A ponte para o improvável encontro entre dois octogenários bem-sucedidos, um do sertão nordestino, hoje na lista da Forbes entre os maiores bilionários do país, e outro do norte da Alemanha, top na lista de criadores globais, chama-se Marcella Kanner Martins de Carvalho e tem 34 anos.
Herdeira e executiva da Riachuelo, Marcella Kenner aposta desde 2006 em parcerias com estilistas e influenciadores
Neta do fundador, Marcella é a gerente de marketing da empresa que comemora a segunda coleção internacional, a primeira foi com a Versace, em 2014. Da terceira geração dos Rocha, Marcella trabalha na Riachuelo desde os 20 anos. Só ficou de fora durante os nove meses quando morou em Nova York para estudar Fashion Business na conceituada Fashion Institute of Technology (FIT). Boa parte da virada recente da marca, cada vez mais posicionada no mercado como uma fast fashion, se deve à Marcella, que encabeça a negociação das parcerias com grandes estilistas e trabalha alinhada com o tio, Flávio Rocha, CEO da Riachuelo, considerado um ás do varejo brasileiro.
Conheci Marcella durante a apresentação de um preview da coleção de Karl Lagerfeld para Riachuelo no Pátio Batel Fashion Week, em Curitiba, no mês passado. Tímida e de estilo minimalista, ela facilmente abre mão da personagem de poderosa da moda. Fala baixo, mas rápido, reflexo do raciocínio que voa, e olha nos olhos do interlocutor. Por lá, Marcella conversou com imprensa e clientes especiais em uma das três lojas conceituais da marca no país, a do Pátio Batel, shopping de luxo onde a gigante popular divide espaço com Dolce&Gabbana, Valentino e Louis Vuitton. Na expectativa pelo lançamento da coleção de Karl no SPFW na próxima terça, Marcella comentou sobre o twist de marca popular de básicos para a fast fashion que entre 2006 e 2015 abriu 199 lojas e teve avassaladores 202,8% de crescimento percentual na receita bruta.
Poder ao produto
“A empresa inteira se submete ao produto. Temos uma equipe de 145 pessoas só na área de estilo. Gente em São Paulo, Natal, Fortaleza e Xangai, onde temos escritório. Lançamos mais de 100 modelos por dia, dá mais de 3,5 mil modelos por ano e 350 estampas por mês. Esse momento é muito importante para a Riachuelo. Junto com a reinvenção da marca, a gente reconstruiu o nosso modelo de negócios. Sempre tivemos a Guararapes, a maior fábrica de confecção da América Latina, que produzia para o mercado inteiro, mas que passou a produzir só para a Riachuelo. Ela era uma fábrica de básicos e a viramos 180 graus para começar a produzir moda. Foi um processo árduo, de mudança da lógica de pensar para virar uma fast fashion.”
Desejo de consumo
“Adotamos o modelo de produção puxada (diferente do conceito de produção empurrada, a produção puxada é guiada pelo consumo). Dessa forma, começamos a estação com apenas 30% da coleção definida. Na primeira semana, já conseguimos ter uma noção da reação dos clientes e aí construímos a coleção em cima disso. Conseguimos fazer assim porque temos fábrica e nosso centro de distribuição é o mais moderno do País. A gente consegue mandar uma coleção pequena pra loja e aí só vai repondo o que está funcionando, vendendo. É um modelo muito veloz que responde ao momento atual, que começou com os jovens da geração millennials, muito ansiosos e sem paciência de esperar seis meses por uma novidade, e que hoje se alastrou. Todo mundo tem um pouco disso, a gente quer novidade, ver no Instagram e já encontrar na loja.”
Virada fashion
“Aconteceu há cerca de 10 anos, mas veio com mais força nos últimos cinco. O Flávio (CEO da marca) é muito visionário e enxergou que precisávamos mudar para nos mantermos vivos já que o público dentro das nossas lojas estava envelhecido. A partir daí, melhoramos o produto, com bom preço e qualidade. Nesse movimento, ganhamos uma cliente nova, com muita informação de moda, mas que quer pagar o preço justo. E muitas clientes chegaram até a Riachuelo por conta das parcerias.”
Marcella ao lado de Camila Coutinho no lançamento da coleção assinada pela blogueira para o verão 2016
Parcerias
“A primeira parceria da Riachuelo foi nos anos 80 com Ney Galvão, muito antes de qualquer marca. Nem H&M tinha feito ainda. Depois fizemos com o Fause Haten no início dos anos 2000 e, mais tarde, em 2010, com o Oskar Metsavaht (diretor de criação e estilista da Osklen). Foi quando vimos uma nova cliente chegar. Ela vinha pela coleção e daí se encantava com outras peças. O pessoal da Versace, por exemplo, enxerga esse tipo de parceria como uma grande plataforma jovem. É uma maneira de eles falarem o público que um dia pode ser consumidor da marca deles. Eu acabei me especializando nas parcerias.”
Donatella Versace
“A parceria com a Versace (lançada em novembro de 2014) foi a que mais deu trabalho. Ficamos mais de seis meses só analisando o contrato. Até que fomos à Itália por um pedido da Donatella, que queria ver quem eram as pessoas com que trabalharia por dois anos. Eu estava supernervosa, até arrumei um vestido Versace para usar (risos). Ela entrou na reunião e disse que tinha uma surpresa. Fomos até outra sala e encontramos cinco ou seis painéis imensos com a coleção inteira desenhada. Fiquei muito emocionada porque tinha ali até as peças do Gianni (Versace, irmão de Donatella e ex-estilista da marca morto em 1997) que ganharam uma primeira releitura na nossa coleção.”
Marcella ao lado de Donatella Versace, Taciana Veloso e Lilian Pacce
Karl Lagerfeld
“É uma lenda viva. Tínhamos uma vontade antiga de fazer algo com ele, entramos em contato e ouvimos que não era a hora. Depois, quando lançamos Versace no final de 2014 com um superdesfile no SPFW, a equipe dele nos ligou no dia seguinte pedindo para conversar. Fomos quatro vezes a Europa, duas a Paris e duas a Amsterdã, onde ficam os escritórios, para aprovar modelagem, tecidos etc. Ele se envolveu muito ativamente. Soubemos que ele ainda desenha todos os croquis da Chanel. É uma pessoa de 84 anos que tem controle total do que está fazendo. Mas o processo todo foi muito mais rápido do que com a Versace. O Karl gosta de projetos curtos e quis que fosse tudo em um ano. Ele é muito prático, quer vender e tem o comercial na veia. Só fizemos um pedido: para que ele incluísse cor na coleção. Ele acatou na hora e colocou rosa, azul e um toque de amarelo.”
Sul
“Por ser uma empresa nordestina, a Riachuelo demorou a entrar no Sul, mas a região é nossa prioridade total pois observamos a forte relação das pessoas com a moda. A gente está investindo muitos nas coleções de inverno justamente para atender essa demanda. Garanto que estamos olhando para a região Sul com uma lupa e queremos abrir uma loja-conceito em Santa Catarina.”
Olho nas tendências
“Das 145 pessoas da área de estilo, 10 ficam o tempo inteiro olhando o que está acontecendo: desfiles, street style, novela, blogueiras. Dentro da fábrica temos uma célula de produção que se chama newness, que fica parada só esperando chegar essas novidades. Se vemos que um tipo de blusa tá na moda a gente fura a fila, produz, e em 15 dias a peça está na loja. Temos elasticidade e velocidade. Se fosse entrar num processo de produção normal de fábrica, você entraria numa fila e as peças só chegariam na loja em seis meses. Isso não é fast fashion.”
Brasil
“Tivemos o privilégio de assistir de camarote ao que estava acontecendo no Brasil porque a gente começou esse movimento de moda antes e, pouco tempo depois, vimos a ascensão brutal da classe C. E acho que parte dessa locomotiva da classe C é a mulher. A revolução começou quando a mulher entrou no mercado de trabalho, ela precisou se vestir melhor, começou a pensar nela e não só na família, e sua autoestima aumentou. Melhoramos muito o produto para atender essa mulher e, com isso, a gente ganhou uma consumidora superexigente que antes não entrava na Riachuelo.”
Oscar Freire
“O Flávio (Rocha, CEO) é superativo nas redes sociais e ele mesmo deu a notícia de que abriríamos lá. A Daniela Falcão (diretora de redação da Vogue Brasil) repostou rapidamente e aí vimos muita gente elogiando e outras tantas criticando, tipo: ‘o que a Riachuelo vai fazer na Oscar Freire?’ Depois que a gente inaugurou (em novembro de 2013), eu nunca mais ouvi esse tipo de comentário. Conseguimos quebrar um pouco o preconceito do brasileiro com a fast fashion, o que não existe nos Estados Unidos há muito tempo. Quem entra na loja acha muito natural a gente estar naquele papel e naquele lugar.”
Sucessos e um sonho
“A coleção da Cris Barros (2011) me marcou demais. A da Lethicia Bronstein (2015) também foi especial. Um sonho de parceria seria com a Valentino.”
Vida pessoal
“Concilio trabalho e família como todas as outras mulheres (Marcella é casada com o empresário Eduardo Martins de Carvalho Neto e é mãe de Joaquim, 4 anos, e Antonio, de 1). Quando fizemos a reunião de mailing do Versace, estava grávida e comecei a ter contrações. Depois disso fiquei um tempo
internada e o Paulo Borges (diretor do São Paulo Fashion Week) ia fazer reunião comigo no hospital para combinar sobre o desfile. Quando a Donatella chegou ao Brasil, eu não podia sair de casa e ficava resolvendo tudo por telefone. No dia seguinte ao desfile, quando eu pensei: “Ufa, relaxei, agora posso ter filho” ligaram do Karl pedindo para conversar. A gente assinou o contrato numa sexta e o Antonio nasceu no domingo. Ambos são supercalminhos e meu marido é muito parceiro e incentiva minha carreira, o que facilita muito.”
Marcella, grávida na ocasião e com recomendação de repouso, por isso a cadeira de rodas, ao lado de Donatella, no desfile da coleção Versace em 2014
Closet
“Uso muito as peças da Riachuelo (no dia da entrevista ela vestia uma saia midi e uma camisa da marca). As pessoas acham que eu ganho, mas eu compro tudo (risos). Meu estilo é mais minimalista, gosto de modelagens boas e um acessório mais forte. Amo moda, mas não sou perua.”