Há mais de 50 anos, o STF (Supremo Tribunal Federal) veda a apreensão de mercadorias do contribuinte inadimplente. Há quase uma década, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu que o não pagamento de tributo declarado, embora constitua ilícito da empresa, punível com multa, não é infração pessoal do administrador, cujo patrimônio não responde pela dívida.
Onde não cabe reter as mercadorias da empresa, cabe prender o seu gestor? Pode este pagar com a liberdade por aquilo a que não responde com os seus bens? As negativas parecem óbvias, mas o STJ inesperadamente respondeu que sim, assentando que comete crime o administrador da empresa que não paga o ICMS confessado nos seus documentos fiscais. A matéria está sob o crivo do STF, em recuso sorteado ao ministro Roberto Barroso.
Os integrantes da terceira seção do STJ merecem a nossa admiração intelectual e pessoal. Neste caso, porém, somos forçados a dizer que a corrente majoritária partiu de uma premissa inexata e seguiu um método inadequado ao interpretar o artigo 2º, II, da lei 8.137/90, que define como apropriação indébita tributária o ato de “deixar de recolher valor de tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo”.
O desconto de tributos na fonte é corriqueiro. A premissa equivocada foi a de que não existiria cobrança de tributo por um particular contra outro, pois só o Fisco teria tal poder. Daí decorreu o desvio metodológico: entender que, não tendo sentido jurídico possível, o termo cobrado deveria ser compreendido na sua acepção econômica, alcançando as situações em que há mera repercussão do tributo nos preços, como no ICMS.
Ora, são muitos os casos de cobrança de tributo por pessoas privadas. Basta pensar na contribuição para a iluminação pública, cobrada dos consumidores pela distribuidora de energia, na conta mensal. Ou no ICMS por substituição tributária para a frente, onde o atacadista, além do seu preço (que embute o seu próprio imposto), cobra em separado do varejista —para repassar ao Fisco— o imposto que este só teria de pagar quando revendesse a mercadoria.
Num plano mais abstrato, importa relembrar que a influência da economia sobre o direito dá-se no momento da criação deste pelo legislador, mas não no da sua interpretação pelos juízes, que devem ater-se aos métodos da ciência jurídica.
Ao comprar uma mercadoria, o consumidor paga preço, e não tributo. O ICMS é devido em nome próprio pelo vendedor, que não é mero agente de cobrança e repasse de um inexistente imposto a cargo do comprador. Tanto que, segundo os tribunais superiores, o comerciante deve recolhê-lo mesmo que o cliente não lhe pague o preço. Não é possível que aquele seja contribuinte para fins tributários, mas que este é que o seja para fins penais.
A questão reveste-se de enorme repercussão jurídica, econômica e social.
Primeiro, porque tratar inadimplência de tributo próprio como apropriação de tributo alheio é analogia penal vedada pela Constituição.
Segundo porque a prisão por dívida —módica ou avassaladora— é vedada pela Constituição e por tratados assinados pelo Brasil.
Terceiro, porque a decisão do STJ ameaça a liberdade de milhares de empresários (16 mil só em São Paulo, informa a primeira página da “Folha” em 19 de dezembro de 2018), debilitando a atividade econômica e a geração de empregos e tributos.
E, quarto, porque essa orientação é contraproducente: se está sujeito à prisão caso sonegue (o que é indiscutível), mas também caso declare e não pague, o contribuinte sem recursos ou convicto de que nada deve adotará a primeira conduta em vez da segunda, deixando de colaborar com o Fisco para apostar na chance de não ser descoberto e na certeza de que, caso o seja, contará com vantagens que a confissão lhe retiraria: direito ao processo administrativo e suspensão da ameaça penal até o fim deste.
Não prender não é ser leniente. A lei é dura também para o devedor confesso: multa, negativa de certidão, protesto. A criminalização da dívida tributária foi rechaçada pelo STF no auge do período autoritário (RE no HC 67.688). Não é na democracia que haverá de prosperar!
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 08/07/2019
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