cutista e seu satélite CTB e as centrais da esquerda, Conlutas e Intersindical. Não tendo mais a vinculação ao Estado por meio da contribuição sindical, essas centrais podem abandonar o formalismo e buscar a associação de segmentos há muito esquecidos, como desempregados, movimentos populares, como os de luta por moradia e associações de bairro, visando formar o núcleo da mobilização social necessária para enfrentar a onda autoritária que varre o país.
Gabriel Musso de Almeida Pinto é diretor do Sindicato dos Bancários de Campinas e Região. Graduado em economia pela Unicamp, é mestre em ciência política pela Universidade de Kassel/HWR Berlim, Alemanha.
http://www.comciencia.br/encruzilhada-beira-do-abismo/
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