Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

O poder da moda para mudar o mercado
Gerente Executivo do Instituto C&A, Gustavo Venancio Narciso é parte ativa da mudança que ele quer ver na maneira como a moda é produzida

Por Soraia Yoshida 

O marketplace digital da C&A é um espaço ao qual todo empreendedor de moda adoraria ter acesso. O aplicativo já soma mais de dez milhões de downloads, turbinado por parcerias com o Big Brother Brasil. Durante a pandemia, as vendas do e-commerce de roupas, sapatos e acessórios saltaram de 3% para 17% da receita líquida da companhia, que foi de R$ 1,2 bilhão no segundo trimestre deste ano. “A gente não quer fazer a conexão pela conexão”, avisa Gustavo Venancio Narciso, Gerente Executivo do Instituto C&A, “como programa estamos estrategicamente trabalhando lado a lado com novos negócios e conectando com nossa cadeia de valor”.

Seis marcas autorais de empreendedores negros passarão a fazer parte do marketplace da C&A, dentro do espaço Nosso Encontro. A iniciativa do Instituto C&A, o braço social da empresa no Brasil, nasceu de uma parceria com a PretaHub, a aceleradora da Feira Preta, de Adriana Barbosa. A nova edição do Afrolab Moda ganhou o apoio do instituto e selecionou 21 empreendedores negros, indígenas e afro-indígenas para mentoria, workshops e muita conversa sobre moda. Os seis finalistas terão suas peças vendidas no marketplace da C&A – uma vitrine que pode transformar um pequeno negócio em um grande hype – e também estarão em uma campanha veiculada na plataforma e nas redes sociais do Instituto C&A e da Feira Preta.

Ter a Feira Preta na C&A é uma ruptura, assim como foi o programa para trainees do Magazine Luiza voltado para pessoas negras. A expectativa é que traga visibilidade para os afroempreendedores e os conecte aos clientes da C&A, em uma primeira etapa, e que abra cada vez mais espaço para empreendedores de moda talentosos, que acabam restritos por uma questão de gênero, raça ou etnia. “Eu tenho um desejo muito grande de pensar moda indígena de forma mais explícita”, adianta Gustavo.

“A colaboração tem sido a minha obsessão como líder de um órgão de investimento social privado. Muitos dos projetos que a gente fez esse ano foram em colaboração e dentro de um mercado em que o ego está presente desde o pequeno empreendedor até a SPFW, falar de colaboração é muito complicado”, afirma.

A C&A passou nos últimos anos por grandes mudanças em sua composição como negócio. Com IPO da C&A, as entidades filantrópicas ligadas à família Brenninkmeijer, controladora da companhia, se organizaram na Laudes Foundation, uma nova entidade filantrópica ligada à Cofra Holding, que detém todos os negócios da família. Os CEOs regionais ganharam a decisão de manter ou não seus institutos sociais. Só o Brasil manteve. Gustavo, que entrou para o time da C&A em 2015, primeiro como consultor de projetos, depois responsável por ações de inclusão e respeito à igualdade de gênero e etnia, pessoas com deficiência, refugiados e comunidade LGBTQIA+ e Gerente de Programas da Fundação C&A, assumiu o cargo em 2020.

Engenheiro bioquímico formado pela Universidade de São Paulo (USP), Gustavo Narciso conta com exclusividade para The Shift quais são os planos do Instituto C&A para os programas e por que as pessoas não deveriam ser tão rápidas em julgar a moda como uma plataforma capaz de gerar impacto e mudar ideias, como a desigualdade e o racismo. “A moda é uma ferramenta de expressão muito poderosa”, afirma.

Disrupção é…

Colaboração. Existem muitas iniciativas belíssimas que estão engavetadas, invisibilizadas ou que são tocadas por organizações com o mesmo propósito e que poderiam se juntar para alavancar investimentos – para que todos pudessem se beneficiar desse olhar colaborativo e pudessem prosperar e se tornar mais resilientes para gerar o impacto ao qual se propuseram.

A colaboração entre entidades, entre pequenos e grandes, entre empresas e academia, entre agricultores e designers, essa colaboração é o que vai fazer com que a gente crie uma moda mais justa, mais regenerativa, e sustentável.

Isso é disruptivo porque acontece muito pouco ou não acontece, pelo menos não da maneira como deveria.

O Instituto C&A passou por uma grande mudança no ano passado: organizacional, programática e de imagem. Com o IPO, as entidades filantrópicas da organização familiar passaram por mudanças. A gente tinha a C&A Foundation global que trabalhava de maneira sinérgica, entendendo como minimizar os impactos na indústria da moda em Brasil, México, Ásia e Europa, que são as geografias em que a C&A está presente no varejo ou como cadeia de fornecimento.

Com as mudanças, eu que já era da turma antiga assumi a liderança do Instituto C&A como gerente executivo – e com a missão de repensar programaticamente o que o instituto faria e como trabalharia ao lado do negócio. Como a gente faria uma filantropia mais estratégica, que servisse obviamente à sociedade, mas que usasse a estrutura do negócio para alavancar o impacto que eventualmente esse conteúdo programático poderia ter.

A gente decidiu manter o programa de voluntariado, que existia desde o início do instituto, em 1991. Mas eu queria um voluntariado que não fosse o que costumo chamar de voluntariado instagramável, que é você ir para a escola pintar parede, e sim trazer recortes de alguns grupos sociais mais vulnerabilizados.

Nós deixamos de atender o público de crianças de zero a 12 anos e começamos a ir para grupos de mulheres, entendendo como poderíamos usar nosso conhecimento acumulado em projetos de capacitação, em técnicas de costura, para alavancar iniciativas voltadas para mulheres vítimas de violência, em comunidades de territórios periféricos, territórios quilombolas, territórios indígenas, egressos do sistema penitenciário.

Temos projeto na Cracolândia e no agreste nordestino. Começamos a adentrar os rincões do Brasil em uma diversidade de iniciativas fazendo da moda o elemento central ou secundário e contribuindo com nosso conhecimento e com as áreas de jurídico, recursos humanos, tecnologia para suportar e fazer atividades voluntárias com essas organizações.

E aí foram dois desafios ao mesmo tempo: o desafio de mudar programaticamente e no meio na pandemia e ainda fazer tudo isso de forma virtual. Mas tem dado certo.

A outra frente que decidimos trabalhar foi o programa de empreendedorismo. O programa de empreendedorismo nasceu justamente para trabalhar com o mesmo público que o público do programa de voluntariado, com todas essas camadas, mas pensando em suportar jornadas empreendedoras de potências que têm como protagonismo esses grupos vulnerabilizados – sempre respeitando práticas sustentáveis e de trabalho dignas.

Quando a gente começou a mapear o que é empreender na moda no Brasil, na sua maioria, o que se vê são as sacoleiras que vão para os grandes polos têxteis, compram no Brás em São Paulo, no Saara no Rio de Janeiro, na Sulanca no Recife e vendem nos seus territórios de origem. Essa é a prática de empreendedorismo de moda mais comum no Brasil.

Não queríamos apoiar essa jornada justamente porque sabe que essas peças manufaturadas têm por trás condições de trabalho que a gente questiona e não apoia.

Então a gente foi para um lado que poderia apoiar a moda autoral brasileira. Quem está pensando desde a concepção do produto, valorização do trabalho, uso de materiais têxteis que têm certificado de sustentabilidade ou mesmo pensando no seu descarte. A gente queria alavancar esse ecossistema específico e quando desenhamos a teoria da mudança, para onde a gente iria caminhar dentro desse programa, tínhamos desde o início o desejo e o sonho de conectá-los potencialmente com a cadeia de valor da C&A.

Quando a gente fala em cadeia de valor da C&A, a gente fala desde mentoria, processo de acompanhamento com os nossos colaboradores via voluntariado, até mesmo desenvolver esses empreendedores para possíveis colaborações com a marca, com compra indiretas, pensando em brindes corporativos produzidos por cooperativas que tenham essa atividade-fim ou com compras diretas. E no nosso marketplace, que é o endgame dentro da parceria com o Afrolab.

O Afrolab é uma metodologia já consolidada da Preta Hub, que é a aceleradora da Feira Preta, e já foi testada com bons resultados na gastronomia, beleza e na moda. Em conversas com a Adriana Barbosa, que é a CEO da PretaHub, a gente viu uma possibilidade de trabalhar com o afroempreendedorismo e por que não fazer um Afrolab by Instituto C&A, utilizando essa metodologia consolidada e o nosso conhecimento do negócio, junto com os colaboradores da C&A, para mapear talentos e conectar ao marketplace, que é o segundo maior de moda no Brasil. E assim a gente faz a jornada completa.

A qualidade e o talento das marcas que se inscreveram foi muito alto. Muitos empreendedores tiveram uma redução muito grande no faturamento nos últimos três anos e estavam buscando qualquer oportunidade, sobretudo as chamadas públicas digitais. Vimos um pool de marcas que qualitativamente tinha uma entrega muito elevada, o que por um lado nos deixou felizes, mas por outro entendemos que isso era um reflexo do momento que estamos vivendo. Tem, sim, uma expectativa de acelerar negócios que estavam dentro de um desenvolvimento médio de maturidade de negócio, com 20 a 30 mil seguidores, que já tinham feito trabalhos notáveis, procurando processos de aceleração.

Eu não esperava que no primeiro ano de programa conseguíssemos fazer de fato essa conexão e criar uma plataforma em que a gente possa ter novos perfis de marca, novos perfis empreendedores, expondo todos eles no nosso marketplace. Criamos uma plataforma que dá visibilidade à cliente da C&A digital.

O grande diferencial do nosso programa é que vamos fazer uma campanha de marketing da Feira Preta na C&A. Estamos investindo em dar visibilidade ao produto, com fotos profissionais com modelos, shootings especiais, não ficar só no banner ou ativações muito modestas, como outros varejistas.

Esse envelopamento do modelo de negócio entre o social que o instituto faz e o negócio mais abrangente – é muito mais do que uma conexão. Apresentamos esses empreendedores para a base de clientes da C&A, que está em mais de 10 milhões, pensando apenas em aplicativo. O Big Brother Brasil fez com que a gente tivesse nosso app muito baixado durante essa edição e a edição do ano passado. E vamos ter ações nos canais da Feira Preta, do Instituto C&A para ampliar o alcance da campanha.

Por mais que esses afroempreendedores tivessem algum nível de maturidade no que tange aos negócios deles, muitos tinham uma presença digital muito tímida, um faturamento muito pautado em feiras, que nem existem mais, ou até mesmo em pequenas lojas físicas.

O processo de digitalização e o processo de vender moda durante a pandemia que a C&A a duras penas, assim como todo varejo, aprendeu a fazer, foi o ponto nevrálgico dentro dessa troca.

Eu diria que teve uma troca muito positiva especialmente no processo de digitalização. Como criar uma presença digital, se é o momento ou não de rever a minha marca, meu branding, a construção de preço, entendendo a realidade e o perfil do consumo do brasileiro dentro de um magazine como a C&A e como isso pode ser analogamente traduzido por pequenos empreendedores.

Tem pontos que são básicos, como ter um preço de entrada que vai fazer girar o seu negócio. Procurar uma faixa de preço de R$ 49,99, R$ 39,99 que promova uma relação inicial com seu cliente final para que ele consuma posteriormente os seus produtos de preço mais alto. E toda essa engenharia de como sobreviver na pandemia tendo um negócio de moda que ainda é um item de consumo que não está na prioridade do brasileiro, dada a inflação e outros indicadores socioeconômicos.

Essa foi a troca mais rica, foram os workshops que mais geraram engajamento e elogios. Um pouco do que a gente vai apresentar no Feira Preta na C&A resulta dessa construção. Está ali a informação de moda, a moda básica, massa crítica de consumo alta e estão ali também produtos mais fáceis, com faixa de preço menor para democratizar esse consumo.

Um dos debates que a gente teve no Afrolab foi sobre o caráter identitário de algumas marcas, que define o que é uma moda feita por uma pessoa negra. Você tem os elementos de tecidos africanos, elementos ligados a religiões de matrizes africanas, então como criar essa moda de uma forma que as pessoas não-negras se sentissem confortáveis de consumir, sem descambar de repente para uma apropriação cultural ou qualquer debate que gerasse essas questões.

A Adriana [Barbosa, do PretaHub] trouxe isso com muito conhecimento e contundência para esse grupo. ‘Cara, a gente mora no Brasil, nós somos maioria como população, mas a realidade é dura. Nós estamos mais capitalizados, mas estamos com consumo mais restrito do que as pessoas brancas, então a gente precisa aumentar a massa crítica de consumo das nossas marcas para que a gente sobreviva. Então, a gente tem reequalizar a nossa causa para o nosso propósito e nossa sobrevivência’. E também para dialogar através da moda, que é uma ferramenta de expressão gigantesca, a pauta antirracista e trazer todo mundo dentro dessa composição. Nós perpassamos todas essas nuances dentro dessa aceleração, foi uma conversa muito rica e muito bacana.

É essa plataforma que a gente quer construir no longo prazo e explorar o digital onde as marcas têm apostado bastante. E onde hoje começa a nossa jornada de consumo, que pode finalizar no digital ou no físico.

Essa estratégia de gerar conhecimento para esses grupos sociais é para onde a gente está caminhando dentro do programa de empreendedorismo. A gente quer que eles se desenvolvam e possam acessar outras cadeias de valor e consigam gerar esse impacto.

Existe uma macrotendência que é consequência das redes sociais, de se fazer um consumo cada vez mais personalizado, mais individual, que se conecte com o seu eu. Quando a gente fala de afroempreendedorismo, tem uma causa que atrai as pessoas e tem a ver com entender quem faz essa moda, quem pensou aquilo e para quem aquele consumo está sendo direcionado. Existe um consumo político também.

No curto ou médio prazo, queremos trazer essas macrotendências para que sejam o início ou parte da jornada no varejo. E que fazem parte de um movimento bem maior.

A escolha da moda é pautada em três pilares: preço, informação de moda – que a peça tem e do que eu entendo que posso consumir daquela informação de moda – e a qualidade. Aqui no Brasil ainda somos muito guiados por preço. E o preço define as nossas decisões, sobretudo no momento em que a economia não vai bem.

Há pouco questionamento por parte da sociedade sobre os polos têxteis, que todos sabem ter condições de trabalho ruins, porque o preço ainda é um elemento muito determinante para o consumo no Brasil.

A moda é uma ferramenta de expressão muito poderosa. É através da moda que mulheres começaram a quebrar padrões de gênero usando calças, ou diminuindo os comprimentos dos vestidos e das saias, marcando momentos muito fortes dentro do movimento feminista. É através da moda que as pessoas que não se identificam com seu gênero começam a fazer processo de transição, é através da imagem de moda que a gente marca algumas questões específicas de reforço da nossa origem. Eu acredito que nesse momento da história que a gente está se comunicando cada vez mais e se mostrando para o mundo cada vez mais, e quando a gente faz isso a gente está vestido, pelo menos na maioria das vezes, o que as pessoas estão usando vai definir quem elas são e como querem se mostrar. E isso não só pela padronagem, pela cor, mas pela história que existe por trás daquela roupa. Da origem que ela tem.

Há uma geração mais nova e parte da classe média que estão questionando essa escolha, em parte trazendo atributos de sustentabilidade para dentro da decisão de compra, acima do preço e talvez acima da informação de moda. Acredito que o movimento dentro desse tripé vai mudar e trará novas iniciativas, novos projetos, novas maneiras de fazer que vão mudar desde o prêt-à-porter até grandes varejistas como a C&A.

Eu vejo um crescente movimento de pessoas demandando tecidos mais sustentáveis, querendo saber mais sobre a manufatura dessas peças, quem fez essas roupas, questionado o apoio a marcas que não tenham comportamentos antirracistas ou que tenham comportamentos capacitistas ou LGBTfóbicos. Essas reivindicações vão começar a se desdobrar para causas que tangem a expressão do indivíduo e também da sustentabilidade. O consumo vai perpassar essas questões e isso vai causar uma discussão sobre como a gente vive no Brasil.

Eu acredito que o investimento social privado que não tem dentro da sua essência o perfil da concorrência, do mercado e do lucro, pode sim provocar esse ecossistema dentro de uma agenda de colaboração.

Para que eu possa sentar para discutir projetos com o Instituto Renner, o Instituto Riachuelo e a Fundação Anhembi-Morumbi e pensar soluções conjuntas e colaborativas para quatro organizações que no final do dia têm o mesmo propósito.

Eu estou muito otimista em relação ao sucesso dessas iniciativas. A C&A já havia feito alguns movimentos no varejo físico olhando para o consumidor LGBTQIA+, por exemplo, ou para a comunidade periférica, mas que vieram por um viés comercial, não de compromisso social. Agora foi uma provocação do instituto para o negócio. A gente desenvolveu esses talentos e pode fazer uma relação ganha-ganha maravilhosa com eles.

Eu tenho uma crença, um desejo muito forte de que essa plataforma seja perene, que a gente possa ampliar para novos empreendedores, à medida que aprendermos mais com essa primeira edição. E eu espero muito que sejamos copiados e outros varejistas abram essas oportunidades para mais pessoas. Porque a gente não faz mudança sozinhos. A cadeia desenvolvida pela C&A não vai resolver o problema todo, então eu tenho essa esperança de que novas possibilidades vão se abrir em outros ramos, outros varejistas, outras cadeias.

Para os próximos anos já estamos com o compromisso de aumentarmos o investimento no programa de empreendedorismo, que já deu tão certo com um orçamento bem tímido. A gente já tem direcionamento para aumentar esse investimento em 2022, trazer novos grupos sociais para os quais não olhamos esse ano. Eu tenho um desejo muito grande de pensar moda indígena de forma mais explícita. E para todas as potências que têm dificuldade em desenvolver seus negócios dentro de seus perfis e expô-las para clientes da C&A que estão ávidos por novidades e não somente sob a lógica do core business, mas do social. Eu acho que é uma plataforma com essa accountability da liderança tem tudo para dar certo e se transformar em premium em 2022.

Leia a íntegra da conversa com Gustavo Narciso no site da The Shift.
Fonte: The Shift

Por Soraia Yoshida 

https://sbvc.com.br/o-poder-da-moda-para-mudar-o-mercado/

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