Lançado para coincidir com o quarto aniversário do UK Modern Slavery Act, o relatório “In its Full Disclosure: Towards Better Modern Slavery Reporting”, da International Corporate Accountability Roundtable (ICAR), divulgado pelo just-style.com, indica que apesar de, em vários países, existir legislação que tem como desígnio combater a escravatura moderna e tornar a cadeia de aprovisionamento mundial mais transparente, esta está a falhar ao não conseguir induzir as empresas a lutarem de forma séria ou a reportar adequadamente os seus esforços para banir o trabalho forçado e o tráfico humano nas suas cadeias de aprovisionamento.
«A nossa pesquisa mostra que o cumprimento destas leis tem sido inconsistente e que a variedade e a qualidade da informação que as empresas revelam é insuficiente e indica que não são feitos esforços verdadeiros para resolver o problema. Adicionalmente, a informação incluída nos relatórios acerca da escravatura moderna não tem sido adequada o suficiente para permitir à sociedade civil monitorizar eficazmente a performance empresarial ou envolver-se de forma significativa com as empresas», lamenta a ICAR.
A organização acrescenta que «reportar este tipo de situações apenas é relevante quando as empresas procederam a ações efetivas para identificar, prevenir, diminuir e enfrentar os impactos nos direitos humanos das suas atividades comerciais e quando estas ações resultarem em melhorias tangíveis. Tal só pode ser conquistado quando a denúncia é orientada para os resultados e tem como base a identificação de casos concretos de trabalho forçado e de tráfico humano dentro da cadeia de aprovisionamento».
De acordo com o estudo da ICAR, existem, atualmente, cerca de 24,9 milhões de pessoas que são vítimas de trabalho forçado a nível mundial, das quais 16 milhões são exploradas no sector privado da economia. O trabalho forçado e o tráfico humano geram um lucro estimado de 150 mil milhões de dólares anuais, um contraste marcante em relação aos 124 milhões de dólares gastos pelos governos de todo o mundo para o combater.
A falta de responsabilização
«O trabalho forçado e o tráfico humano são graves problemas mundiais para os quais a responsabilização ainda é lamentavelmente baixa», considera o organismo. Ao longo da última década, foi aprovada legislação nos EUA, Reino Unido e Austrália, na tentativa de enfrentar a escravatura moderna. É exigido às empresas que reportem as ações que levaram a cabo para prevenir, enfrentar e diminuir os riscos do trabalho forçado e do tráfico humano nas suas operações globais.
Contudo, enquanto as medidas que promovem a transparência em relação à escravatura moderna se focam no papel das empresas para reportar, prevenir e diminuir o trabalho forçado e o tráfico humano, o estudo aponta que a cadeia de aprovisionamento mundial é longa e complexa – o que exige não apenas leis, mas também medidas políticas, regulamentação e uma abordagem multissectorial realmente integrada para resolver o problema.
O estudo examina a eficácia de três atos legislativos: a UK Modern Slavery Act 2015, a The California Transparency in Supply Chains Act e a Australian Modern Slavery Act. Ainda que cada um tenha, de algum modo, chamado à atenção para o problema, a eliminação da escravatura moderna das cadeias de aprovisionamento é dificultada porque apenas as empresas cujos volumes de negócios ultrapassam uma certa quantia são tidas em consideração na legislação, o que frequentemente exclui as pequenas e médias empresas, onde o problema pode existir. Segundo a ICAR, faltam ferramentas para monitorizar o cumprimento da legislação e mecanismos de que penalizem as empresas que não o fizerem.
As conquistas
De acordo com a ICAR, há atualmente uma maior sensibilização e diálogo entre as empresas, CSOs, investidores, organizações sindicais e público em geral acerca do trabalho forçado e do tráfico humano na cadeia de aprovisionamento. A obrigatoriedade de denunciar pressionou as empresas a implantar um plano para enfrentar a possibilidade de existir trabalho forçado e os passos que estão a dar para o fazerem em toda a sua cadeia de aprovisionamento. O diálogo e a maior atenção são essenciais, particularmente para as empresas que ainda não estavam a levar a cabo as medidas necessárias para identificar e enfrentar os problemas.
Outro dos benefícios da legislação foi a imposição de que as denúncias em relação ao trabalho forçado e aos direitos humanos chegassem até aos quadros mais altos das empresas. Este novo, ou intensificado, interesse permitiu, aos responsáveis pela área da sustentabilidade e da responsabilidade social das organizações, a criação e a implementação de novas medidas antitráfico. A precaução dos empresários conduziu, frequentemente, a um aumento nos recursos utilizados para enfrentar o problema.
Houve ainda uma melhor monitorização da performance. Nos locais onde a legislação obrigou à elaboração de um relatório anual, CSOs, uniões sindicais e investidores2971
estão mais bem preparados para monitorizar a performance das empresas no combate à escravatura moderna. Medir a performance permitiu igualmente a esses agentes ajudar as empresas a melhorar as suas análises e práticas.
Por fim, também aumentou o interesse dos investidores, que estão a prestar uma maior atenção à informação que as empresas incluem nos seus relatórios e às previsões a longo prazo de um crescimento sustentável.
As lacunas
Muitas empresas que, do ponto de vista legal, estariam obrigadas a reportar os casos, não o fazem, de todo. São empresas que, muitas vezes, não interagem diretamente com os consumidores ou, de outro modo, sofreriam danos na sua reputação. Em 2018, a avaliação do Business and Human Rights Resource Centre’s (BHRRC) revela que, das empresas do FTSE 100, apenas metade de entre as 11.000 e 18.000 empresas do Reino Unido que estão sujeitas ao Modern Slavery Act publicou os seus relatórios. Enquanto algumas empresas reportaram uma situação, falharam na publicação dos seus relatórios anuais. Outras empresas simplesmente reciclam as declarações sem as atualizarem para o ano em questão.
O ICAR aponta ainda a falta de monitorização por parte do governo, que permitiu às empresas incumpridoras ficarem longe do radar. Estas empresas são, frequentemente, difíceis de identificar, porque não existe jurisdição que permita a publicação de uma lista das empresas às quais a legislação se aplica, o que dificulta a ação dos CSOs e das uniões sindicais na chamada de atenção às empresas incumpridoras. Além disso, as empresas têm uma menor probabilidade de cumprir a legislação quando não existe nenhuma ameaça de sanção. Relatórios que analisam o UK Modern Slavery Act mostram que, de cerca de 150 empresas, apenas 54% publicaram um relatório entre 2017 e 2018. Dos que entregaram uma declaração atualizada, apenas 58% incorporaram mudanças substanciais, enquanto uma minoria significativa (42%) ou não fez nenhuma alteração ou fez uma alteração mínima.
O estudo revela ainda que os relatórios são um exercício de preenchimento de questões de escolha múltipla. Atualmente, a informação presente na base de dados pública Modern Slavery and Transparency in Supply Chain (TISC) foca-se na descrição das políticas das empresas, em vez de apostar na demonstração de como estas escolhas estão de facto a ser implementadas, a sua eficácia e o que está a surtir da sua implementação. A falta de informação impede outros empresários de compreenderem realmente como identificar, responder e corrigir os riscos e as situações de trabalho forçado e tráfico humano nas suas cadeias de aprovisionamento. Estas falhas nas denúncias também impedem os CSOs, as uniões sindicais e os investidores de providenciar algum tipo de orientação. As empresas que apresentam os seus relatórios abordam vagamente os riscos do trabalho forçado e do tráfico humano, em vez de especificarem os problemas na sua própria cadeia de aprovisionamento.
«O trabalho forçado e o tráfico humano são duas das mais flagrantes violações presentes na atual cadeia de aprovisionamento mundial. Será necessário um conjunto de políticas complementares e regulamentações, assim como uma abordagem multissectorial que inclua empresas, governos, sociedade civil e outros atores a trabalharem juntos para eliminar o trabalho forçado e o tráfico humano», conclui a ICAR.
Exigir às empresas que revelem publicamente as suas políticas e práticas para banir o trabalho forçado e o tráfico humano das suas cadeias de aprovisionamento é apenas o primeiro passo. As empresas vão precisar de planos sólidos, incluindo um processo para identificar, prevenir e corrigir o trabalho forçado nas suas cadeias de aprovisionamento.
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