Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

Industria Textil e do Vestuário - Textile Industry - Ano XVI

por Délio Pinheiro

Um corte de cetim
Refinado e conservador, vezes galante, outras reservado, Dr. Horácio costumava dizer que mulheres sempre se renderão a um bom corte de tecido. O tecido tem o poder absoluto, não de vestir a nudez, mas de realçá-la - dizia -, desenhando curvas e decotes provocadores, destacando aquela mulher entre tantas, de despertar inveja em outras tantas, atraindo olhares masculinos e até femininos, curiosos com o que o tecido sugere que esteja por trás, despertando as fantasias mais íntimas e perturbadoras para, no final, contemplada ser a mulher, sem tecido algum.

Pois bem, um corte de tecido.
Mesmo que pareça antiquada coisa do século passado, e a maioria prefira comprar suas roupas em vez de mandar fazê-las, aqui estou diante de uma loja de tecidos, prestes a entrar.

Salvo seu Calazans, que não desgrudava da esposa, e o alfaiate Gonçalo, a presença masculina por aqui é sempre uma novidade.

Lembro a última vez em que entrei numa dessas lojas. Ainda era criança e estava acompanhado de minha tia Laurinda. Nunca esqueci aquele dia. Seus pequenos olhos me chamavam a atenção. Embora pequenos, por trás daquelas lentes de forte grau, pareciam grandes e profundamente tristes, contornados de roxas olheiras e fixados quase que todo tempo ao chão. Apesar de fria e trêmula, sua mão segurava a minha com firmeza e carinho. Os cabelos, começando a branquear na altura da fronte, escorriam pelas costas até que um negro xale de renda os escondesse. As bolsas pretas, coladas ao vestido de seda da mesma cor, não escondia a saudade do recém-falecido marido. Vestia-se assim e assim me lembro dela. Houve quem dissesse que logo esqueceria a dor, que o tempo se encarrega dessas coisas. Mas assim seguiu, assim desapareceu.

Decididamente, seria um corte de tecido o presente de aniversário de casamento. Restava apenas saber qual, se liso ou estampado, se preto ou azul, e essas coisas do gosto alheio sempre me consumiam. Embora Lurdinha não fosse uma esposa exigente, tinha de ser algo à altura dos nossos oito anos de convívio.

Após perambular por um bom tempo entre panos pra todos os gostos - menos para o meu, que, quanto mais escolhia mais confuso ficava - despretensiosamente por entre peças de linho, notei que uma senhora me observava por cima dos óculos. Embora não quisesse demonstrar, com um quase sorriso desenhado nas maçãs do rosto, pude ver que o meu embaraço a divertia muito. Não demorou a aproximar-se para, educadamente, oferecer seus préstimos, sugerindo orientação e apresentando-me à moça, por sinal uma bela moça, que me levaria ao estoque no andar de cima. 

Agradeci a gentileza e acompanhei a vendedora.

Enquanto subíamos a escada de largos degraus em madeira envernizada com um tapete verde-musgo estendido ao longo do centro, reparei que sua mão, pequena e escultural, com unhas pintadas em vermelho sangue, ao escorregar suavemente sobre o corrimão de finas arestas, quase tocava a minha. Descontando o salto alto, tinha talvez um metro e sessenta, e parecia ainda menor se considerasse o cabelo negro que descia até quase a cintura. Devia andar pela casa dos vinte a vinte e cinco anos, não mais que isso. Mostrava um certo mistério combinado ao movimento sensual do corpo e exalava um perfume de aroma exótico que, de início, pareceu-me enjoativo, mas, agora um bálsamo, e me levava a observá-la mais.

Algumas vezes me perguntei: por que as mulheres ocultam essa magia de parecer o que querem, quando querem?

Há pouco estava diante de uma vendedora. Bonita como falei antes, porém, não seria mais que uma simples vendedora, se de repente não resolvesse demonstrar que não era.

Por umas duas vezes, ela deixou escapulir um leve sorriso ao me olhar tímida e ligeiramente, mostrando as infantes covinhas do rosto cor de canela. O vestido alaranjado era de um tecido pouco comum, mas sugeria bom gosto e a tornava mais atraente. Acho que começo a entender disso!

Intrigava-me o fato de não ter tido ainda a chance de observar com clareza o rosto dela e, a cada degrau que ficava para trás, aumentava minha curiosidade, eu precisava olhar aquele rosto por inteiro, a boca, os olhos, o queixo, sobrancelhas... Tudo, tudo.

Alcançamos o depósito, depois de seguir por um breve corredor pouco iluminado. Sua mão esquerda que esteve fechada enquanto caminhávamos, revelara, então, uma corrente prateada presa a uma penca de chaves que ela passara a experimentar uma a uma, deixando claro que poucas vezes visitara aquela parte da loja. Destrancou a porta, e, segurando a maçaneta com a mão esquerda, esperou que eu entrasse primeiro. Foi quando, por um curto espaço de tempo, ficamos cara a cara. Aí pude constatar. Era linda, era simplesmente linda.    

Era como se tudo fosse criado para estar ali, naquele lugar, naquela mesma hora e naquele rosto.

Recobrado o fôlego, entrei no depósito para me render ao colorido daquele lugar.  Mas, ali, o que mais me chamou a atenção não foi tanto o colorido, e sim o cheiro dos tecidos. Um cheiro que nunca havia provado antes, um cheiro entre macio e áspero, um cheiro que misturava retalhos de lembranças distantes, que me chegava ora doce, ora sobriamente simulando um quase levitar.

Um cheiro que renegava o cheiro dos livros impregnados nas bibliotecas a exalar suas histórias de amor, suas tragédias, suas farsas e traições, em seus romances e poema breves e intermináveis, em suas elegias, odes e cordéis. Enfim... Um cheiro único.   

Creio eu que, assim como um Sommelier de paladar aguçadíssimo - a ponto de saber a safra do vinho, o tipo da uva, o local de origem e, às vezes, até a acidez do terreno - deva existir alguém capaz de fechar os olhos num ambiente como esse e, depois de um tempo em silêncio absoluto, distinguir claramente com o olfato o frescor da viscose, a suavidade da seda chinesa, o requinte do linho diamantino, a casimira, a lã, a renda cearense, a chita, o cetim. Não tenho dúvida de que haja tal apuro.

Se antes eu andava confuso, agora eu não tinha mesmo ideia do que escolher, e a moça, percebendo o meu desânimo, enrolara-se num cetim com estampas primaveris, envolvendo os seios à altura dos ombros, esticando o braço esquerdo acima da cabeça e o direito abaixo da cintura, tentando estimular a minha decisão. Confesso que quase toquei a asa da borboleta, que ficava no lugar mais saliente da estampa, mas contive o ímpeto, reprimindo um impulso que brotava, sabe-se lá de que região do cérebro, e ela continuava graciosamente estática até que eu dissesse com a cabeça que não, para em seguida mostrar-me outra, e outra, e outra...

Ai! Desisto! Disse, com ar de exaustão, recostando-se num fardo de cetim e abrindo os braços para descansá-los sobre ele, deixando-me assim admirar seus firmes e belos seios. Foi quando me dei conta de que até então não havíamos trocado uma só palavra, e ela continuava de braços abertos, como que crucificada sobre o cetim. Jurava que podia escutar seu coração acelerando numa súbita onda de calor que se abatera sobre nosso mundo, destilando o que restava de sólido em meu avaro desejo.

Senti o seu olhar firme e penetrante transpassar minhas retinas e chegar n’algum lugar rodopiando numa aquarela que misturava cores e estampas ao cheiro de tecido. Sua boca úmida, entreaberta, puxava-me com uma força irresistível. Lenta, porém contínua. Uma força que jamais havia experimentado. Logo tudo ao redor era chama, seus cabelos esvoaçantes pegavam fogo, as labaredas abraçavam nossos corpos num afã descompassado e maravilhoso, alguns fios se desprendiam da cabeleira e desciam sinuosos colados ao rosto para chegar aos lábios em brasa e misturar-se à saliva e ao suor. Gemidos e sussurros de almas pervertidas consumidas pelo fogo da inquisição ecoavam quase imperceptíveis até explodir numa torrente de lava incandescente mostrando a erupção do Etna, na sua mais sublime expressão.

Logo as chamas foram se debelando. A razão chegara de súbito esfriando o magma que repousava calmamente em seu íntimo. Um pouco ofegante, mas sem pronunciar uma só palavra, ela sorriu com um certo rubor e passou a se compor.

Descemos a escada do jeito que a subimos, isentos de cumplicidade.

Deixei a loja sem saber ao certo quanto paguei e quantos metros haviam sido embrulhados, mas sabia que era cetim, sim, como poderia não saber?

Lá fora, uma chuva fina e constante caía em minúsculos fios de luz cintilando ao final daquela tarde, mas só vim perceber longe dali quando já estava molhado.

Voltei o olhar em direção à loja, mas a distância apagara os detalhes.

Sem sequer saber seu nome, quase sempre me lembro dela e sempre com um vacilar de saudade. No entanto, jamais voltei a vê-la.

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Sr. Romildo, esse conto me fez lembrar de quando meu pai, lá pelos anos 50/60, comprava cortes de brim Ranca Tôco, fabricado em fábricas de São João Del Rei. Também comprava cortes de Morim, Chitas e outros tecidos mais. ´Ja faz um bom tempo, não?

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