Paulo Vaz, diretor geral da ATP, diz que o setor - que esteve quase a bater o recorde de exportações - teve melhor desempenho do que o país. Vaz frisa ainda que é preciso que haja fusões e aquisições.
O setor têxtil que fechou 2016 a exportar 5.063 milhões de euros, aproximando-se do máximo histórico alcançado em 2001, e com um volume de negócios de 7.300 milhões de euros, está a viver um ciclo de transformação. A aposta em têxteis técnicos, em novas tecnologias e em produtos mais sofisticados e sobretudo uma maior exposição internacional mudaram a cara de um setor que já foi dado como perdido. Com o maior desafio a centrar-se no comércio eletrónico, o setor precisa de consolidar-se para ganhar dimensão, sobretudo em termos comerciais.
Quem o diz é Paulo Vaz, diretor-geral da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), que, em entrevista ao ECO, analisa ao detalhe o atual momento da indústria.
Para Paulo Vaz estes números do setor só foram possíveis porque “a indústria foi melhor que o próprio país”. “O setor surpreendeu positivamente porque teve um melhor desempenho do que o país”.
A indústria têxtil e vestuário representa 10% das exportações nacionais (3% das exportações de têxtil e vestuário da União Europeia); 20% do emprego da indústria transformadora nacional; 8% do volume de negócios na indústria transformadora nacional e 9% da produção da indústria transformadora nacional.
O diretor geral da ATP imputa esta boa performance “à reviravolta notável, à capacidade de renovação, e de resiliência das empresas e dos empresários”. Mas sobretudo afirma: “o setor viveu já este século a sua maior intervenção”.
E a comprovar o que diz, atira com aquelas que são as três maiores empresas do setor: “a TMG Automotive, a Farfetch e a Coindu, empresas que têm um perfil muito diferente do que era há uns anos atrás”. Para trás parecem ficar os anos do têxtil tradicional e começa a emergir — ou melhor já emergiu — a era dos têxteis técnicos.
Paulo Vaz dá mesmo o exemplo da PR Têxteis, uma têxtil que se dedica a fazer fatos de surf ou equipamentos para desporto como o triatlo. “São têxteis que exigem grande tecnicidade e completamente diferentes dos que se faziam há uns 20 ou 30 anos”.
Para trás ficam os anos em que a grande vantagem competitiva da indústria se fazia pelo preço. “Primeiro aproveitamos o facto de estarmos integrados num espaço comercial que era protegido, quer o acordo multifibras com a EFTA, quer com a União Europeia”. Mas o cenário alterou-se com a liberalização mundial do comércio”.
Paulo Vaz não tem dúvidas que a partir de 2001 “o setor teve o seu maior pico, quando atingiu os 5.073 milhões de euros em exportações, 8.300 milhões em volume de vendas e tinha ainda um grande contingente de pessoal ao seu serviço, ultrapassando as 200 mil pessoas. A partir daí foi sempre em queda”.
A primeira década do século foi muito difícil para o setor têxtil. À entrada da China para a OMC juntou-se, em 2004, o alargamento da União Europeia a Leste. Paulo Vaz diz que “entraram um conjunto de países com custos mais baixos e depois deu-se a liberalização em pleno e revelou-se um verdadeiro rolo compressor, a que se juntou ainda a crise económica e financeira global, que atingiu todos, inclusive Portugal e que culminou numa crise essencialmente de consumo”.
“2009 foi o nosso pior ano”, remata o diretor geral da ATP. Mas como diria Passos Coelho, as crises podem também ser momentos de oportunidade. E o setor dá a reviravolta.
Numa análise aos números constata-se que o volume de negócios da indústria que, em 2009, era de 5.355 milhões de euros cresceu progressivamente até atingir os 7.300 milhões de euros em 2016. Já em termos de exportação, a variação é também positiva, passando de 3.501 milhões de euros para os 5.063 milhões em 2016.
Os números tornam evidente a tendência de crescimento, com a produção por exemplo, a passar dos 5.163 milhões de euros em 2009 para os 6.200 milhões para 2016. Ao nível do emprego, por exemplo, em 2009 existiam 146.485 pessoas ao serviço da industria, tendo este número decaído até 2013 (124.147) para voltarem a crescer e chegarem a 2016 com 134 mil pessoas, segundo estimativas da ATP.
“É notável a capacidade de renovação, de resiliência e de se reinventar dos empresários“. Paulo Vaz recorre à fábula do sapo que está na sopa quentinha, a que se vai juntando mais água quente, e o sapo vai-se deixando estar e deixa-se cozer. O setor, diz, estava quase como o sapo: “os nossos fatores de competitividade estavam a iludir-se e as decisões difíceis iam sendo adiadas: restruturação, redefinir objetivos, missões, intensificar a internacionalização, redefinir produto. As decisões iam sendo adiadas porque o dia-a-dia impunha-se e apesar de tudo iam surgindo encomendas”. Até que, prossegue, Paulo Vaz “a crise sacudiu as empresas e foi necessário investir em novas tecnologias, diversificar atividade, apostar em produtos mais tecnológicos”.
É nessa altura que as tradicionais empresas têxteis passam a trabalhar para setores diferentes como a medicina, o automóvel, a construção.
Os subsetores que melhor têm respondido “neste últimos tempos tem sido as malhas e vestuário, mas a maneira como estão analisadas as categorias ainda é muito antiquada. Uma das coisas que não se consegue detetar como está estruturado atualmente é o que são os têxteis de alta tecnicidade. Um têxtil técnico fácil de distinguir é a cordoaria de redes, mas tudo o que se veste hoje no desporto é altamente técnico“.
Entre os principais produtos vendidos ao exterior ao longo de 2016, destacam-se o vestuário de malha (42% do total da ITV), o vestuário de tecido com 20% e outros artigos têxteis confecionados com 13%.
Já os principais produtos importados foram o vestuário de tecido (26% do total da ITV), vestuário de malha (25%) e matérias-primas, incluindo fio e tecido de algodão (13%).
O grande salto acontece quando as empresas começam a olhar para novos mercados. Aqui, a ATP dá também uma ajuda, através da associação seletiva à moda. “Em 2002, quando começamos a realizar as primeiras feiras, envolvíamos 20 a 30 empresas e realizávamos sete feiras, hoje temos 85 feiras em 35 mercados”, sublinha Paulo Vaz.
Para além da mudança de mentalidade dos empresários, houve ainda o apoio dos incentivos de programas de incentivo do POE e do QREN.
Com os olhos postos no exterior, as empresas acabaram por se voltar para os mesmo mercados de sempre.
Os principais clientes são, em 2016, a Espanha com uma quota de 35%, seguida por França com 12%, Alemanha com 9%, Reino Unido 8% e os Estados Unidos com 5%.
“No essencial os mercados são os mesmo, o que aconteceu foram mudanças de posicionamento e os próprios segmentos de mercado que são diferentes”.
Paulo Vaz recorda que “Itália foi substituída nos últimos dois anos pelo mercado dos Estados Unidos”.
Espanha teve um papel fulcral durante a crise. Paulo Vaz fala numa relação estreita e virtuosa com o grupo Inditex. “Os modelos de ‘fat fashion’ de que o grupo Inditex é o principal representante não estão baseados tanto no preço como na rapidez”, assegura o diretor geral da ATP.
“O facto de termos aqui uma indústria que está junto à fronteira com a Galiza onde está sediado o grupo Inditex, e onde podemos chegar em duas horas, foi determinante na mudança de modelo de negócio que começou a surgir. Estas cadeias desfizeram o conceito tradicional das coleções e passaram a oferecer 10,12, 13 coleções por ano. Ora isto só é possível quando conseguimos reduzir as séries e ter uma capacidade de resposta muito rápida, o ‘lead time’ que andava na casa das seis semanas reduziu-se em muitos casos para 2 a 3 semanas”.
Outra das coisas que a crise ensinou é que ter stocks é muito caro, e quem pode evitar os stocks é precisamente uma industria como a portuguesa, que consegue trabalhar com séries pequenas com grande valor acrescentado e com muita inovação tecnológica.
Paulo Vaz não tem dúvidas: “isto calhou muito bem e ajudou muitas destas empresas a suportarem este período dificílimo”.
Para uma indústria tão exposta aos mercados internacionais, a conjuntura internacional pode ser um problema. Na Europa, o Brexit, associado às eleições em França e na própria Alemanha levantam sérias interrogações. A somar a isto há ainda a incerteza à volta da governação de Donald Trump, nos Estados Unidos.
Paulo Vaz diz que está mais tranquilo relativamente à Alemanha de onde acredita não vão surgir grandes surpresas. Já França poderá ser um problema. “Espero que haja algum bom senso, até porque França é dos grandes mercados da nossa industria“.
Também o Reino Unido levanta algumas interrogações a Paulo Vaz. “Tenho alguma preocupação com o Brexit, não tanto por aquilo que poderá ser o quadro das relações comerciais que a União Europeia estabelecerá com o Reino Unido, até porque acho que se houver juízo de ambos os lados pelo menos uma União Aduaneira existirá, mas o grande problema prende-se com a qualidade de vida do Reino Unido que temo venha a decair, o que terá efeitos imediatos no consumo”.
Já os Estados Unidos podem vir a revelar-se um problema para o setor, mas Paulo Vaz garante que “os efeitos podem não ser tão graves como à primeira vista poderíamos pensar”.
Para Paulo Vaz “a politica económica da administração Trump vai ser muito simples e elementar e, sobretudo, muito coerente com a campanha. Pela primeira vez vamos ter um político a cumprir com o que prometeu o que é assustador”.
O diretor geral da ATP adianta que “as grandes apostas da administração americana serão as infraestruturas e o armamento, o que vai acabar por ter reflexos no poder de compra da classe mais desfavorecida americana pelo que o consumo tenderá a aumentar”. Paulo Vaz adianta, no entanto, que apesar de o país apostar numa “reindustrialização, há indústria como a do têxtil que não é tão fácil de regressar porque as competências foram perdidas”. E Paulo Vaz socorre-se dos números. “Num primeiro momento, com a expectativa de Trump vencer as eleições, tivemos um recuo nas exportações de 6% para os Estados Unidos, mas no mês de janeiro, tivemos novamente um aumento”.
Para Paulo Vaz, “se o Reino Unido e os Estados Unidos tivessem tido um comportamento normal, a indústria teria batido o recorde ao nível das exportações”.
A exportar 16% para fora da União Europeia, o setor teve contudo, a exemplo do que aconteceu um pouco em todos os setores de atividade, o revés do mercado angolano.
Paulo Vaz diz que “temos agora a expectativa do mercado mexicano, um mercado que pela sua dimensão e sobretudo por ser um mercado de livre comércio para onde se pode exportar a taxa zero e assume como muito atrativo”. Já sobre a Colômbia, onde o setor tem vindo a realizar várias feiras, Paulo Vaz adianta: “a Colômbia para nós não é um mercado espetacular, mas apostamos neste mercado porque serve como plataforma para a América Latina”. Hoje, adianta Paulo Vaz, “o ‘made in Portugal’ é uma etiqueta que acrescenta valor, e essa é de resto uma das coisas que mudou face ao passado. Deixamos de ser tomadores de encomendas e passamos a ser vendedores e nalguns casos até criamos marca”.
O setor do têxtil e vestuário exporta, como já foi referido, 5.063 milhões de euros e importa 3.912 milhões de euros. Deste montante das importações, apenas uma pequena parte são matérias -primas, o resto é produto acabado.
Para Paulo Vaz, “o setor nacional está em recuperação, exportamos cerca de 80% do que produzimos, mas não nos podemos esquecer que importamos quase 4 mil milhões de euros, e apenas uma pequena parte são matérias-primas para serem transformadas. O resto é vestuário e que vem sobretudo do nosso principal cliente que é também o nosso principal fornecedor: Espanha”.
Segundo dados disponibilizados pela ATP, os principais fornecedores em 2016 foram Espanha com 39%, Itália com 12%, França com 7% e China com 6%.
Paulo Vaz assegura que “Espanha coloca seguramente em Portugal muito perto de 1,3 mil milhões de euros de produto acabado, e estamos a falar de grandes marcas como as insígnias da Inditex, a Mango, a Desigual, o El Corte Inglês, a Carolina Herrera”.
“Há uma verdadeira armada de marcas que encontram em Portugal, normalmente o seu segundo mercado, e portanto como costumo dizer a Inditex é importante para nós porque lhes vendemos muito, mas Portugal é muito importante para a Inditex porque compra muito”. Mas isto, acrescenta: “não quer dizer que não haja também muitas marcas portuguesas, aliás se for a um centro comercial cerca de 20 a 30% das insígnias que lá estão são portuguesas e estão ao melhor nível das estrangeiras“.
“Nunca teremos uma Inditex, temos que ter essa consciência porque não temos massa crítica enquanto mercado. O grupo de Amancio Ortega desenvolveu-se e prosperou num mercado que tem quase 40 milhões de habitantes, a juntar a este facto Portugal nunca teve recursos necessários, nomeadamente ao nível financeiro”, refere Paulo Vaz.
O homem forte da ATP diz que “o sistema financeiro o que fez foi apostar em setores protegidos da economia e quando olhava para a industria era com taxas de juro elevadas”.
Numa altura em que a digitalização e comércio eletrónico estão na ordem do dia, este afigura-se também como o maior desafio do têxtil e vestuário.
Paulo Vaz não tem dúvidas: “o futuro vai ser claramente digital, a geração que agora tem 30 anos e que está a entrar no mercado de trabalho estão ligados a smartphone, o mundo deles é digital e vão transportar isso para o ato de comprar, não quer dizer que as lojas vão desaparecer, mas vai ser diferente é a lógica omnicanal”.
Mas isto acrescenta: “até é bom porque vai reduzir os investimentos que eram muito avultados para expandir a rede de retalho, mas muitas empresas ainda não tomaram isto como prioridade”.
O setor tem vivido ao longo dos anos sérios constrangimentos no acesso ao crédito decorrentes da baixa capitalização das empresas. O financiamento afigura-se mesmo como o principal problema do setor.
“Se a CGD cumprisse o papel de ajuda à economia, numa lógica de banco público e se tivesse outro tipo de prioridades que não fosse depender da rentabilidades dos seus acionistas…”, atira Paulo Vaz para quem o banco de Fomento não tem também cumprido o seu papel.
“Continuamos todos à espera do Banco de Fomento, mas há ainda uma grande incógnita à volta desse assunto. O banco de Fomento quando foi criado era uma boa ideia, foi criado numa lógica de banco de grosso de modo a permitir que o dinheiro chegasse aos bancos a um custo mais baixo para que depois chegasse à economia com custos bonificados, tendo em conta que o país tinha dificuldade em se financiar. Mas essa janela de oportunidade que devia ter acontecido nos anos da troika perdeu-se”, garante o diretor geral da ATP.
De resto, Paulo Vaz adianta que não existem grandes alternativas num setor “que está todo ele muito descapitalizado, e que devia ter uma estrutura de capital mais sólida”.
O mercado de capitais não parece ser solução. “Falou-se muito do segundo mercado, mas nunca foi suficientemente atrativo e isto leva-nos a um problema que me parece ainda mais importante e que tem a ver com o facto das empresas, por não fazerem investimentos, não crescerem”.
O diretor geral da ATP diz mesmo que “este é um problema fulcral para o país, porque sem as empresas a crescerem não há — nem pode haver — crescimento económico para o país”. “Seria muito importante para o país que tivéssemos mais grupos económicos”, refere.
Para isso a consolidação no setor é importante. “Penso que há lugar a fusões e aquisições dentro do setor, diria mesmo que essa vertente faz parte do nosso eixo estratégico que é estimular as fusões e aquisições e os acordos entre empresas”.
Apesar do ponto de vista industrial, o “small is beautiful” ser bem visto, porque implica ser mais flexível, mais reativo, em termos comerciais as coisas são diferentes. “Quando queremos comprar ou vender, a dimensão faz toda a diferença, se não formos grandes ninguém nos recebe e isso é uma enorme peia para as empresas“, conclui.
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