Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Gloria Coelho passa noites em frente ao computador. Dividida entre os humores de Urano e a "partícula de Deus", a estilista tenta conciliar física quântica e astrologia. Enquanto estuda, aproveita para viajar da África Central à Escandinávia pelo Instagram. No seu universo mental tudo está junto e misturado, em todos os tempos e lugares - como em suas coleções, que usam referências de trajes palacianos, elementos punks, heroínas virtuais e fantasia infantil. Ao completar 40 anos de moda, ela só tem uma certeza. "Amo o que faço. Saí em férias, voltei supercansada. Comecei a trabalhar e estou boa de novo. O trabalho, para mim, é curativo."

Suas roupas, conhecidas pela pegada vanguardista e pelo acabamento impecável, são tão inconfundíveis quanto seu tipo físico. Aos 62 anos, Gloria é uma personagem paulistana que circula entre os Jardins e o shopping Iguatemi, fácil de reconhecer pela indumentária quase sempre escura e pelos cabelos pretos e lisos. O batom carregado, que varia do bordô ao marrom e chega a ficar quase preto, também é parte de sua identidade. É com esse visual "dark" que ela chega para o "À Mesa com o Valor", na Adega Santiago, restaurante que frequenta há oito anos no Jardim Paulistano, localizado a poucas quadras de sua casa.

É hora do almoço de uma sexta-feira e Gloria aparece invernal, de camiseta verde de mangas longas e calça comprida de couro, sob um vestido preto de couro e malha. Usa meias e sapatos e, por cima de tudo, veste um casaco curto, que tira antes de sentar-se. Mais tarde, ao posar para o fotógrafo, segura o casaco e fica na dúvida se deve ou não colocá-lo.

Essa armadura esconde uma pessoa bem-humorada e divertida. Gloria se define como uma intelectual da moda. "Estudo história da moda, história da arte, mas gosto de roupa que faz carinho no corpo, confortável, que cria volume no espaço." Esse "à vontade" com o ofício faz com que ela não se iniba em usar a moda de rua com humor. No desfile da temporada de inverno 2014 na São Paulo Fashion Week, desfilou "dangerettes", numa alusão às "periguetes". "É uma brincadeira. No Brasil, a 'periguete' é uma instituição. Temos de todas as idades: de crianças a avós."

O restaurante está lotado e, apesar de termos feito reserva, é difícil encontrar um lugar tranquilo. O gerente improvisa uma mesa maior, num cantinho junto à janela. "A Gloria sabe que aqui é assim mesmo", diz ele, mostrando conhecer os hábitos da estilista. O ambiente rústico, com portas de demolição e mesas com tampo de madeira, sem jogo americano, é informal. Mas, além do clima, o que conquista a frequentadora é o cardápio baseado em receitas da Península Ibérica, com pratos de mar e terra feitos na grelha e na lenha.

"Não como mais carne. Parei quando vi um filme sobre a maneira como matam os animais", diz Gloria, ao olhar o menu. O fotógrafo Claudio Belli, que é vegetariano, dá um sorriso cúmplice. Na mesa, também estão a assessora de imprensa Sonia Gonçalves, a Soninha, que trabalha com ela há mais de 20 anos, e o gerente de marketing Renato Christofoletti. Pedimos croquetes de pato, bolinhos de bacalhau e lulas à dorê. Gloria se decide pelo carpaccio de polvo, após se assegurar de que Soninha escolheu uma salada de bacalhau. "Adoro essa salada. Comemos juntas, tá bom?"

Sei para onde a onda da moda está indo. Vibro, sinto, pesquiso. Se eu tivesse uma administração e uma logística boa, teria um mercado muito maior

Depois de 40 anos no mercado, ela conta que sua empresa vive uma fase de profissionalização. "Quero encontrar alguém que me complemente, que cuide da parte financeira e me deixe livre para criar. Além disso, gostaria de fazer muitas lojas no Brasil no esquema de franquia", diz. O que mais? "Ah, quero arranjar um namorado e passar as férias num barco para sentir o balanço do mar", completa, às gargalhadas. "Eu queria casar, sabe? Mas com um empresário. Adoro empresários de terno e gravata que me dão bons conselhos."

Gloria foi casada durante 24 anos com o também estilista Reinaldo Lourenço, com quem teve um filho: Pedro Lourenço, de 24 anos, nome de destaque da nova geração da moda. "O Pedro mora comigo. Sou grudada nele e acho que ele é a evolução do DNA. O Reinaldo é meu melhor amigo. Quando estou por aí, sozinha pelo mundo, andando, quem me liga? O Reinaldo."

Nos anos 1970, quando o núcleo criativo da moda brasileira era muito mais carioca do que paulista, ela surgiu no mercado com a marca G. A letra identificava as iniciais de Gloria e Graça, sua irmã e sócia. O nome foi escolhido, sobretudo, por ser a sétima letra do alfabeto. "Adoro o sete, é um número muito espiritual." A marca só virou Gloria Coelho em 2000, quando ela começou a vender na Europa - o que não faz mais.

Hoje é um nome inconteste da moda brasileira. Mineira, filha de baianos, Gloria morou até os oito anos em Itabuna, antes de mudar para São Paulo. Aqui, adotou o misticismo e o cultivo à espiritualidade como elementos vitais. Já teve dez astrólogos, faz ioga três vezes por semana e se diz "uma bruxinha do bem". Para alimentar o potencial criativo, vê muitos filmes e só lê livros infantis. "Assisti a cada 'Harry Potter' umas 50 vezes. Eu queria ter as ideias daquela mulher, inventar aqueles jogos... O que mais gosto é de magia." No mais, é viciada em internet. "Minha droga é a internet. E olha que tem muita gente dependente dessa droga."

Seu momento atual é focado na gestão. Por isso, se entusiasma com as reuniões do Mulheres do Brasil - Grupo Empreendedorismo, fundado no ano passado por Luiza Helena Trajano, do Magazine Luiza, e que já conta com 53 participantes. São empresárias que atuam do mercado financeiro ao varejo, da cosmética à joalheria. Na área de moda, além dela, estão lá as presidentes da Lupo e da Dudalina. "No momento estamos discutindo a morte súbita de empresas que não aguentam a carga tributária ao sair da categoria simples. Aprendo muito lá. Queremos coordenar as agendas para nos encontrarmos, pelo menos, uma vez por mês."

Gloria gosta, especialmente, do fato de ali não haver nenhum partido político. "A gente está em busca de uma coisa maior." E não poupa elogios à líder do grupo. "A Luiza é gênio. Tem uma habilidade incrível. Na última reunião, para me chamar atenção, em vez de me criticar, ela disse assim: 'Gloria, eu me enxergo em você. Também fui assim, impulsiva. Mas a gente não pode ser, não funciona. Tem que falar de um jeitinho mais político, ver aonde a gente quer chegar e saber agir'."

O encontro das mulheres empresárias é um desafio para Gloria tratar de coisas das quais nunca quis saber. "Quero me dedicar a coisas grandes, mas, quando vejo, estou tratando de IOF. E quem paga IOF é justamente quem está mais precisando de dinheiro."

Quando os pratos chegam, ela olha para seu carpaccio e decide temperá-lo mais uma vez. Ao acabar, diz para Soninha: "Posso temperar tua salada? Vai ficar outra coisa, você vai ver". E começa a espremer uma quantidade astronômica de limão. A assessora então propõe: "Vamos trocar: fica com a salada e me dá o carpaccio de polvo". Ela não titubeia e desata a rir. "Ai, obrigada por ter pedido este prato. Estava mesmo com vontade de comer esta salada." Gloria é sempre assim, bem-humorada? "Desde que a gente concorde com ela", respondem Christofoletti e Soninha, quase em coro, em tom de brincadeira.

Quando dá a primeira garfada, Gloria desvia o olhar para a janela e se fixa na rua, onde passam pessoas e carros, iluminados pelo sol. "Sou muito espiritualista, sabe? Acho que felicidade é entrar na água, no mar, numa piscina. É sentir a água, o sol entrando na pele, o vento batendo no rosto, ver uma criança, um cachorro. Falar, andar - isso é felicidade. A gente é - não pode só pensar em ter. Porque se a gente só pensa em ter, quando não tiver, não é nada."

A morte de Clô Orozco, criadora da Huis Clos e companheira de jornada, foi devastadora para Gloria. "Quando a Clô morreu [em março do ano passado], fiquei doente uma semana. Teve um momento em que eu quase não conseguia enxergar, tal o estresse. Como me trato só de maneira natural, a recuperação foi lenta, difícil." Assim como Clô, Traudi Guida, fundadora da Le Lis Blanc e dona da SouQ, é uma de suas referências desde os anos 1970. "Acho a Traudi uma das maiores estilistas que temos. É excelente, uma pessoa que consegue compreender o mercado e fazer o dinheirão que fez."

- E você sabe o que o mercado quer?

- Sei o que o meu mercado quer. Sei para onde a onda da moda está indo. Vibro, sinto, pesquiso. Se eu tivesse administração e logística boas, teria um mercado muito maior. O meu pecado foi ter casado com a pessoa errada, casei com um estilista, em vez de casar com um empresário. Eu poderia estar biliardária!

Entre as paulistas, há um grupo de gente muito rica que usa decote e saia curta. No Rio, as pessoas se expressam de uma forma mais hippie

De tanto rir, ela para de falar. Até hoje, na hora em que imagina uma coleção, Gloria repete a mesma pergunta que aprendeu com a francesa Marie Ruckie, do Studio Berçot de Paris, responsável pela formação de muitos estilistas de sua geração: "Qual será seu desejo daqui a dois anos?". Ela afirma ter aprendido muito com Marie e que pensa sempre no futuro. Mas essa é uma questão polêmica. "Eu avanço muito. Às vezes faço coisas que as pessoas estranham, mas sei que vão acontecer por alguma mensagem que vi nos sites, nas revistas. Avanço tanto e, quando deveria estar ganhando dinheiro com aquilo, minhas clientes já estão enjoadas."

Na sua definição, o estilista é quem faz a roupa da época. O criador não se restringe. "Você é os dois o tempo todo. Quando estou fazendo uma coleção comercial, sou estilista. Vejo o ranking, o que estão querendo de mim, e faço o que pedem. Mas invisto sempre no laboratório para criar o meu futuro - é o que temos de mais caro na empresa. Tenho costureiras trabalhando e fazendo roupas, exprimindo o que vão querer de mim no futuro."

Ainda que muitas vezes faça "peças artísticas", ela acha que moda é comércio. "Não critico as pessoas que pegam coisas dos outros, recuperam e fazem do seu jeito. E também não critico uma grande compradora de moda, por exemplo, que vai aos desfiles e faz sua seleção, dizendo assim: 'Quero isto, isto e isto'."

De modo geral, Gloria não gosta de citar outros criadores. Evasiva, abre uma exceção: "Tem a Rei Kawakubo [estilista da Comme des Garçons], de quem gosto muito. Ela vende perfumes, camisetas, camisas, mas faz arte e é tão original, que alimenta todo o planeta no sentido criativo. Você vê as coisas dela e viaja."

- De quem mais você gosta?

- De muito pouca gente [rindo]. Gosto muito de certas empresas, mas são empresas como a minha e não vou fazer propaganda. Para isso, deveriam me pagar. A Rei Kawakubo e o Junya Watanabe [que tem uma logomarca dentro da Comme des Garçons] merecem ser falados porque são muito especiais, muito mentais, perfeccionistas. Posso dizer? Eles são o Steve Jobs da moda.

Ao falar em vanguarda, Gloria também não cita nomes. "A vanguarda vem de mil lugares e com a internet você consegue enxergar muita coisa. Quem faz a vanguarda são as tribos. E existem milhares." A identificação se dá pelo olhar, pela semelhança. "Você pode estar no Japão, na Inglaterra, na França ou aqui quando vê uma pessoa e pensa: 'Que mulher interessante, que legal a roupa que ela está usando. Ela deve ter uma blusinha parecida com a minha'. Então, aquela pessoa simboliza aquilo que você gosta. Dessa maneira, você reconhece seu grupo, sua tribo. E tem outra coisa: se eu começar a andar muito com você, vou pegar teu jeito e você, o meu."

Claudio Belli/ValorGloria Coelho no Adega Santiago: “Adoro empresários de terno e gravata que me dão bons conselhos”

Existe uma moda brasileira? "A gente faz uma moda universal", responde. A despeito das diferenças, ela identifica no Brasil uma cultura de sexualidade muito forte. "Essa coisa das brasileiras explorarem o corpo não é mental, é cultural, quase intuitiva. Entre as paulistas, há um grupo de gente muito rica que usa decote e saia curta. No Rio de Janeiro, as pessoas se expressam de uma forma mais hippie."

Segundo Gloria, a Rede Globo, que "faz a cabeça de todo o mundo", é um fator preponderante para a moda. Ela se inclui nesse "todo mundo", já que é viciada em novelas. "Sou tarada, essa é a meditação moderna. Você chega em casa, liga na novela das nove e não lembra de nenhum problema. Fica livre de tudo, não fica?"

Neste momento pontual, em que o mote é falar do esgotamento dos desfiles e da crise da moda, Gloria insiste em seu "affair". "Em vez de participar de conversas negativas, prefiro gastar meu tempo para fazer coisas lindas. Não adianta ficar se queixando para o público dos nossos problemas. É melhor colocar ordem no caos." Frequentadora assídua das temporadas de moda, também não desistiu da passarela, como fizeram outras grifes. "Faço pela diversão, para divulgar meu trabalho. Os desfiles são um desafio para que a gente esteja sempre se renovando. Tem gente que fica velha e continua jovem e tem aqueles que perdem o refinamento da alma. Tento aprender e me renovar sempre porque o mundo muda muito rápido."

Numa entrevista recente, a pitonisa da moda nacional, Costanza Pascolato, disse que "a roupa brasileira é cara e malfeita". Gloria completa: "A gente está nos anos 30 em termos de tecnologia no Brasil. Costumo dizer que somos 'low-tech'. E por isso procuramos soluções para executar tudo da melhor maneira possível". No entanto, ela faz uma ressalva e diz já ter comprado peças de grifes internacionais, muito incensadas e conceituadas, mas também malfeitas.

Além das três lojas que possui atualmente em São Paulo, Gloria desenha sapatos para a Tches, lingerie para a Plié, meias para a Trifil, uniformes e luminárias. Daqui a pouco, terá um hotel no portfólio, o Best Western Plus Arpoador Fashion, no Rio, que vai abrir para a Olimpíada, com quartos decorados por ela e inspirados em suas coleções: Pokémon, Luis XIV, Neutrinos. Com o iPhone na mão, ela mostra algumas fotos.

Coleções para marcas de "fast-fashion", como C&A ou Shoestock, compõem outro recorte de sua atividade. "Adoro fazer. Faço o que eles querem, o que o mercado pede, mas com meu design. É uma coisa de-mo-crá-ti-ca, dá acesso a quem nunca poderia ter meu produto. A gente fez um desodorante Rexona e falou com 20 milhões de pessoas. É quântico."

Na sua própria marca, a tendência é começar a terceirizar a produção. Ela ainda é das poucas estilistas que faz tudo dentro do ateliê, o que requer uma estrutura muito cara. No futuro, pretende manter parte da criação para fazer roupas de festa e terceirizar coisas simples - camisetas, camisas, calças de alfaiataria. "Estou me reestruturando, descobrindo um novo caminho. Até a possibilidade de fazer roupa na China me interessa."

Nos últimos anos, o que cresceu mais em sua confecção foi o segmento festa (35% em volume e 25% em faturamento). Ela montou um esquema de peças-piloto que ficam na butique e nas lojas de seus representantes Brasil afora batizado de "pedido especial". O cliente escolhe o modelo, feito sob medida num prazo de 60 dias. Um vestido de casamento exclusivo, que demora seis meses para ser bordado, pode chegar a R$ 30 mil. "A gente faz um vestido, depois reaproveita a ideia de outra forma. Porque haja ideias, a gente é uma padaria de ideias."

Ao contrário das coleções normais, Gloria acha que roupa de festa não deve entrar em liquidação. Se não vende, deve ficar escondida na loja porque custa muito caro e é um investimento. Quanto ao resto, ela confessa adorar liquidações, como todo o mundo. "Não gosto de pagar o preço cheio."

Na comparação que faz, uma empresa é como a sociedade. Segundo Gloria, há 30% de gente muito séria, 30% de gente muito ruim e, no restante, se misturam os dois lados. Então, aconselha as pessoas a terem um controle impecável sobre seus gastos e ganhos. "Já tive gente que superfaturou, que roubou, mas não fico com raiva, isso faz parte da vida. A gente tem que ter compaixão. E ficar atento porque o Brasil tem a cultura do roubo."

Gloria fala das mazelas e exorta as meninas que pensam em fazer moda a olhar para o mercado e para o preço de uma peça de tecido. No entanto, aos 11 anos de idade ela descobriu que a moda seria seu destino. Já morava em São Paulo, nos anos 1960, quando reparou que a boca da calça comprida estava mudando. "Isso me deixou emocionada, logo quis uma. Eu gastava todo o meu dinheiro em roupa." Foi aí, também, que notou que era perfeccionista. "Gosto da beleza, não só na roupa. Sempre digo: 'Vamos fazer certo, dá o mesmo trabalho'."


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Por Maria da Paz Trefaut | Para o Valor, de São Pau


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