O algodão é a fibra têxtil vegetal mais comercializada no mundo, sendo o Brasil o terceiro maior produtor global, exportando essa matéria-prima para mais de 150 países. No cenário internacional, há uma crescente exigência por práticas de sustentabilidade, rastreabilidade e conformidade social e ambiental.
Nesse contexto, a BCI - Better Cotton Initiative surge como referência mundial de sustentabilidade no setor algodoeiro, com o objetivo de melhorar o algodão tanto para os agricultores quanto para todos os interessados em seu futuro. A iniciativa também promove o cultivo sustentável e busca padronizar os processos por meio da criação de normas, princípios e critérios.
No Brasil, o setor é liderado pela ABRAPA - Associação Brasileira dos Produtores de Algodão, que, entre seus pilares de atuação, destaca-se pela ênfase na rastreabilidade, permitindo traçar um mapa fiel da produção do algodão nacional, por meio de duas iniciativas: o SAI - Sistema Abrapa de Identificação e a SouABR - Algodão Brasileiro Responsável.
Desse modo, o presente artigo discute como a tecnologia blockchain se consolida como instrumento jurídico e tecnológico fundamental para garantir a rastreabilidade segura da cadeia do algodão, respondendo às demandas globais por sustentabilidade e governança.
A iniciativa SAI desenvolveu um sistema que, por meio de uma etiqueta de identificação semelhante ao "CPF", permite rastrear com exatidão o fardo: da fazenda onde foi colhido, à usina de beneficiamento, passando pelo laboratório responsável pela análise da qualidade da fibra. Entre suas vantagens, destacam-se o sistema único e confiável de identificação dos fardos, a agilidade na obtenção dos resultados de classificação pelos laboratórios e facilidade da comercialização nos mercados interno e externo.
Já a iniciativa SouABR é a pioneira na rastreabilidade em larga escala da indústria têxtil brasileira por meio da tecnologia blockchain. A partir de um QR Code na etiqueta da peça de roupa, o consumidor consegue acompanhar toda a trajetória da peça, desde o plantio do algodão certificado até o produto final.
Nesse ínterim, cabe esclarecer o conceito de blockchain; entretanto, é imprescindível explicar, antes mesmo, o que é o Bitcoin. O conceito de Bitcoin está apoiado em três grandes pilares: hardware, software e criptoativo. O hardware compreende o conjunto de dispositivos físicos que formam uma rede de computadores descentralizada que servem como mineradores ou validadores, enquanto o software refere-se à blockchain, ao gerador de pares de chave e às regras do protocolo. Por fim, o criptoativo é o pagamento do software para o hardware e desempenha a função de moeda em um sistema de pagamentos.
Portanto, quando nos referimos a blockchain, tratamos de um componente do Bitcoin enquanto software. A blockchain é uma rede descentralizada e distribuída por computadores, que registram de forma imutável, transparente e segura dados, informações e operações. Sendo assim, uma tecnologia de registro distribuído, público, pseudônimo e auditável, que funciona como livro razão. O principal diferencial da blockchain é que não existe autoridade central ou intermediário, portanto, a confiança está exclusivamente na tecnologia.
A partir da blockchain do Bitcoin, surgiram diversas redes blockchain que funcionam de maneiras diferentes. A iniciativa SouABR utiliza a blockchain da Polygon para fazer o registro da cadeia de suprimentos, essa rede é uma sidechain da blockchain Ethereum, ou seja, funciona de forma paralela à rede principal.
A blockchain da Ethereum inovou implementando na sua estrutura a possibilidade de criar um código computacional executável, que seriam os smart contracts. O conceito de smart contracts, embora a expressão possa ser traduzida literalmente como "contratos inteligentes", esse não se enquadra como categoria contratual nos moldes do ordenamento jurídico brasileiro, em síntese, são cláusulas de execução automática.
No caso da SouABR, utiliza-se um smart contract para registrar, na blockchain, todas as etapas da cadeia produtiva do algodão, desde o plantio até a chegada da peça de vestuário no varejista. A blockchain funciona como livro-razão, cuja versão original está em todos os nós da rede. As regras de funcionamento do protocolo garantem a execução, validando a ordem de inserção dos dados e operações com transparência. Dessa forma, qualquer interessado pode acessar essas informações de forma segura. Além disso, a própria estrutura descentralizada da rede torna praticamente inviável e extremamente onerosa qualquer tentativa de violação, o que garante elevados níveis de segurança e confiabilidade. Por fim, a integridade dos registros é preservada por meio do mecanismo de consenso entre os validadores, que atestam a autenticidade de cada bloco incluído na cadeia.
Assim, a iniciativa utiliza a tecnologia fazendo o registro dos dados em blocos que juntos formam uma rede, cada bloco é autenticado, validado e colocado em sequência, de forma imutável e inviolável. Cada bloco na rede contém uma lista de transações com timestamp, indicando a data e hora exatas. Portanto, o registro se torna uma prova concreta e cabal resistente a adulteração.
Diversos países já reconheceram a validade jurídica da tecnologia blockchain e regularam a matéria, contudo, há ainda um longo caminho a ser percorrido. No Brasil, a matéria ainda está em processo de regulação, sendo tema de diversas consultas públicas do BACEN - Banco Central e de resoluções da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, além da sanção da lei 14.478/22 que dispõe sobre a regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais.
De acordo com Freire (2021), a natureza jurídica da blockchain, considerando apenas o aspecto da tecnologia distribuída e descentralizada de registro eletrônico de dados deve ser definida juridicamente como "obra", pois trata-se de uma criação intelectual do domínio científico expressa por meio de código e da internet, nos termos do art. 1º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Quanto a natureza jurídica do smart contract, essa não é cristalina, segundo Leandro Gobbo (2023, v.22, p.25): "smart contracts são instrumentos cujo objetivo é viabilizar a realização de negócios diferidos no tempo, formalizados por meio de código de computador, escritos em linguagem formal e de exequibilidade automática."
Além disso, o registro em blockchain consolida-se como prova digital dos atos jurídicos ao longo da cadeia de suprimentos, preservando as posições jurídicas envolvidas. Não obstante, o próprio CPC, no art. 369, permite o emprego de qualquer meio de prova para corroborar a verdade dos fatos. Por sua vez, a blockchain também garante a cadeia de custódia da prova, por conta das características intrínsecas da própria tecnologia que geram uma lista de transações por ordem cronológica, que são auditáveis, transparentes e seguras, atendendo aos critérios de cronologia, integridade, autenticidade e idoneidade da prova, previstos do art. 158-A e seguintes do CPP.
A aplicação da tecnologia blockchain no rastreio do algodão brasileiro representa um marco na modernização da produção têxtil. As iniciativas SAI e SouABR demonstram como a inovação pode atender às crescentes demandas por sustentabilidade, confiabilidade e governança no mercado global. O uso da tecnologia blockchain como instrumento de registro da cadeia de suprimentos tem potencial para transformar as relações comerciais, fortalecendo os vínculos entre todos os agentes da atividade produtiva.
A regulação ainda é uma incógnita, mas o potencial transformador dessa tecnologia em todas as áreas é imensurável, uma vez que o presente artigo tratou da tecnologia somente no viés do registro, cuja viabilidade jurídica foi demonstrada ao longo do texto. Portanto, é inevitável o uso da blockchain nas atividades produtivas, não sendo possível ignorá-la em detrimento do crescimento econômico. Assim, no futuro próximo, espera-se a integração entre a tecnologia e a regulação.
Rafaela Montanari Aguiar Rey Lima
Advogada, formada em Direito pelo UniCEUB, pós-graduada pela Residência Jurídica do Programa de Carreiras da OAB/DF e, atualmente, cursando MBA em Blockchain e Criptoativos pela Trevisan.
https://abrapa.com.br/2025/08/15/o-uso-da-tecnologia-blockchain-na-...