Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

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Seria possível ter no Brasil uma administração pública na qual oposição e situação aceitem os seus erros e tenham consciência dos seus limites?

Rezamos todos ou a reza, como reza o hábito, é um atributo (ou um privilégio) dos que acreditam em alguma coisa? Acreditar é um verbo poderoso. Talvez o mais poderoso de todos, porque ele afirma algo que é ou não é, dependendo do ponto de vista. Eu acredito em Deus!, diz Francisco; Eu não!, responde José. Acredito que o mundo vai acabar em dezembro deste ano e que o mensalão é obra das elites reacionárias, de uma imprensa corrompida e de um Supremo Tribunal Federal golpista, dizem os defensores de Lula.

O pragmatismo inocente afirma que “gosto não se discute”, mas se aplicarmos isso ao verbo crer, o mundo se abre a uma torrente de loucuras. De fato, aprendemos que o verbo acreditar também tem limites. Não há como acreditar em Papai Noel ou que a morte não exista fora dos simbolismos culturais e religiosos. Crer é um direito e um ato de fé.

Há quem acredite em X, Y e Z – e há quem não acredite em X, Y e Z. Então X, Y e Z têm um lado oculto (ou tenebroso) que a suposta luminosidade do crer não alcança. O não crer obriga o crente a ver o todo. O crer, por seu turno, leva o cético a ver o lado que lhe falta e que ele imaginava não existir.

Esta pobre meditação é o resultado de um fato concreto e do meu mal-estar relativo ao mundo político brasileiro.

Primeiro, o fato.

Morre uma professora dedicada. Eu não a conheci, mas pelas mensagens que recebo, relembro como é dura a reconciliação com a presença concreta da morte para seus entes queridos. Eis que, no meio das mensagens, um padre solidário com a perda espera não constranger os seus colegas ateus com suas preces. Poucas vezes me deparei com um exemplo de tamanha delicadeza e sensibilidade. Que os ateus me desculpem, eu não rezo para ofendê-los, diz o padre.

Como um conforto ao sacerdote, eu desejo sugerir que todos rezam. Uns acreditando, outros sem acreditar. Mas, perguntaria um crente: como rezar sem um Deus? Ora, responderia o ateu, e como rezar para divindade se o rezar é um ato pelo qual se aceita o mundo tal como ele é? Na sua bondade e maldade, nas suas trevas e luzes? Mais do que reconhecer, suplicar ou tentar estabelecer um contrato com as divindades, a prece é, já dizia Mauss, o ato religioso mínimo para entrar em contato com o sobrenatural que nos cerca e aterroriza, sejamos crentes ou ateus.

Rezar é reconhecer nossa finitude, fraqueza, carência, angústia e solidão. É admitir que vivemos numa totalidade que não podemos conhecer completamente. É um ato que pertence ao que Gregory Bateson chamou de “uma ecologia da mente”. Pois, quando rezamos, suspendemos o aqui e agora dominados pelo eu para irmos de encontro ao todo. Rezar é admitir que há no mundo seres e situações estranhas, acima (ou abaixo) dos elos entre meios e fins. Há quem use um canhão para matar um passarinho e quem tente enfrentar gorilas com poesia. O mundo não é claro como querem os materialistas, mas também não é absolutamente escuro como desejam os crentes.

Eu ando rezando às claras e às escuras. Vejo no Brasil que julga o mensalão um dado novo e alarmante para os poderosos de todos os matizes e de todas as estirpes.

Este é um julgamento que pela primeira vez na nossa História vai traçar limites não apenas para quem cometeu ilegalidades no poder, mas nos contextos ou situações engendradas por quem o ocupou e, sobretudo, por quem se deixou ocupar pelo poder.

Meu mal-estar com relação ao Brasil tem a ver com a força de quem tem certas crenças. E para quem tem certas crenças, os fins justificam os meios. Ser poderoso é, no Brasil, bradar pela ausência de limites. Será mesmo possível punir um poderoso no Brasil? É possível aceitar o erro de um petista, mesmo sendo petista? Pode-se admitir que os petistas, como a maioria dos seres humanos, são também ambiciosos e podem errar, como foi o caso do mensalão e, pior que isso, o aliar-se em São Paulo ao sr. Maluf?

Pode-se ser de esquerda deixando de lado o chamamento milenarista que promete um mundo perfeito quando perpetuamente governado por um messias? Seria possível ter no Brasil uma administração pública na qual oposição e situação aceitem os seus erros e tenham consciência dos seus limites?

Será que hoje não estamos num tempo em que a ética tem sido comida pelo político e pela “política da coalizão”, que foi a alma do fato em causa? Politizar negativamente é impedir a visão do todo como sendo feito de parcelas diferenciadas. Se você, leitor, concorda comigo, reze. Se não concorda, reze por mim.

Fonte: O Estado de S. Paulo

Autor: Roberto DaMatta

 

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