Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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Elas desfrutaram do poder e do dinheiro enquanto seus maridos comandavam o tráfico. Depois, tiveram de conviver com as ameaças de facções inimigas e de policiais. No final, acabaram levando marmita em porta de cadeia

 

Por Nathalia Ziemkiewicz

 

STATUS 36 - VIOLÊNCIA

 

Tinha 15 anos quando lhe disseram pela primeira vez: “A patroinha chegou…”.Era dia de baile funk no morro do Cerro Corá, zona sul do Rio de Janeiro. A Daniela Silva que subia a favela naquele dia levava uma vida de classe média. No “asfalto”, circulava comas amigas patricinhas do colégio, mantinha o bronze nas areias de Copacabana e se submetia à rígida educação do pai militar. A filha seguia a cartilha obtendo as melhores notas e voltando às 10 horas da noite para casa. Assim foi, até Daniela se apaixonar por Junior, o dono da festa – e do morro inteiro. Lá do alto, o traficante aguardava a convidada de honra com um fuzil atravessado nas costas. Os dois se conheceram na região do Lido, próximo ao Posto 2, onde um amigo de Daniela costumava comprar maconha – ela mesma não curtia o barato, mas acompanhava o rolê. Sempre por ali, Valdir de Oliveira Junior deu um jeito de serem apresentados e não tirava os olhos da morena de cabelos cacheados. “Achei que ele gostasse de uns baseados também, mas não podia imaginar que era o dono da boca”, diz. Engataram um romance: cinco anos mais velho, ele a buscava de moto na escola e passavam a tarde na praia. Em um mês, Junior conseguiu tirar a virgindade e as desconfianças dela quanto ao seu sustento. Logo precisou confessar seus segredos.

STATUS 36 - VIOLÊNCIA

Daniela Silva

De uma vez só, ele contou que morava com uma mulher, que a família toda trabalhava no crime e que tinha problemas com a Justiça. Atônita, Daniela quis entender melhor que problemas eram aqueles. Junior estava foragido, respondia por tráfico de drogas, dois assaltos e latrocínio (roubo seguido de morte). “Fui embora chorando e a palavra ‘latrocínio’ não saía da minha cabeça – tive vergonha de perguntar o que significava”, diz. A noite em claro, num misto de medo e decepção com tantas descobertas perturbadoras, não foi suficiente para afastar Daniela da paixão. A diferença é que a partir de então ela sabia e aceitava, tornara-se cúmplice do amor ficha-suja. Sem conta em banco, Junior depositava bolos de cheques oriundos do crime na poupança que a namorada mantinha apenas por causa de sua mesada. Certa vez, Daniela guardou no armário do próprio quarto uma sacola com dinheiro, pistola e um quilo de cocaína. Metia-se em viagens-relâmpago, mentindo para os pais que estaria com as amigas. O casal partia com a roupa do corpo, sem planos, para gastar no destino como se o mundo fosse acabar no dia seguinte. A intensa adrenalina e a grana fácil seduziam tanto quanto os afagos à vaidade. “Temiam o chefe e faziam qualquer coisa para me agradar”, diz. “Ninguém me contrariava, mesmo que dissesse a maior bobagem.”

Quando Daniela completou 17 anos, seu pai pediu transferência para Manaus. Ele fracassara nas tentativas de afastar a filha daquele perigoso envolvimento. A adolescente se recusou a ir, rompeu relações com a família e foi morar com Junior. Decisão que a faria entrar de cabeça no universo da bandidagem pelos próximos anos. Certa vez, Daniela voltava da academia quando percebeu a presença de policiais no prédio em que moravam, em Botafogo. Correu até o apartamento para sumir com os flagrantes antes que esmurrassem a porta. Enfiou pistolas, granadas e cocaína dentro de travesseiros e jogou pela ventilação interna do banheiro. Foi aquele estardalhaço: “Vocês estão presos”. O traficante sabia que estava sendo caçado e guardava parte do lucro para cobrir eventuais subornos. Minutos depois, acertou a liberdade em troca de R$ 100 mil, uma moto e algumas armas. “Ficou ‘estreito’ de a gente circular pelo ‘asfalto’, tivemos que nos mudar para o morro”, conta. “Mas eu nunca me adaptei àquilo.” Apesar do status e das regalias como primeira-dama, além do conforto de uma casa equipada, Daniela vivia entediada. Não se identificava com as garotas da favela. Quando o cerco se fechava contra Junior, ela o seguia na rotina nômade. Um dia dormia no meio do mato, noutro em barraco de desconhecidos.

Ele havia sido identificado num grampo telefônico em que negociava o fornecimento de drogas com um traficante colombiano. Após três operações policiais no Cerro Corá e muito tiroteio, Junior foi preso em 1997. Daniela nem sequer cogitou abandoná-lo. Aprendeu o caminho e as artimanhas de cada penitenciária, preparando o “jumbo” com os mais variados produtos (de frutas a papel higiênico). Numa das primeiras visitas, ela engravidou no “ratão” – transa de 15 minutos no banheiro, proibida pelos agentes. Mais do que um filho na barriga, passou a carregar responsabilidades bem pesadas. “Eu tinha que tomar conta dos negócios aqui fora”, explica. “É como se diz: são os olhos do dono que engordam o boi…”. Ótima em matemática, Daniela já ajudava na contabilidade do tráfico. Para organizar a distribuição do dinheiro, ela montou um caderno de pagamentos. Cada integrante recebia um valor semanal de acordo com a hierarquia que ocupava no esquema. Havia ainda a quantia entregue às mulheres dos funcionários cumprindo pena. Com o marido atrás das grades, passou também a cobrar e dar ordens. Mas não fazia nada sem falar com ele. Junior ligava o dia inteiro para saber onde e com quem Daniela estava. Pedia para ouvir a voz das pessoas no telefone. Quem ousaria desafiar o ciúme de um homem desses?

O morro, então gerenciado por Daniela, foi tomado por uma facção inimiga. Ela cuidava do filho quando, em 2001, Junior apareceu fugido da cadeia. Voltou à ativa, dessa vez assaltando residências e joalherias. A família gozou do dinheiro sob o sol de Porto Seguro (BA). A lógica do crime não prevê nada a longo prazo – é ganhar e gastar. Certa noite, enquanto assistia a um jogo de futebol e cheirava pó em casa, Junior discutiu com o comparsa por causa de um roubo que, por pouco, não deu errado. Daniela percebeu o tom sinistro da conversa e se meteu entre os dois. Levou três tiros: na barriga, no pescoço e nas costas. “Junior descarregou o pente da pistola e matou o cara. Eu sabia que a vizinhança já devia ter chamado a polícia”, diz. “Achei que fosse morrer, então mandei que ele fugisse dali com o nosso filho.” Daniela foi internada com uma bala alojada na coluna e quase ficou paraplégica. Perdeu pedaços do intestino, do estômago e da bexiga. Sobreviveu com apenas uma sequela no pé esquerdo, sem movimentos. Junior foi pego meses mais tarde e transferido para Bangu, onde permanece até hoje. Ela se recuperou e, em 2007, foi presa após uma investigação que quebrou seus sigilos bancário e telefônico. Os amantes arquitetavam o esquema dos famosos golpes de falso sequestro por telefone. Acusada por extorsão, associação ao tráfico e formação de quadrilha, Daniela recebeu oito anos de condenação. A criança do casal, órfão de pais livres, ficou com a avó materna nos três anos em que ela cumpriu pena sob regime fechado. “Via o desespero da minha mãe, a carinha do meu filho e percebi que havia feito tudo errado”, diz. “Eu queria morrer e nascer de novo.”

Determinada a recomeçar, Daniela conseguiu um emprego na sede da ONG AfroReggae. Junior detestou a ideia de a mulher buscar independência financeira e sair definitivamente da ilegalidade. “Vai trabalhar por um salário de R$ 500, coisa que você gastava numa bolsa?”, ele provocava. Em março de 2013, numa visita ao marido na penitenciária, Daniela mostrou que não aguentava mais. Tirou a aliança do dedo e avisou que não voltaria. “Eu sabia que aquela era a hora e o lugar, cheio de gente e policial – se ele tentasse alguma coisa contra mim, teria como pedir socorro”, lembra. “Junior duvidou, mas eu saí andando sem olhar pra trás.” Durante meses, ele a ameaçou de morte por telefone. Tinha certeza de que Daniela estava com outro homem. “Imagina! Preciso ficar sozinha para ele digerir… e não é justo botar alguém num rolo desses.” Hoje, ela se divide entre as obrigações como mãe de um garoto de 15 anos, o terceiro ano da faculdade de administração e o trabalho como coordenadora do projeto Empregabilidade do AfroReggae. “Durmo em paz, não devo nada a ninguém”, diz, aos 36 anos. “Tenho estabilidade para construir um futuro. Os castelos que Junior me deu sempre foram de areia.” Daniela ainda envia os alimentos e materiais de que ele precisa – agora, pelos Correios. A previsão é de que ele só retorne às ruas em 2026. E ela não esconde o receio quanto a isso.

 

PLAYBOYZINHO

O caso de Daniela e o de tantas outras mulheres, mostrados também em uma série do canal GNT chamada Paixão bandida, são cada vez mais comuns e atraem muita curiosidade. Como, afinal, elas entram nesse mundo? A verdade é que muitas delas andam soltas por aí, mas estão tão presas quanto seus companheiros. Seja por medo ou por amor. “Muitas mulheres de traficantes trabalham e têm empregos formais, mas acabam sendo solicitadas por eles – seja para carregar uma arma, seja para esconder dinheiro. Sempre para resguardar a segurança de seus companheiros”, diz Carolina Grillo, antropóloga e professora da Fundação Getulio Vargas, com tese de doutorado sobre o tráfico nas favelas. “Em geral, é um envolvimento periférico, elas não percebem que estão envolvidas no crime.” É o caso de Renata Coimbra. Quando adolescente, queria ser médica e frequentava a igreja evangélica na Vila Cruzeiro, no bairro da Penha, zona norte do Rio, onde cresceu. Do casamento aos 17, veio a primeira filha. Renata se separou três anos depois e conheceu Johny da Silva Militão em rodinhas de samba. Chamado de “playboyzinho” pelo estilo e pela boa pinta, era um tímido auxiliar de dentista. Renata resistiu o quanto pôde, preocupada com sua reputação, mas acabou saindo com o galã trabalhador. “Todo mundo gostava dele, não era envolvido no crime”, lembra.

Não demorou até que os namorados estivessem morando juntos e ela engravidasse novamente. O salário mínimo que Johny recebia parecia ainda mais insuficiente agora. Apesar da renda familiar, sonhavam com um bom carro e uma casa com piscina. Ele arrumou um emprego numa empresa de eventos, passou a viajar para fora do Estado e do País. “Ele começou a se deslumbrar e a conviver com pessoas estranhas”, diz. “Eu sabia que algo errado estava acontecendo, brigava para que ele me contasse no que tinha se metido”. Johny foi mandado embora do trabalho, mas não aparentou nenhuma preocupação. A despeito do desemprego, a renda familiar só aumentava. Embora não o visse armado ou em bocas de fumo, Renata concluiu que ele estava revendendo drogas. O pai de família se transformara num matuto, como se diz na gíria: comprava em São Paulo e na Colômbia para abastecer o morro da Vila Cruzeiro.

STATUS 36 - VIOLÊNCIA

Renata Coimbra

“Coloquei ele contra a parede, relutei muito, tentei fazer com que mudasse de ideia”, diz. Johny cravou que aquela era a vida que almejava para si – R$ 10 mil por semana. Renata, com seus dois filhos pequenos, dependia dele financeiramente e se resignou com a decisão. “Ele não queria ser bandido para matar, mas para ter acesso rápido às coisas materiais que invejava.” Por dois anos, desfrutaram dos símbolos de status a que podiam pagar, como as roupas de marca. As pessoas da comunidade passaram a olhá-los de forma diferente, com reverência e temor. “‘Não mexe com a mulher do Johny’, diziam. Se por um lado era um alívio não ter dificuldades financeiras, por outro descobrimos um cotidiano arriscado. A grana não rendia porque não tinha o valor do suor”.

 

OBRIGADA A IR NO PRESÍDIO

O marido doce e gentil ficou agressivo, cheio de neuroses de perseguição. Acusado de traição por um traficante, foi ameaçado de morte. A família saiu às pressas: no dia seguinte,eles mudaram-se para Realengo, onde ele arrumou um emprego de carteira assinada numa ONG. Estavam empenhados em acabar com aquela loucura e recuperar o passado honesto. “Meu pavor era que ele morresse ou fosse preso”, afirma. “Não existe outra alternativa para quem entra nessa vida.” E a intuição de Renata não poderia ser mais precisa. Certo dia, ela abriu a porta de casa e deu de cara com um oficial de Justiça. Era um mandado de prisão para Johny por tráfico e associação ao tráfico. Trêmula, ela assinou o papel garantindo que ele se apresentaria à delegacia quando retornasse do expediente.

Fugiram para outro bairro, em meio à montanha-russa de emoções. Renata insistia para que ele não cedesse às tentações de voltar ao crime. Para dar o exemplo, ela conseguiu um bico como demonstradora de produtos em um supermercado e iniciou a faculdade de nutrição. Johny tentou, sem sucesso, vender cestas básicas e abrir um lava-rápido. Certo de que a prisão seria inevitável, combinou com a mulher que venderia drogas até que o dinheiro pudesse comprar um lugar para morarem.

STATUS 36 - VIOLÊNCIA

Os moradores de favelas como as da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão tratam as mulheres de traficantes como rainhas por medo de represálias de seus maridos

Eles se instalaram na casa nova e reformada na Vila Cruzeiro de suas infâncias. Um mês depois, quando Johny saiu de carro para buscar Renata na faculdade, foi abordado por policiais. Não foi uma batida à toa. Ele era foragido da Justiça e havia sido flagrado numa escuta telefônica. Ao saber da condenação de dez anos, Renata ficou deprimida e sozinha. Hoje recebe ajuda dos sogros e da avó para manter as crianças e realizar as visitas semanais – nos três anos em que ele está preso, ela nunca faltou aos encontros permitidos. “Renata paga o preço das visitas à cadeia e do estigma de ser mulher de bandido. Mulher de traficante corre muitos riscos, como ser sequestrada e torturada pelas facções inimigas e pela polícia”, diz José Junior, presidente da ONG AfroReggae. “Depois, quando o cara é pego e condenado, elas também ficam presas, obrigadas a frequentar os presídios em todas as visitas.”

Hoje, Renata atua como coordenadora pedagógica de uma creche na comunidade e batalha para conquistar o diploma de nutricionista. Os dois filhos estudam e preferem não ter contato com o ambiente penitenciário. Perderam o convívio com o pai nos últimos anos. Mas Johny acaba de progredir do regime fechado para o semiaberto, com direito a trabalhar durante o dia e retornar à noite para a cadeia. “É engraçado… posso ver uma pessoa com um baita carrão que não invejo. Mas me dói demais ver uma foto de amigos viajando em família.”

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